Publicado em Brasil de Fato por Ana Penido. Para acessar, clique aqui.
FAB registram crescimento constante do número de mulheres, mas ainda assim não ultrapassam 10% do efetivo total
Fui buscar no “pai dos burros” o significado de degenerar. Todas as interpretações associadas ao termo são negativas: “mudar para um estado qualitativamente inferior; declinar; estragar-se; perder as qualidades próprias à sua espécie; mudar para pior; corromper-se; adquirir maus hábitos ou práticas; deturpar…”
Adolf Hitler, no comando da Alemanha nazista, organizou uma grande exposição de “Arte Degenerada” em 1937. Nela, reuniu pinturas, esculturas, gravuras e desenhos consideradas ofensivas ao regime, ou “impuras”, notadamente modernistas. A principal música degenerada era o jazz, apresentado como música de negros e judeus, e até alguns instrumentos especificamente foram incluídos, como o saxofone. Autores dos trabalhos apresentados foram ridicularizados na exposição, seja por meio de caricaturas, seja pela exposição de suas obras junto a imagens degradantes. Posteriormente, foram perseguidos, deportados ou assassinados.
A exposição também foi apelidada de festa das bruxas, pois o fascismo sempre vem acompanhado do racismo, do machismo, e da LGBTfobia. A literatura degenerada, como alguns a chamam até hoje, era o texto (prosa ou poesia) erótico, que colide com a moral conservadora, abordando temas como traição e sexo.
(De)generar é também o processo de retirar a identificação de gênero, ou mesmo assumir, simultaneamente, características femininas e masculinas. Seres humanos carregam atributos de sexo, gênero, orientação sexual e identidade de gênero. A discussão de gênero se relaciona com os comportamentos ditos “naturais” para cada sexo. Também trata da hierarquização dessas características, e das disputas de poder entre os gêneros. Tomando emprestada a personagem de Guimarães Rosa em Grande Sertão Veredas, (de)generar pode ser pensado como produzir Diadorins degeneradas. Seria essa a intenção da caserna ao incluir mulheres nas suas fileiras?
Suzeley Kalil e Maria Cecília Adão recordam que, da mesma forma que ser mulher não é natural (como bem discute Simone de Beauvoir), ser militar é uma construção social. O/a militar, para as autoras, surge como um terceiro gênero, detentor de atributos considerados masculinos, como viril, corajoso, audacioso; e adjetivos femininos, como apresentar-se asseado e bem vestido, ser solidário e polido no trato com civis, ser obediente, compreensivo, justo com seus subordinados. Essas são as características requeridas do profissional na guerra. Às mulheres, cabe o papel de vítima. Terceiro gênero ou não, impossível não se lembrar de Diadorim e refletir sobre o masculinismo como estrutura de poder e sociabilização.
Requerer militares Diadorins não significa que a inclusão da mulher nos quartéis seja mais fácil. Os argumentos contrários a essa inserção eram de natureza infraestrutural (como adaptação de banheiros), comportamentais (impactos no perfil guerreiro) e biológicas (falta de força física). O processo lento, gradual e seguro (ainda mais lento que o do final da ditadura) desconsiderou pesquisas importantes como, por exemplo, as que apontam a edificação de banheiros exclusivos como algo contraproducente para a convivência nos quartéis. Quanto aos aspectos comportamentais, entre pesquisadoras, há quem acredite que a entrada de mulheres alteraria inequivocamente o ethos militar. Outras, como Maria Celina D’Araujo, a quem nos somamos, não entendem que a diminuição da testosterona influencie a hierarquia e a disciplina, pilares dos quartéis. Por fim, os aspectos biológicos têm sido ponderados à luz da guerra do presente e do futuro, intensa em tecnologia.
No Brasil, o processo ocorreu primeiro na Marinha (1980) e depois na Força Aérea (1982), antes, portanto, da Constituição de 1988, mas com as mulheres apenas como quadros de reserva ou complementares. Sua inserção nos quadros tradicionais, ainda que parcialmente, ocorreu apenas em 1997 no caso da Marinha, e em 1995 no caso da Aeronáutica. O Exército, a partir de 1992, gradualmente recebeu mulheres nas áreas de administração, saúde e engenharia.
