As imagens vazadas do 8 de janeiro e o Processo Golpista em Curso

Sylvia Debossan Moretzsohn
Jornalista, professora aposentada pela Universidade Federal Fluminense (UFF), pesquisadora do objETHOS e do PolObs/Universidade do Minho

A semana que passou foi marcada por mais um episódio que, parafraseando e invertendo o sentido do PREC português (o “Processo Revolucionário em Curso”, na sequência da Revolução dos Cravos, de 25 de abril de 1974), poderíamos chamar de Processo Golpista em Curso. Episódio decisivo, porém, que resultou na demissão do chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Gonçalves Dias, e levou o governo a mudar de posição em relação à criação de uma CPMI sobre os ataques de 8 de janeiro, quando uma multidão de bolsonaristas invadiu e depredou as sedes dos Três Poderes na tentativa de provocar um caos que levasse a uma intervenção militar. Como se sabe, essa proposta vinha sendo defendida enfaticamente por aliados de Bolsonaro, visando a demonstrar a disparatada tese de que o governo recém-empossado era o responsável por aquelas ações e quis posar de vítima para incriminar o ex-presidente.

No dia 19 de abril – por acaso Dia do Exército, e por acaso dia de uma cerimônia comemorativa em que, segundo a interpretação prevalecente na imprensa hegemônica, Lula procurava reaproximar-se dos militares após a tensão decorrente daquela tentativa de golpe –, a CNN divulgou com exclusividade trechos de imagens das câmeras de segurança que mostram cenas inéditas dos acontecimentos de 8 de janeiro. A reportagem, de cerca de 5 minutos, circulou intensamente pelas redes e provocou imediata reação de grupos aliados do governo, acusando a emissora de tentar tumultuar o ambiente e de ter editado as imagens.

Facilita a acusação o fato de a CNN ser notória aliada de Bolsonaro, a ponto de ser chamada, nos meios de esquerda, de “the new Jovem Pan”. Porém, editar imagens faz parte do trabalho jornalístico. O problema é como se edita, como se narra, e com que objetivo. No caso, parece clara a intenção de incriminar o (então) chefe do GSI, que surge na primeira cena, sozinho e aparentemente atônito. Uma cena que será repetida posteriormente, nessa edição.
O repórter começa assim a sua narrativa:

“Ele [Gonçalves Dias] está na antessala do gabinete presidencial, enquanto há criminosos no local. As imagens de câmeras de segurança a que a CNN teve acesso com exclusividade revelam o tratamento de funcionários do GSI e do próprio ministro Gonçalves Dias com os invasores, após cenas de depredação e ataques ao patrimônio público. Optamos por não identificar os militares do Gabinete de Segurança Institucional. São 22 câmeras e mais de 160 horas de gravação que mostram as decisões tomadas durante o ataque de 8 de janeiro, dentro e fora do Palácio do Planalto”.

O repórter não justifica a decisão de cobrir o rosto dos militares – um deles aparece repetidas vezes e numa delas oferece água aos invasores – e identificar apenas o general. Mas é bem evidente a intenção de demonstrar a conivência dele e de seus comandados com aqueles que deveriam ser reprimidos, o que, agora com o apoio daquelas imagens, supostamente sustentaria as denúncias dos que defendem a CPMI.

A nota que a assessoria de comunicação do GSI divulgou imediatamente após a veiculação da reportagem afirmava que o general e os agentes de segurança estavam procurando retirar os agressores do local e conduzi-los para o segundo andar do prédio, onde seriam presos, e que o comportamento dos integrantes do órgão estava sendo apurado. Convocado a depor na Polícia Federal, Gonçalves Dias disse que houve um “apagão geral” do sistema de inteligência naquele dia, “pela falta de informações para tomada de decisões”. Não fez mais do que repetir a versão adotada imediatamente após a tentativa de golpe, embora fossem evidentes as articulações dos grupos bolsonaristas que organizavam uma caravana a Brasília e, como código para o ataque, referiam-se ao convite para a “festa da Selma”. Embora ainda reste muito a se apurar sobre esse caso, ficou claro que o governo não se preparou adequadamente para o que estava por vir, ou Lula não estaria fora de Brasília naquele domingo.

