Publicado originalmente em objETHOS por Andressa Kikuti. Para acessar, clique aqui.
Mulheres são as principais vítimas dos casos de violência contra jornalistas no Brasil e no mundo, e todas as pessoas deveriam se preocupar com isso
Uma pergunta às leitoras e leitores deste site: e se eu dissesse que a maior parte das pessoas responsáveis por noticiar os assuntos mais importantes do dia o fazem sob condições de vulnerabilidade e violência? Seria preocupante, não é mesmo? Pois bem, infelizmente essa não é apenas uma afirmação hipotética. De fato, a maioria dos jornalistas no Brasil e em várias partes do mundo está sujeita a sofrer ataques, abusos, assédio e vários outros tipos de violência enquanto fazem o seu trabalho, pelo fato de serem… Mulheres.
Parece absurdo dizer que as jornalistas do sexo feminino exercem seu trabalho sob ameaça, mas é o que ocorre em alguns casos. É claro que não são só elas – homens também correm riscos na profissão e sofrem com a violência contra jornalistas (que, aliás, só tem aumentado nos últimos anos, e crescem à medida que o jornalismo cumpre seu papel) –, mas contra as mulheres, além de mais frequentes, os ataques vêm com o “requinte de crueldade” da misoginia. Ou seja, são dirigidos às suas características associadas ao feminino, à sua sexualidade e tudo aquilo que as constitui como mulheres. Elas estão no epicentro do risco da profissão, e esse é um problema sobre o qual todas as pessoas que prezam pelo jornalismo de qualidade e lutam por um mundo mais justo deveriam se preocupar.
Em novembro deste ano, saíram os primeiros resultados de uma nova pesquisa global sobre violência online contra jornalistas, e eles apontam algo alarmante: cada vez mais, os ataques online estão atravessando as fronteiras da web e se espalhando offline, com consequências potencialmente fatais. Conduzida pelo International Center for Journalists (ICFJ) em parceria com a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), a pesquisa ouviu 1.210 profissionais de mídia ao redor do mundo (incluindo jornalistas brasileiros(as)), e descobriu que o cenário é especialmente ruim para as mulheres: entre as respondentes, três quartos (73%) afirmaram já ter sofrido ataques online, como assédio e ameaças, por conta de seu trabalho. Além disso, 20% delas relataram ter sido alvo de abusos e ataques também fora da internet, que acreditam ter sido relacionados com a violência online que experimentaram.
O estudo do ICFJ tipifica três tipos de ameaças online enfrentadas pelas jornalistas, que podem ocorrer simultaneamente: o assédio e abuso misógino (que inclui desde insultos à sua aparência, sexualidade e profissionalismo até ameaças de cunho sexual, agressão, estupro e assassinato); campanhas de desinformação orquestradas que exploram narrativas misóginas (difamações sobre o caráter da mulher e deturpação maliciosa, como imagens e vídeos manipulados (frequentemente pornôs), memes abusivos, entre outros); e erosão da privacidade digital da vítima, com táticas como vigilância em massa, hackeamento de seus dispositivos, exposição de dados pessoais, endereços e padrões de movimento.
Vocês lembram do que aconteceu com a jornalista da Folha de S. Paulo, Patrícia Campos Mello no início deste ano. Ela sofreu precisamente um ataque desse tipo depois que o ex-funcionário de uma agência de disparos de mensagens em massa pelo WhatsApp, Hans River do Nascimento, afirmou caluniosamente em depoimento à CPI das fake news que a jornalista teria oferecido sexo em troca de informações para uma reportagem. Patrícia foi vítima de uma enxurrada de ataques nas redes sociais – só no Twitter, o UOL mapeou pelo menos 60 hashtags exclusivamente com ofensas e ameaças sexuais dirigidas a ela, criadas no dia do depoimento de Hans. Os ataques foram estimulados também pelo ultraconservador presidente brasileiro e seus filhos, a partir de comentários feitos nas redes sociais e até em frente ao Palácio da Alvorada.
Em novembro, outro caso: a jornalista catarinense Schirlei Alves contabilizou dezenas de ataques em suas redes sociais, depois de ter publicado uma reportagem no site The Intercept Brasil denunciando o machismo estrutural da Justiça brasileira a partir do caso da influenciadora digital Mariana Ferrer, que foi humilhada pelo júri durante audiência sobre acusação de estupro em uma boate de Florianópolis. A jornalista tornou-se alvo da rede disseminadora de ódio na internet, e precisou fechar sua conta do Instagram após ser agredida por diversos comentários misóginos e xingamentos. De acordo com ela, em entrevista concedida ao Portal Catarinas, houve casos de ameaça à sua integridade física, agressões online articuladas por grupos organizados e utilizando perfis falsos.
O objetivo dos ataques misóginos contra jornalistas é claro: humilhar, desacreditar, causar medo na profissional, fazê-la recuar de uma pauta, comprometer o trabalho investigativo, e minar a participação ativa de mulheres jornalistas e suas fontes no debate público. As consequências para as profissionais são gravíssimas, podendo ocorrer danos psicológicos, físicos, materiais e abandono da profissão. E as consequências para a sociedade também são sérias, pois o ataque às jornalistas significa também um ataque à liberdade de imprensa: ao comprometer a saúde e o trabalho das profissionais, compromete-se o direito do público de acessar informações.
Há saídas?
Casos como esses requerem muita atenção e cuidado. O ideal seria que jornalistas ameaçadas pudessem receber suporte de segurança física, segurança psicológica e treinamento de segurança digital por parte das organizações onde trabalham, mas nem sempre isso acontece. E também não basta: é preciso sinalizar para toda a equipe de jornalistas que tais questões são sérias e serão devidamente respondidas, inclusive com intervenção legal. Não há como parar os ataques sem uma resposta adequada e responsabilização dos criminosos. É preciso ainda pressionar plataformas e meios através dos quais os ataques ocorrem, para frear as agressões e impedir que novos casos aconteçam. As políticas de denúncia de conteúdo abusivo dessas plataformas ainda são falhas, como demonstra essa reportagem da Agência Pública, publicada em março deste ano, que ouviu seis mulheres jornalistas brasileiras vítimas de ataques misóginos no Twitter.
Muitas entidades de jornalismo ao redor do mundo trazem dicas, cursos e instrumentos de proteção, como a Cartilha sobre medidas legais para a proteção de jornalistas contra ameaças e assédio online, lançada este ano pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e o Observatório de Liberdade de Imprensa da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), e uma lista de etapas preventivas contra o assédio online, com passos a serem executados durante os ataques, publicada pelo Commitee to Protect Journalists (CPJ). A formação de redes de apoio, como a Rede Nacional de Proteção a Comunicadores e Jornalistas, criada em 2018, a recém criada Rede de Jornalistas e Comunicadoras com visão de Gênero e Raça, entre outras, também são formas de fortalecer o trabalho de jornalistas, criando soluções coletivas para enfrentar o problema.
*Andressa Kikuti
Doutoranda em Jornalismo (PPGJOR/UFSC) e pesquisadora do objETHOS