Publicado originalmente em ObjETHOS por Sílvia Meirelles Leite. Para acessar, clique aqui.
Nas Olimpíadas de Tóquio, após ganhar medalha de ouro na primeira participação do surf como modalidade olímpica, Ítalo Ferreira foi questionado durante a coletiva de imprensa sobre a participação do surfista Gabriel Medina na mesma competição. As perguntas repercutiram em veículos nacionais com comentários sobre a irritação de Ferreira com as perguntas sobre Medina. Entretanto, a questão central desse debate não é a resposta do atleta, mas a pertinência dessas perguntas diante da potência de uma pauta como a história de Ítalo e o fato dele ter conquistado a primeira medalha de ouro do surf nas Olimpíadas. Esse acontecimento denota a importância do jornalismo enfrentar as perguntas que tem feito e o conhecimento produzido a partir dessas perguntas.
O que leva um jornalista a perguntar sobre Medina diante da possibilidade de tantas outras perguntas? Gabriel Medina é uma marca que está relacionada a tantas outras marcas, existe uma série chamada Mundo Medina sobre as suas viagens e participações em campeonatos e, no início de 2020 – ano inicialmente programado para as Olimpíadas de Tóquio, foi lançado um documentário sobre a vida do surfista. Ele é um atleta renomado, bicampeão mundial de surfe e uma marca rentável. Quando o jornalista faz perguntas sobre Medina e traz o atleta para uma pauta que deveria ser sobre Ítalo Ferreira, também traz para a pauta os seus patrocínios e a possibilidade de internautas que pesquisam sobre Medina acessarem a notícia. Pode-se ganhar mais audiência com a indicação do termo Medina no texto e nos metadados que acompanham a produção jornalística para a Internet.
No jornalismo que se proclama esportivo, é recorrente o investimento em perguntas e pautas sobre atletas com um grande potencial para venda. Por exemplo, no Globo Esporte é possível encontrar várias matérias que mencionam Neymar Júnior, mesmo que ele não tenha relação direta com o fato. A notícia sobre a contratação do jogador Léo Baptistão pelo Santos Futebol Clube recebeu o seguinte título: Com boas-vindas de Neymar, Santos anuncia a contratação do atacante Léo Baptistão. Ainda, uma notícia sobre a participação de Letícia Bufoni no torneio de skate street na capital francesa recebeu o título: Neymar prestigia Letícia Bufoni em competição de skate em Paris Essas pautas não falam sobre o esporte, falam sobre Neymar e respondem perguntas sobre o que ele fez e deixou de fazer e como se promoveu.
A prática de promover pautas na busca por engajamento, que é facilmente identificada no cenário esportivo, também pode ser observada em outras editorias. Recentemente, o Estadão publicou: Felipe Neto está certo sobre a dívida dos Correios? O texto, que parte de um tweet do influenciador digital problematizando a privatização dos correios com base na dívida da instituição, tenta apresentar uma resposta sobre as dívidas das empresas citadas por Felipe Neto. Para responder à pergunta do título, o veículo entrevista especialistas da área econômica que explicam como interpretar a dívida de empresas com capital aberto e capital fechado. Mais do que explicar para pretensos investidores como entender a relação entre dívida e receita nas empresas, o argumento apresentado pelos dois entrevistados do Estadão sustenta a importância da privatização dos Correios. Entretanto, ao se deter apenas na explicação sobre a dívida, o texto deixa de perguntar sobre tantas outras questões que também estão relacionadas à privatização da instituição, como o alcance dos Correios em um país de tamanho continental como o Brasil. Junto a isso, o veículo explora a imagem e o engajamento de Felipe Neto, que mostrou-se contrário à privatização dos Correios, para argumentar à favor da privatização da instituição.
Quando um jornalista trabalha na perspectiva de fazer perguntas para buscar engajamento, amplificar uma marca e retificar enfoques de pautas convenientes aos seus financiadores, faz escolhas sobre que tipo de conhecimento jornalístico pretende produzir. Também abre mão de furar o círculo vicioso de manter em evidência marcas e enfoques que já são destacados de forma recorrente pela mídia. Com isso, as pautas e as manchetes passam a ser regidas pelas métricas de sistemas como o Google Trends ou Google Analytics, numa tentativa de assegurar cliques e compartilhamentos. Por outro lado, ao se problematizar essa prática e propor perguntas que vão além do que já está em evidência, investe-se na qualificação do jornalismo, contribuindo para pautas que respeitam as pessoas citadas e a audiência. Apesar de o jornalismo estar condicionado ao status de mercadoria, também é uma atividade criadora e a pergunta é uma das principais ferramentas nesse processo de criação.