O desgaste provocado pela reportagem da CNN levou o cientista político Luís Felipe Miguel a reiterar, em sua página no Facebook, as críticas à opção de Lula pela conciliação em momentos que exigem enfrentamento imediato. Neste caso, desde o início, não restava muita dúvida de que o general, “se não foi cúmplice ou leniente”, foi “pelo menos negligente e incompetente em um grau que não permitiria sua permanência no cargo”. O preço pela decisão tardia de demiti-lo está sendo pago agora:

“As imagens da CNN com o general vagando no Planalto em meio aos vândalos do 8 de janeiro têm alimentado as redes bolsonaristas com todo o tipo de mentiras e falsificações. Caem como uma luva para o esforço de negar o óbvio e dissociar a intentona golpista das maquinações de Bolsonaro para permanecer no poder a qualquer custo.

A acusação ridícula de que o PT armou o golpe contra seu próprio governo ganha força junto a esse público – que, afinal, já está acostumado a acreditar em todo o tipo de sandice”.

Importa pouco, diz Luís Felipe, “que a CNN seja a CNN e que o jornalista que divulgou o vídeo tenha ligações com o bolsonarismo”. O problema é que, “agora, o governo terá que aceitar uma CPI cujo objetivo era dar à oposição espaço para desinformar e tumultuar”. O professor aponta ainda um aspecto crucial nesse episódio, que é a dificuldade de se lidar com a questão militar, pois mesmo aqueles que seriam alegadamente “simpáticos a Lula”, como Gonçalves Dias, “não têm coragem ou interesse de enfrentar a maioria ultradireitista de seu pares”.

Seletividade ou bloqueio no acesso à informação

Caberia também indagar por que apenas agora, depois da divulgação dessas imagens, Gonçalves Dias foi intimado a depor. Se as gravações, como diz a nota do GSI, já estavam incluídas no inquérito policial instaurado para essas averiguações, ninguém viu ou achou estranho o comportamento do general e de seus comandados?

Acresce uma questão fundamental no que diz respeito ao direito à informação. Tanto a mídia hegemônica quanto a contra-hegemônica solicitaram a íntegra das gravações, com base na Lei de Acesso à Informação (LAI). Folha de S.Paulo relata que o pedido foi negado sob a justificativa de que “as imagens do sistema de vídeo monitoramento do Palácio do Planalto são de acesso restrito, considerando que sua divulgação indiscriminada traz prejuízos e vulnerabilidades para a atividade de segurança das instalações presidenciais”. No início de fevereiro, o governo impôs sigilo sobre a íntegra das imagens. Depois da exibição dos vídeos pela CNN, o ministro Alexandre de Moraes, do STF, determinou o fim do sigilo, argumentando que essa restrição não está amparada pela LAI, e que a Constituição “consagrou expressamente o princípio da publicidade como um dos vetores imprescindíveis à Administração Pública”. 

Na sua mais recente newslettera jornalista Marina Amaral, da Agência Pública, amplia a discussão ao apontar a seletividade do governo na divulgação de informações de interesse público – a Globo já havia sido beneficiada com acesso privilegiado às imagens da tentativa de golpe – e mostra que a falta de transparência acabou sendo decisiva para mais esse estímulo à instauração da CPMI.

O título do texto indica o que seria a medida correta para o combate à exaltação dos ânimos fascistóides: “Contra teorias da conspiração, transparência”. “Transparência”, embora esteja na moda, seguramente não é a melhor palavra para se definir a atuação na política, que é feita necessariamente de segredos; mas deve-se exigir que os governos tratem igualmente os meios de comunicação, sem privilégios, e que saibam que sonegar informações tem riscos às vezes maiores do que se pode supor. Por isso:

“Não há como promover o debate público negando acesso à informação com a intenção de fazer prevalecer uma narrativa conveniente dos fatos. Uma política de comunicação realmente democrática ainda está por ser implementada – não se consolidou nem mesmo nos governos anteriores do PT em que pese a gigantesca diferença de tratamento à imprensa em comparação ao governo Bolsonaro”. 

