Apesar dos avanços, checagem de fatos ainda não acompanha sofisticação da desinformação

Publicado originalmente em *Desinformante por Liz Nóbrega. Para acessar, clique aqui.

#Panorama2023

Esta entrevista faz parte da série #Panorama2023, entrevistas sobre o contexto da desinformação pós eleições, seus impactos na sociedade e futuros possíveis para combater o problema.

Indicar se uma determinada afirmação é ‘verdadeira’ ou ‘falsa’ não é mais suficiente para o fact-checking, defende a CEO da Agência Lupa, Natália Leal. Nessa entrevista para a série #panorama2023, Leal indica os desafios que a checagem de fatos encontra para alcançar a audiência e acompanhar a produção desenfreada de desinformação.

Para a executiva, o problema é social e deve ser tratado de forma ampla a partir de diversos recursos. No entanto, reafirma o papel do fact-checking na retomada da verdade para o debate público e como a prática vem transformando o jornalismo tradicional, influenciando-o a ser mais transparente e verificável.

Liz Nóbrega: A desinformação ficou mais sofisticada nos últimos anos, como o fact-checking buscou acompanhar esse processo de sofisticação e quais os aprendizados que 2022 trouxe para a checagem de fatos?

Natália Leal: Primeiro a gente precisa estabelecer que o fact-checking não acompanhou a sofisticação da produção de desinformação da maneira como deveria, o que não significa que não tenha melhorado em muitas frentes, mas ainda está muito distante do que a gente precisaria ter como método de combate à desinformação do ponto de vista jornalístico, do ponto de vista da checagem. 

Quando a gente olha para 2018 e faz um comparativo com 2022, nesse ano a gente estava muito mais preparado para monitorar os temas, a gente tinha muitas parcerias – tanto a Lupa, quanto outras plataformas de checagem – com pesquisadores, com universidades, com empresas que desenvolveram ferramentas, então a gente conseguia olhar para mais plataformas, olhar para o que estava circulando e conseguia fazer algumas conexões entre o que estava circulando e objetivos de disseminação de cadeias desinformativas. Conseguimos contar algumas histórias inclusive no sentido de palavras, expressões que viralizaram, de movimentos dentro dessas redes. 

Mas ainda temos um longo caminho para percorrer e o fact-checking precisa fazer uma autocrítica porque apenas indicar se uma coisa ‘verdadeira’ ou ‘falsa’ não é mais suficiente, precisamos encontrar novas maneiras de comunicar a audiência sobre o que está acontecendo. Existem cada vez mais conteúdos limítrofes, conteúdos que não são tão fáceis de serem esclarecidos, que a gente aponte que claramente aquela informação é falsa, mas é uma junção de várias informações verdadeiras que acaba caindo em uma conclusão falsa. A gente ainda tem alguns desafios de metodologia para superar, para poder apresentar uma conclusão mais certeira e que melhore de fato a informação para o público. 

Liz Nóbrega: Nesses últimos anos, o número de agências e iniciativas cresceu significativamente. Como você vê essa expansão da checagem de fatos brasileira em relação a outros países e qual a avaliação que você faz em relação ao fact-checking no Brasil? 

Natália Leal: Eu vejo de uma forma muito positiva essa expansão. Quanto mais a gente tem mecanismos para verificar a informação e quanto mais a gente tem plataformas comprometidas com esse tipo de jornalismo, eu acredito que mais esse assunto se dissemina entre a população e maior é a probabilidade de a gente ter um conhecimento mais amplo sobre isso e construir mecanismos e formas de se combater a desinformação em toda a sociedade, com toda a sociedade, não apenas como se essa fosse uma responsabilidade das plataformas de checagem ou do jornalismo ou das empresas de tecnologia. 

A desinformação é um problema social, um problema da sociedade como um todo, ela não é um problema apenas de quem produz informação, de quem produz conteúdo seja ele jornalístico ou não. Eu acho que é positivo a gente ter uma expansão, mas essa expansão precisa se dar de uma maneira muito responsável e muito ética, seguindo uma metodologia muito clara e lidando com padrões de transparência e apartidarismo que precisam ser o tempo inteiro reafirmados e também revistos. É preciso que a gente faça uma análise crítica do que está sendo produzido e do quanto isso está sendo útil para a qualificação do debate público. Então todas essas iniciativas me parecem positivas, mas a gente precisa seguir os mesmos padrões de produção jornalística que a gente tem em qualquer frente para que o fact-checking seja, de fato, efetivo no combate à desinformação, como a gente espera que ele seja. 

