Publicado originalmente em *Desinformante por Rodolfo Vianna. Para acessar, clique aqui.
A produção de desinformação sobre a Covid-19 no Brasil e no México se apropriou de saberes tradicionais, hábitos alimentares e costumes populares dos países. Essa é uma das conclusões da pesquisa de mestrado de Ana Paula Dias no Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina da Universidade de São Paulo (USP). A pesquisadora identificou que os elementos culturais são utilizados como estratégias para produzir sentido de proximidade e verossimilhança.
A pesquisadora analisou a circulação da desinformação sobre a Covid-19 nos dois países a partir da análise de 736 notícias falsas propagadas no período de janeiro de 2020 a novembro de 2021, e buscou evidenciar os espaços em que o conteúdo mais circulou, os assuntos que predominaram e a presença de aspectos culturais. Para isso, utilizou dados qualitativos e quantitativos.
A comparação demonstrou que, no contexto brasileiro, se destacaram narrativas falsas sobre a doença que estavam atreladas a temas político-partidários, situação da Covid-19 em outros países e vacinas. Já no México, a maioria do conteúdo que circulou abordou medidas de prevenção, vacinas e tratamentos.
A pesquisa também identifica que as informações falsas sobre prevenção e tratamento que circularam internamente no Brasil e no México continham a presença de saberes tradicionais como uso de ervas, uso de chás, hábitos alimentares (ingestão de fígado bovino, no caso brasileiro; consumo de café, gemada, no caso mexicano).
“Ao associar saberes tradicionais a informações falsas sobre a Covid-19 para compor narrativas falsas sobre medidas de prevenção e tratamentos, as notícias falsas propagadas internamente nos países Brasil e México manipularam e mercantilizaram tradições e culturas de grupos minoritários em favor de interesses obscuros, confundindo e desinformando a população”, escreve a pesquisadora.
Produções culturais e aspectos religiosos também foram apropriados para desinformar, aponta Ana Paula Dias. No Brasil, foram exploradas crenças de matriz evangélica, já no México as crenças religiosas mencionadas envolveram profecias bíblicas.
Essas informações falsas impactaram negativamente alguns grupos sociais mais do que outros. “Por exemplo, o Brasil sofreu com o atraso da vacinação de povos indígenas, que relataram ao Ministério da Saúde que recusaram a vacina por medo de virar jacaré, mudar de sexo, contrair o vírus HIV (causador da Aids) e até mesmo de morrer”.
A taxa de incidência de Covid-19 foi 136% mais alta do que a média nacional na Amazônia Legal, 70% maior do que a média entre todos os habitantes da região. A taxa de mortalidade indígena por 100 mil habitantes foi 110% superior à média brasileira. Outro grupo social afetado foram os pastores evangélicos, que proporcionalmente foram os profissionais que mais morreram de Covid-19 em 2020, apresenta a pesquisadora baseando-se em outros relatórios e levantamentos estatísticos mobilizados em seu mestrado.
Já no México, a massiva circulação de notícias falsas aliada às condições precárias de infraestrutura de atendimento médico se traduziu em uma maior taxa de mortalidade em indígenas detectados com Covid-19 do que na população em geral. “No caso do México, pode-se supor que a falta de um plano de comunicação específico e culturalmente relevante para essas populações e o atraso da chegada de campanhas de informação e proteção da saúde a essas comunidades, pode ter contribuído com a circulação de informações falsas” postula Ana Paula Dias.
Além de desinformação específica dos dos países, chamadas de “domésticas”, circularam informações falsas “internacionais”, ou seja, conteúdos que circularam nos dois países e utilizaram características culturais comuns.
Por onde circulou?
A pesquisadora Ana Paula Dias também destacou os canais em que a desinformação se propagou. “Observou-se a alta circulação de notícias falsas na plataforma do Facebook (Meta) em ambos os países: no Brasil, 50% das fake news detectadas circularam exclusivamente no Facebook; e no México, 39,2%”, aponta a pesquisa.
O segundo canal em que houve maior disseminação de notícias falsas foi o Whatsapp, no caso brasileiro, e o Twitter no caso mexicano. Observou-se ainda uma proporção significativa de notícias falsas propagadas em múltiplos canais simultaneamente nos dois países. No caso brasileiro, 33,5% das notícias falsas sobre a Covid-19 circularam em mais de uma rede social, combinando dois canais ou mais, incluindo também as plataformas Telegram e TikTok dentre aqueles citados anteriormente. Já no caso mexicano, 38,6% das notícias falsas foram disseminadas em duas ou mais plataformas, incluindo TikTok, Telegram e e-mail.
“Além disso, os resultados obtidos na primeira fase da análise corroboram o marcante papel desempenhado por figuras públicas como celebridades, apresentadores e políticos em relação à propagação de conteúdos falsos durante a pandemia de Covid-19”, escreve Ana Paula Dias. Tanto no caso brasileiro como no caso mexicano, portais de ‘notícias’, autoridades do governo e personalidades públicas iniciaram a propagação conteúdos falsos as redes sociais.
Em ambos países, o presidente, Andrés Manuel López Obrador, do México, e ex-presidente Jair Bolsonaro, do Brasil, espalharam informações falsas, minando a importância do uso de máscaras faciais e contradizendo os conselhos médicos, chegando a negar a pandemia.
“Os resultados obtidos ressaltam também características comuns aos conteúdos falsos analisados: roupagem jornalística, adaptabilidade em múltiplos formatos, simulação de fatos urgentes e o aspecto viral motivado pela valência emocional e o papel de ativação presente nesses conteúdos” , destaca a autora.
Ao assumir o fenômeno da desinformação como um problema global, mas também regional, a pesquisadora propôs relacionar os processos comunicacionais envolvidos no consumo e no compartilhamento de conteúdos falsos com o universo sociocultural em que as populações-alvo destas campanhas estão inseridas. O estudo completo pode ser acessado aqui.
“Acho que estamos diante de um problema bastante complexo. Por isso, acredito que para combater a desinformação é preciso buscar uma colaboração entre diferentes atores sociais, como o Estado, a mídia, e a própria sociedade civil”, responde Ana Paula Dias, e prossegue: “o debate sobre regulação das plataformas é muito importante, e a educação midiática também tem um papel fundamental de preparar cidadãos para o contexto informacional em que estarmos imersos”, complementa.