Publicado originalmente em Jornal da UFRGS. Para acessar, clique aqui.
Artigo | Nilza Colombo, da Museologia, ressalta o estímulo ao olfato como uma busca de se ampliarem as possibilidades perceptivas do corpo em uma sociedade que tende a priorizar a visão
*Por Nilza Colombo
*Ilustração: Ayla Dresch/ Programa de Extensão Histórias e Práticas Artísticas, DAV-IA/UFRGS
O olfato é a faculdade sensorial que permite ao corpo a apropriação do espaço instantaneamente. O ato da respiração é um convite à entrada dos cheiros que passeiam pela memória, podendo ser capazes de despertá-la para realidades não atingidas pelos demais sentidos. Sob essa perspectiva, torná-lo poética artística parece uma alternativa ao ocularcentrismo imperante nas artes, e a artista multimídia Josely Carvalho assimilou esse princípio em suas obras.
Josely Carvalho nasceu em 1942 na cidade de São Paulo. Na década de 1960 foi para os Estados Unidos, onde concluiu o curso de Arquitetura e Urbanismo na Washington University, em Saint Louis, em 1967. Paralelamente aos estudos arquitetônicos, fez cursos de gravura, desenho e serigrafia. Lecionou na Universidade Autônoma do México (UNAM), no México, e na Universidade da Virgínia (EUA), quando buscou estimular o sensorial nas práticas de ensino. Em consonância à valorização dos sentidos na prática acadêmica, Josely manteve presente o ativismo social que percorre sua produção artística.
Pesquisei a produção artística da artista em meu trabalho de conclusão no curso de graduação em História da Arte na UFRGS. Realizei duas entrevistas online com a artista durante a pandemia e participei da Caminhada Olfativa, conduzida por Josely na instalação Entre os Cheiros da História no ano de 2023 no Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro. Após análise da trajetória artística, identifiquei três fases em que os cheiros foram utilizados de formas distintas
A primeira delas ocorreu na década de 1980. Nesse período, o olfato foi utilizado em suas obras como memória, e não como aroma de fato. A partir das memórias de infância com a avó, Josely criou uma série denominada Cheiro de Peixe (1984-1986), que engloba um conjunto de trabalhos que evidenciam preconceitos contra as mulheres a partir de mitos construídos e sustentados pelo imaginário coletivo. A atribuição do cheiro de peixe como elemento depreciativo foi reconhecida pelo antropólogo David Le Breton na tribo Dassanetchs, residente no sudoeste da Etiópia. Nela, a partir dos odores que emanam, seus membros se identificam e se diferenciam socialmente, inclusive em relação à função que exercem.
Em seu livro La Saveur du Monde: une anthropologie des sens (Antropologia dos sentidos), publicado em 2007, o autor menciona que o povo é dividido em duas atividades: a pastoril e a pesqueira. O cheiro das vacas, vinculado à prosperidade e à fertilidade, foi considerado como bom; já o do peixe foi atrelado à infertilidade e considerado algo ruim. Baseada na perspectiva dos odores, a sociedade da tribo Dassanetchs foi estabelecida, ressaltando a superioridade de quem pratica a atividade pastoril sobre a pesqueira, uma vez que as vacas representam, para os Dassanetchs, a materialização da fertilidade. O peixe, por outro lado, representa o oposto, pois é visto como um animal desprovido de órgãos sexuais. Por esse ângulo, a atribuição do cheiro de peixe à vagina resgata uma concepção de defeito ou de imperfeição que diminui a mulher em razão de uma possível infertilidade. Com a exposição, Josely convida à crítica à perpetuação desses direcionamentos.
A segunda fase olfativa da artista é caracterizada pelos aromas como presença real em suas obras por meio da parceria estabelecida em 2009 com a empresa suíça Givaudan. Com ela, produziu sua primeira fragrância, o cheiro do ninho, que foi utilizada na instalação Nidus vítreo (2011), exposta no Museu de Belas Artes do Rio de Janeiro. A instalação tinha 1.000 galhos de resina de vidro que Josely transformou em um ninho com a arquitetura do pássaro, que o executa a partir do espaço que tem disponível.
A ideia do ninho é apresentada como um local de abrigo que, ao mesmo tempo, revela sua fragilidade como estrutura de proteção. Apesar da ambiguidade, o ninho exala cheiros que impregnam a memória. Nesse sentido, em meio aos galhos, a artista distribuiu dispersores com o cheiro de ninho, que para ela é a união dos aromas de cocô de criança, pele de criança, de cabecinha de criança, galho, pluma, bactéria, xixi e terra. A reflexão apresentada por Nidus vítreo parece se aproximar das questões de migração e de mudanças repentinas com dificuldades de integração.
A terceira fase da produção artística de Josely pode ser identificada na instalação Entre os Cheiros da História. Nela, a artista, consciente do desconhecimento da força do olfato como protagonista na percepção do mundo e nas narrativas sociais, buscou significados nos canhões da história militar do Brasil, utilizando os cheiros que entram no corpo pelas narinas e aguçam a memória. A artista apresentou na instalação canhões datados entre o período colonial e a Primeira Guerra Mundial. Uma experiência sensorial olfativa que possibilita uma revisão da História e da própria arte.
Pela primeira vez, Josely Carvalho não produz nenhum objeto a ser exposto, sendo o cheiro a arte única a dialogar com os canhões. Os aromas foram encapsulados e inseridos na boca de cada canhão. Para senti-los, cada pessoa teve que ficar com a cabeça em frente ao local em que o objeto mortífero atinge o corpo. É uma situação desconfortável, porém necessária, para a reflexão histórico-social estabelecida a partir dos cheiros.
A crítica política se mostra presente em todas as fases na trajetória de Josely Carvalho. Desde a motivação à participação ativa da mulher na sociedade até a proposta de revisão social, Josely milita por meio da arte em prol de uma sociedade mais igualitária. Dentre as várias linguagens que vem utilizando em sua poética ao longo de uma vida, o estímulo ao olfato se destaca pela ampliação das possibilidades perceptivas do corpo em meio a uma sociedade que tende a priorizar a visão. Sua escolha em enfatizar a sensibilidade olfativa se coloca como uma resistência ao senso comum do ofício artístico, que, muitas vezes, prioriza o ocularcentrismo corrente.
Nilza Colombo é graduada em História da Arte, professora substituta no curso de Museologia da UFRGS e docente de Arquitetura e Design na Feevale.