Nas áreas-fim de defesa nacional, apenas a Aeronáutica incorporou mulheres e, mesmo assim, parcialmente. O Exército só agiu de maneira reativa ao decreto de Dilma Rousseff, forçando a entrada das mulheres na Academia Brasileira das Agulhas Negras. Ainda assim, a força terrestre restringe o acesso das mulheres à Intendência e Material Bélico, áreas de especialização menos valorizadas dentro do oficialato, e elas podem chegar, no máximo, à 3ª estrela no generalato. Na prática, significa que em 30 anos teremos, no máximo, mulheres generais, nunca alguém no Alto Comando. Na Aeronáutica, o concurso é universal para ambos os sexos. Na Marinha e Exército, são previstas cotas em torno de 10% das vagas para mulheres.
Nos EUA, as mulheres foram incorporadas em 1948, mas apenas em 2013 entraram plenamente nas unidades de combate. Atualmente são cerca de 16% do total de efetivo, chegando a 19% dos oficiais, como a general Laura Richardson, de quem tratamos no último texto. Países como Alemanha, Portugal, Austrália e África do Sul também permitem o total acesso das mulheres. Na América Latina, destacam-se Chile, Uruguai e Argentina.
Os quartéis brasileiros registram crescimento constante do número de mulheres (com exceção da Marinha), mas não ultrapassam 10% do efetivo total, e isso contando as mulheres temporárias (ficam no máximo dez anos na tropa), e aquelas com atividades tradicionalmente associadas ao feminino, como enfermeiras e secretárias.
A imprensa militar e civil (em que pese algumas exceções) esforça-se para tirar a roupa de Diadorim, com uma cobertura que ressalta que as recrutas do sexo feminino seguem usando acessórios, maquiagem, mesmo quando chafurdando na lama durante treinamentos. Impossível não lembrar da clássica resposta da mais famosa franco-atiradora soviética, Lyudmila Pavlichenko. Em um giro pelos EUA, a mulher que mais matou soldados alemães do regime nazista foi questionada sobre o uso de maquiagem nos campos de batalha, e respondeu: “– mas quem tem tempo de pensar o quanto brilha seu nariz no meio de uma batalha?” Muitas mulheres sobrecarregadas com o trabalho produtivo e reprodutivo atual, mesmo em tempos de paz, talvez dessem a mesma resposta.
Nas últimas semanas, surgiram declarações do ministro da Defesa do Brasil, José Múcio, sobre a necessidade de promover a participação feminina nas fileiras. Essa mudança é reflexo dos avanços feministas sobre as mulheres no mundo do trabalho produtivo, da necessidade de dar uma nova imagem institucional às Forças Armadas, e mesmo de pressões e normativas internacionais para a inclusão de mulheres de modo a coibir a prática do estupro nos ambientes de conflito armado, prática cometida contra mulheres “inimigas”, mas também contra companheiras de farda que ousaram estar em um lugar que não foi feito para elas.
Questionado, o ministro esclareceu que a intenção é incluir um percentual de mulheres (em discussão, o ministro pediria mais, a caserna, clamaria por menos) no recrutamento obrigatório. Hoje o alistamento é voluntário. Fácil imaginar que trabalho será reservado para elas – o da limpeza – e onde serão alocadas – unidades militares de elite –, nas quais farão a limpeza para os oficiais. Ironia das ironias, o ambiente do quartel é um dos poucos em que homens de baixas patentes fazem todo o serviço doméstico. Ao invés de discutir a pertinência do recrutamento obrigatório, amplia-se o problema.
As mulheres sempre estiveram presentes na guerra, e não apenas como prostitutas ou vítimas de estupro. Elas eram as responsáveis pela logística nas guerras anteriores à modernização, como a do Paraguai. Depois disso, foram confinadas nas áreas administrativas e de saúde. As grandes guerras foram também uma oportunidade para que as mulheres saíssem do lar e fossem inseridas na produção econômica, ocupando as vagas dos homens que estavam no front. Na URSS, políticas como creches, lavanderias e cozinhas comunitárias foram conquistas das mulheres no front do trabalho produtivo e no front militar.
Svetlana Aleksiévitch, autora do fantástico livro A guerra não tem rosto de mulher, ensina o que fazer diante de um fascista como aqueles que aplaudiam a exposição da arte degenerada. Resgatando novamente Lyudmila Pavlichenko, quando questionada sobre quantos homens havia matado na guerra, respondeu: “Não eram homens, eram fascistas. 309”.
O rosto feminino na guerra convencional e irregular serão temas para novos textos, assim como os e as combatentes LGBT+. O rosto que luta, o rosto que é vítima, o rosto que cuida. Por enquanto, importa pontuar que, se a guerra não tem rosto de mulher, certamente a paz terá.
(*) Ana Penido é pós-doutorada em ciência politica pela Unicamp, pesquisadora do Grupo de Estudos em Defesa e Segurança Internacional (Gedes – Unicamp) e do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.