Liz Nóbrega: A gente vive hoje um cenário de extrema polarização. Nesse sentido, qual é a maior limitação do fact-checking? 

Natália Leal: A principal limitação que eu enxergo é o fato de que o fact-checking é visto, primeiro, como um processo jornalístico ligado a um espectro político específico. Já se tem essa ideia na sociedade de que o jornalismo é uma atividade de esquerda, porque o jornalismo expõe algumas violações de direitos, não só humanos, mas algumas violações de direitos que são entendidos por algumas correntes políticas como uma política de esquerda, como temas defendidos pela esquerda. Então o jornalismo já é visto dessa forma e o fact-checking, por expor políticos muito claramente, mais ainda. O principal desafio é a gente manter o apartidarismo, conseguir fazer um trabalho apartidário, que verifique todos os espectros políticos e, ao mesmo tempo, não crie uma falsa simetria, uma falsa impressão de realidade. Que a gente admita que apartidarismo significa checar todos os lados e não necessariamente checar a mesma quantidade de frases de todos os lados, olhar para isso de acordo também com a produção de desinformação que se processa nesse tempo que a gente está vivendo. 

Hoje a gente vive no Brasil uma realidade em que tem um espectro político que produz mais desinformação e que usa essa desinformação como uma estratégia. Então não podemos colocar as duas coisas no mesmo patamar, os dois lados da política no mesmo patamar em termos de produção de desinformação e nem em termos de produção de checagem, dessa contrainformação que a gente faz. Eu acho que esse é um desafio muito grande e o desafio também de a gente manter uma conexão com o público em diferentes formatos de checagem e adaptar a checagem para espectros, conteúdos e plataformas distintas, de modo que ela realmente toque as pessoas, que ela chegue e seja efetiva. Na Lupa, por exemplo, a gente tem diversificado muito os formatos, apostando muito em vídeos curtos, seja no TikTok, seja no Instagram, a gente tem apostado em colaborações no Instagram, durante a eleição a gente fez colaborações com a Folha, que fez a nossa conta dobrar de tamanho e tivemos muito mais engajamento. Não basta mais a gente fazer o nosso trabalho, publicar no nosso site e adaptar para as redes sociais, a gente tem que encontrar outras formas de se conectar com essa audiência para que o nosso trabalho seja efetivo para ela. 

Liz Nóbrega: A desinformação circula e viraliza muito mais rápido do que a própria checagem, até também pelo formato que se faz a checagem, que às vezes demanda muito mais tempo para desmentir, para verificar uma informação. Como vocês sentiram esse desafio em relação às eleições neste ano? 

Natália Leal: Acho que a velocidade que as redes sociais nos impuseram nos últimos tempos é o grande desafio para todas as respostas que a gente venha a ter em todas as frentes para combater a desinformação. Porque nada acompanha a velocidade que as redes sociais produzem. A produção de desinformação em redes sociais sempre vai ser muito mais rápida do que qualquer vacina que a gente possa ter contra isso. Não só de desinformação, mas de qualquer tipo de conteúdo, porque é uma natureza de produção de conteúdo muito distinta do que a gente estava acostumado, fosse no jornalismo, fosse na produção de conhecimento a partir de pesquisa acadêmica ou fosse na justiça como uma forma de a gente lidar com desvios de conduta dentro da sociedade. 

Hoje a gente não tem nada que acompanhe, o que a gente tenta é fazer a checagem da maneira mais rápida e objetiva para dar uma resposta, mas isso nem sempre é possível. Durante a eleição ficamos um pouco com essa sensação de estar um passo atrás. Essa sensação de um passo atrás não é nova, em 2018 a gente também sentia isso e a Lupa já cobriu outras eleições, em 2016 e 2020, que são eleições municipais ainda mais complexas, porque são 5500 eleições ao mesmo tempo. Então a gente sempre teve essa preocupação com a velocidade e é por isso, por entender que a gente nunca vai chegar na mesma velocidade, que apostamos em outras frentes, como a frente da educação midiática, como a frente de colaboração, de trabalhos colaborativos com outras plataformas, até para poupar tempo. 