Esperar transparência da parte da imprensa é igualmente problemático pelo papel político que cada órgão desempenha, mais ainda quando se trata de empresas determinadas a fazer oposição ao governo – ou, ao contrário, a defendê-lo, como ocorre com alguns órgãos que se apresentam como alternativos ou independentes. Mas o pluralismo seria certamente um antídoto para manipulações. A referência à transparência, aqui, tem o sabor da ironia contra quem não cumpre o que diz defender: 

“Da parte da imprensa, também se espera transparência. Versões editadas com minutos de duração não são confiáveis quando se tem 160 horas de gravação (segundo o que divulgou a CNN) e os interesses políticos são tão agudos. Não por outro motivo, os vazamentos do Wikileaks sempre se destinavam a mais de um veículo em cada um dos países que tinham acesso aos documentos; é mais difícil selecionar o que se vai publicar quando concorrentes têm acesso ao mesmo material. A exclusividade pode ser uma vantagem comercial ou política mas não rima com informação pública de qualidade”. 

O golpe em curso

O acompanhamento cotidiano da mídia hegemônica não deixa muita dúvida quanto ao lado que essa mídia adotou tão logo o novo governo assumiu. O que não surpreende, diante dos interesses econômicos e financeiros e dos compromissos ideológicos dessas empresas. Apesar disso, sempre é possível obter, nesses meios, informações e análises adequadas, e o grande problema será separá-las das que são pura campanha antigovernista – no caso, antipetista.

Podemos puxar o fio do Processo Golpista em Curso desde antes da eleição, com as inúmeras suspeitas que Bolsonaro levantou contra a fidedignidade das urnas eletrônicas, os ataques que fez contra o TSE e o STF, as suas mobilizações sistemáticas em motociatas, a tentativa de golpe em 7 de setembro de 2021, a formação do grupo de militares para “fiscalizar” o resultado das urnas e, no dia do segundo turno, a tentativa de impedir acesso às zonas eleitorais, com a operação da Polícia Rodoviária Federal nas estradas de determinadas regiões.

Depois da derrota eleitoral, houve algumas investidas para inviabilizar a posse do novo presidente: bloqueio de estradas, formação e incentivo à manutenção de acampamentos diante de quartéis, tumulto nas ruas de Brasília com tentativa de invasão da sede da Polícia Federal, atentado frustrado a bomba no aeroporto da capital federal. Depois do ponto culminante do ataque de 8 de janeiro essas investidas prosseguiram, como quando o senador Marcos do Val apresentou uma denúncia que aparentemente incriminava Bolsonaro mas visava de fato descredibilizar o juiz Alexandre de Moraes. Já aí se atuava firmemente para a criação da CPMI destinada a desestabilizar o governo.

Estadão, nessa época, publicou uma cronologia em que chamava a denúncia do senador de “novo capítulo de movimentos golpistas”.

No mesmo dia em que a CNN divulgou as imagens que causaram a mais recente e grave agitação no cenário político desde o 8 de janeiro, o historiador Francisco Carlos Teixeira escreveu um breve artigo em que acusa o golpe em curso. Começa por uma crítica comum entre analistas de esquerda, entretanto jamais levada devidamente em conta: “A ausência de análise política internacional e nacional, com a insistência do núcleo político dirigente em fazer um governo como se estivéssemos em 2002, é um imenso erro”. E conclui: “A revelação dos vídeos do GSI, editados ou não, são parte dessa campanha contra o Governo Lula, gera mal-estar, falta de confiança e dúvidas desnecessárias. Todo o aparelho de segurança do Estado, ou seja, da República e da Democracia, falhou. E falhou porque insiste em não reconhecer o perigo fascista”.

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