Publicado originalmente em Jornal da UFRGS por Ana Gonzalez. Para acessar, clique aqui.
Comportamento | APAC abre espaço para uma versão ressocializadora do sistema penitenciário. Comunidade do local recebeu os participantes do Programa Convivências deste ano
*Foto: Ramon Moser/UFRGS
Quem entra na casa de detenção da Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (APAC) de Porto Alegre não é recebido com revistas minuciosas ou grades maciças. Apesar de dividir seus muros com os da Cadeia Pública de Porto Alegre, o Centro de Reintegração Social (CRS) da associação nada tem a ver com os métodos empregados em complexos penitenciários tradicionais. Na APAC, os objetivos são claros e seguidos à risca: recuperação dos detentos (que lá são chamados de recuperandos), proteção da sociedade, socorro às vítimas e promoção da justiça restaurativa. Por isso, nesse sistema baseado na confiança e no propósito final de reinserção na sociedade, são os recuperandos que recepcionam quem visita a APAC com sorrisos e boas-vindas calorosas, sem algemas ou barreiras físicas separando quem vem de fora de quem está dentro.
E foi assim que o grupo de estudantes participante do Programa Convivências, promovido pelo Departamento de Educação e Desenvolvimento Social (DEDS) da UFRGS, foi recebido no centro de reintegração da APAC: com comemorações, sorrisos e música – cortesia do coral formado pelos recuperandos. O Convivências propõe o convívio, por uma semana, da comunidade acadêmica da UFRGS com comunidades populares do Rio Grande do Sul, e nesta edição reuniu 15 estudantes de diferentes cursos de graduação da Universidade, além de técnicos, docentes e de estudantes egressos. Segundo Rita Camisolão, servidora do DEDS, a escolha pela APAC para sediar o projeto neste ano se deu por uma necessidade de imersão e troca de experiências em um contexto humanizado e ressocializador do sistema carcerário. “A gente acha que foi muito relevante trazer esse tema pro centro da universidade neste momento”, afirma.
Metodologia APAC
Apesar do ambiente amigável e acolhedor, os recuperandos que chegam à APAC precisam seguir algumas regras. Uma delas é o estudo, obrigatório para todos. Seja no ensino básico, técnico ou superior, todos os recuperandos estão matriculados em instituições educacionais de algum nível.
No Brasil, hoje são mais de 649 mil pessoas presas, o que representa a terceira maior população carcerária do mundo. Além da privação de liberdade, os detentos brasileiros também são privados do direito à educação no sistema penitenciário comum: apenas 20% das pessoas presas no país têm acesso a atividades educacionais de qualquer nível – das matriculadas, menos de 2% estão no ensino superior. Indo de encontro aos números aterradores de um sistema que pune sem ressocializar, na APAC, 18 entre os 47 recuperandos estão matriculados em cursos superiores, em áreas que vão do Serviço Social à Administração, enquanto os outros cursam outros níveis de ensino. “No sistema comum, não existe oportunidade. Mesmo que muita gente queira estudar, são poucas vagas pra muitos interessados”, explica Edson, que conseguiu, através da APAC, completar um curso de cuidador de idosos. Apesar de não haver restrições à identificação dos recuperandos, a reportagem optou por utilizar apenas o primeiro nome.
O recuperando Carlos tinha 26 anos de idade e uma formação que ia até a quarta série do ensino fundamental quando ingressou no sistema comum, onde conseguiu concluir a sétima série no ensino de jovens e adultos. Pizzaiolo de profissão, teve a vontade de entrar na APAC despertada pela possibilidade de concluir os estudos em busca de perspectivas mais brilhantes num futuro livre. Apaixonado pela culinária e com previsão de liberdade condicional para 2026, agora sua intenção é concluir o ensino fundamental para poder realizar cursos técnicos profissionalizantes de panificação e confeitaria concomitantemente ao ensino médio antes de retomar a liberdade. “Minha meta é um certificado com o meu nome”, aspira o recuperando, que completava um mês na APAC no dia em que o Convivências teve início.
Além dos estudos, os recuperandos também precisam seguir uma rotina rígida, que tem início às 6h, quando acordam, e termina às 22h, quando vão para a cama, e realizar cinco refeições diárias. Também existem horários específicos do dia dedicados à laborterapia, uma abordagem terapêutica ocupacional que se utiliza de atividades laborais como meio de reeducação. No caso dos recuperandos da APAC, a maioria se dedica ao artesanato. Orgulhosos, exibem aos visitantes as obras produzidas durante as oficinas: alguns costuram bonecas de pano, outros se dedicam a bijuterias de miçanga, miniaturas de madeira, acessórios de crochê ou origamis – independentemente do tipo de trabalho, o importante é manter a mente e as mãos ocupadas. “Mente vazia, oficina do diabo”, explicam.
