Publicado originalmente em Jornal Beira do Rio UFPA. Para acessar, clique aqui.
Por Bruno Roberto Foto Alexandre de Moraes
Além dos elementos materiais e técnicos, a arquitetura deve ser entendida como um artefato cultural humano, pois uma construção consegue indicar os contextos político, social e econômico de uma época. Provavelmente já se viu bens patrimoniais que deveriam ser preservados serem demolidos ou sofrerem adaptações para a construção de novos prédios. Em Belém (PA), nota-se o apagamento frequente de exemplares da arquitetura moderna, uma produção que se desenvolveu a partir dos anos 1940.
“Esses apagamentos se dão de várias formas: alterações bruscas em elementos diferenciais do edifício, ausência de manutenção adequada, abandono e até mesmo demolição. Cada um desses exemplares, tais como casas, edifícios comerciais ou escolas, narra fragmentos da história da cidade. Apagá-los é equivalente a silenciar importantes informações e índices socioculturais e econômicos sobre a Belém da segunda metade do século XX”, informa Rebeca Dias, mestra em Arquitetura e Urbanismo.
A professora Celma Chaves, que pesquisa a arquitetura moderna em Belém desde 2009, com Bernadeth Beltrão e Rebeca Dias, são autoras do artigo A arquitetura moderna em Belém como objeto e documento de investigação: da invisibilidade ao reconhecimento, que expõe os resultados parciais da pesquisa em andamento Transformações na cultura arquitetônica em Belém entre 1940-1980, desenvolvida no Laboratório de Historiografia da Arquitetura e Cultura Arquitetônica (Lahca) da UFPA.
Neste artigo, as pesquisadoras analisaram obras modernas, mediante seus aspectos históricos e técnicos, e explicaram a problemática do apagamento da arquitetura e da falta de conhecimento da sociedade sobre o tema. Os projetos arquitetônicos analisados pelas pesquisadoras são projetos originais do engenheiro e arquiteto Camillo Porto de Oliveira, doados pelo engenheiro Antônio Couceiro, em 2016. Ao todo, segundo o artigo, está catalogado um conjunto de 121 projetos, entre novas construções, reformas e ampliações produzidas entre as décadas de 1940 e 1970. Entre elas, estão: o prédio da Secretaria Executiva de Transportes (Setran), a sede social do Clube do Remo e a residência Bittencourt.
“Camillo Porto de Oliveira foi o mais expressivo engenheiro e arquiteto do moderno em Belém. Além dos inúmeros projetos e obras construídas para famílias abastadas e órgãos públicos, ele foi um dos responsáveis pela criação do Curso de Arquitetura da UFPA, em 1964”, relata Celma Chaves.
Obras privilegiavam a funcionalidade dos espaços
Na arquitetura moderna, destaca-se a racionalização construtiva. A ideia era projetar ambientes funcionais, que atendessem às exigências técnicas do momento e aos usos que as pessoas fariam, sem espaço para elementos decorativos vistos em períodos anteriores.
Entre as características das construções modernas, as autoras apontam o uso de linhas geométricas bem definidas, telhados em V, marquises, concreto armado e vidro, espaços internos fluidos e integração das obras com seu entorno, por meio do uso de transparências e jardins, conforme repertório usual na arquitetura moderna brasileira.
Além dessas características, cada região demandava particularidades. Por exemplo, a arquitetura moderna idealizada na Amazônia precisava se adequar ao clima local. “Gosto de pensar que Belém encontrou sentido exato para algumas soluções típicas da arquitetura moderna, exemplo, um brise-soleil, dispositivo vazado para iluminação e ventilação, comumente utilizado nas obras modernas, faz mais sentido numa realidade de clima quente e úmido. Outra característica da arquitetura moderna, a ideia de racionalizar, ou seja, otimizar as soluções, parecia fazer muito mais sentido numa economia fragilizada, como era o caso de Belém”, explica Rebeca Dias.
Enquanto, no século XX, as construções modernas eram desejadas, no século XXI elas sofrem um apagamento. Muitas dessas obras estão abandonadas, seja porque a manutenção é inviável, seja porque os novos modos de vida não se adaptam aos programas arquitetônicos dos imóveis, avaliam as autoras no artigo mencionado. Além disso, essas construções geralmente são bem localizadas, possuem boas dimensões e estão em terrenos amplos, atraindo empresas do setor imobiliário, comercial e de serviços. Dessa forma, as obras são demolidas ou modificadas para adequação de novos empreendimentos.
Tombamento não assegura preservação dos bens
Leis, fiscalizações, tombamentos e multas são alguns dos artifícios utilizados para enfrentar o processo de apagamento. Entretanto o artigo questiona se esses processos são suficientes para garantir a segurança de um bem patrimonial. Por exemplo, a Escola Municipal Benvinda de França Messias é tombada pela Fundação Cultural do Município de Belém (Fumbel), mas já passou por reformas que descaracterizaram suas formas originais. A doutoranda Bernadeth Beltrão avalia como falha a atuação do poder público em relação a essas obras, “tanto no que diz respeito à quantidade de profissionais na área técnica de solução projetual como nas áreas de cobrança e fiscalização, o que afeta a qualidade de atuação desses órgãos. Há um acúmulo significativo de bens que devem ser protegidos”.
De acordo com a professora Celma Chaves, muitos proprietários de imóveis de valor patrimonial ou passíveis de tombamento desconhecem esse instrumento de proteção, entendendo-o como prejudicial aos seus interesses. “Isso acaba levando à demolição dos imóveis ou à venda para agentes imobiliários, que, na maioria das vezes, descartam-nos para dar lugar a novos empreendimentos. Talvez falte o entendimento de que um imóvel tombado pode gerar benefícios”, completa.
O desaparecimento da arquitetura moderna está relacionado com a falta de informação da população sobre a história arquitetônica da cidade, pois, se as pessoas desconhecem a importância de uma construção, dificilmente elas vão preservá-la. “Para solucionar esse problema, a educação patrimonial baseada na tríade conhecimento, reconhecimento e preservação pode ser um caminho. Assim como aprendemos, de maneira direta ou indireta, que a área turística de Belém é aquela com casarões e palacetes, também podemos aprender o valor histórico e turístico das obras modernas”, defende Rebeca Dias. Essa proposta já foi oferecida aos órgãos que lidam com o patrimônio pelo grupo de pesquisadores do Lahca e do coletivo Cultura Arquitetônica, Amazônia e Modernidade (CAAM).
A educação patrimonial pode ser promovida pela esfera pública, pela iniciativa privada ou por entidades não governamentais. Um bom exemplo desse tipo de iniciativa é o site Morar Moderno, que disponibiliza um acervo com informações, fotografias e documentos sobre as residências modernas existentes em Belém. O site, criado pelo CAAM, é um projeto premiado com recursos da Lei Aldir Blanc e, segundo Bernadeth Beltrão, visa pensar, pesquisar, produzir e disseminar conhecimento sobre o saber construtivo paraense moderno como parte da cultura local e nacional.