Muitas das técnicas de artesanato são passadas de um recuperando para outro, num sistema de suporte retroalimentado, encorajado pela metodologia da associação e que vai muito além da laborterapia. Um dos 12 elementos da metodologia APAC, o mantra “recuperando ajudando recuperando” é posto em prática de diversas formas, inclusive na chamada Escolinha do Método – um treinamento de 90 dias pelo qual todos os recuperandos que chegam à APAC passam e que é coordenado por recuperandos que estão há mais tempo no CRS, com o propósito de ensinamento de regras e de adaptação à metodologia adotada pela associação, que em tudo difere do sistema ao qual estão acostumados. “Nos presídios, nós somos conhecidos por apelidos e nos dizem pra andar sempre de cabeça baixa. Aqui sempre nos chamam pelo nome e nos tratam com respeito. É uma diferença muito importante pra gente”, exemplifica o recuperando Rafael.
Apesar de todos os pilares imprescindíveis para o funcionamento adequado do CRS, um dos preceitos mais importantes na APAC é a confiança – e também o que mais surpreende quem vem de fora. Desde o primeiro dia em que chegam ao centro de reintegração, os recuperandos ficam livres de algemas e grades impositivas do sistema convencional e podem circular livremente pelas dependências dentro do horário estabelecido, tanto no regime fechado quanto no semiaberto. Quem cuida das portarias, da distribuição de medicamentos e do preparo da comida também são os próprios recuperandos, num sistema organizado e eficaz.
O recuperando Clóris se surpreendeu ao receber, em uma de suas primeiras semanas na APAC, as chaves do pavilhão do regime fechado para que tomasse conta da portaria. A demonstração inesperada de confiança significou para ele uma mudança de perspectiva e um passo para fora do ciclo de suspeita e medo a que os detentos do sistema tradicional são condicionados. Em nenhum momento, conta, sequer se sentiu tentado a burlar o sistema e escapar, e justifica seu raciocínio: “Do amor ninguém foge”.
Se a APAC exerce seu potencial de mudança sobre os recuperandos, a máxima também é verdadeira para quem vem de fora. Para a estudante de Saúde Coletiva Joana Lopes, a semana que o grupo do Convivências passou no CRS representou uma experiência transformadora em todos os âmbitos. “Contribuiu para além do profissional, me ajudou no meu desenvolvimento como ser humano”, relata.
Troca de vivências
Além do convívio imersivo, o Convivências também propõe a execução de oficinas nas comunidades que visita em uma troca de saberes fundamental e que é a base do programa. Na APAC, as oficinas incluíram a confecção de cadernos, fotografia e a criação de uma horta em vasos. Entre os recuperandos, a oficina de teatro, ministrada pelo professor Xico de Assis, do Instituto de Artes da UFRGS, fez sucesso – as atividades propostas envolveram danças e jogos reminiscentes das aulas de educação física da escola e proporcionaram aos recuperandos um momento de voltarem a ser crianças dentro de um sistema que condiciona à dureza e que a APAC tenta mudar. Ao final da oficina, os recuperandos sorriam. “Foi muito divertido. Eu esqueci que ainda tava aqui dentro”, relatou Carlos.
Para o diretor do DEDS, José Antônio dos Santos, o projeto e o engajamento da comunidade acadêmica representaram um sucesso dessa edição do Convivências. “Foi uma experiência muito proveitosa em todos os sentidos.”
Ao final das oficinas, cada recuperando recebeu um certificado com seu nome, representando o fim das atividades do Convivências na APAC. Carlos, o pizzaiolo que sonha com diplomas, se emocionou ao receber o seu. “Eu posso ganhar muitos certificados daqui pra frente, mas o que vou pendurar no centro da minha parede vai ser esse”, comemorou. “Vai ser o primeiro de muitos.”
Mesmo inserida num sistema que aparta da sociedade, a colaboração entre a APAC e o DEDS tornou possível que a comunidade acadêmica e os recuperandos compartilhassem, ainda que por um curto período, da mesma realidade, sem a interferência de barreiras – nem físicas, nem sociais. Ao fim, o lema que ecoa entre os recuperandos reverberou entre todas as partes integrantes do projeto: “Quem entra na APAC nunca sai igual”.