Durante a eleição, no primeiro e segundo turno, fizemos uma coalizão organizada entre as plataformas de checagem para salvar tempo de trabalho, então se a Lupa estava fazendo uma checagem, o Comprova não apostaria na mesma checagem, faria uma outra e usaria o conteúdo da Lupa. Esses mecanismos nos ajudam a tornar o nosso trabalho mais rápido, mas eu não tenho a ilusão de que algum dia a gente vai chegar na mesma velocidade e acho que a gente perseguir para chegar na mesma velocidade é um erro estratégico do ponto de vista do combate à desinformação. A gente precisa desenvolver outros mecanismos que sejam mudanças mais estruturais, como é o caso da educação midiática, para que a gente não precise acompanhar nessa mesma velocidade. 

Liz Nóbrega: A Lupa publicou, logo após a eleição no primeiro turno, que em 2023 a gente vai ter um Congresso com políticos que têm histórico de propagação de desinformação. O que a gente pode esperar para esse ano e quais vão ser os desafios dos checadores nessa cobertura? 

Natália Leal: Acho que a gente pode esperar uma quantidade de desinformação institucional muito grande. Nos últimos anos a gente tem feito alertas, não só a Lupa, não só eu, mas também a Cristina Tardáguila e outras pessoas também ligadas a esse universo do combate à desinformação, do quão nocivo é para a sociedade a desinformação que parte de pessoas com um lugar de fala assegurado. Pessoas que têm proeminência dentro da sociedade, políticos com mandato, que muitas vezes dentro das políticas de combate à desinformação desenvolvidas pelas plataformas estão protegidos e não podem ter seus discursos taxados de falso, por mais que digam informações, que repitam informações claramente falsas e verificadamente falsas. Porque existe aí uma dissociação e uma polêmica entre o que é a restrição do discurso político e o que é a qualificação da informação que circula naquele ambiente. A gente ainda tem essa discussão para superar e eu acho que isso é um desafio muito grande que precisamos trabalhar junto com as plataformas, entender que pessoas que ocupam cargos precisam ter responsabilidade. O decoro parlamentar que se espera dentro do Congresso tem que ser também passado para redes sociais e não pode existir, como a gente sabe que existe, por exemplo, na proposta do PL2630, uma espécie de imunidade parlamentar nas redes sociais, porque essas pessoas estão, a todo tempo, moldando o pensamento do público, moldando o pensamento dos seus eleitores e dando informações para que essas pessoas comuns tomem decisões no seu dia a dia, então essas pessoas têm que ter responsabilidade. Quem tem mandato tem que ter responsabilidade com a informação que dissemina. 

O fato de a gente ter um Congresso muito mais mentiroso, vamos dizer assim, é um ponto de atenção gigantesco no nosso trabalho, porque a gente vai ter que continuar verificando essas pessoas, acompanhando essas pessoas, desenvolvendo tecnologias para acompanhá-los em diferentes frentes, e, muitas vezes, a gente vai entrar em embates sobre a discussão do que é o limite entre a verificação e o discurso público, o limite entre a verificação e a liberdade de expressão, o limite entre o que pode ser verificado e o que está assegurado pelo mandato para essas pessoas. 

Então 2023 vai ser um treino importante, porque a gente vai ter também 2024 e 2026. No caso da Lupa, o que a gente está buscando fazer é construir ferramentas que nos permitam monitorar de forma automatizada esses atores e que isso funcione como um banco também para que outros jornalistas e pesquisadores possam entender o fluxo de desinformação, que a gente espera que seja muito alto, e que vai estar partindo dessas pessoas que vão estar lá em Brasília a partir do dia 1º de janeiro. 

Liz Nóbrega: Natália, para finalizar: nos últimos anos o fact-checking cresceu de uma forma muito exponencial no Brasil e no mundo, tendo muita visibilidade. Como você enxerga a vinda do fact-checking na mudança das práticas jornalísticas, digamos assim, do jornalismo tradicional? Você percebe algumas mudanças nesses últimos anos? 

Natália Leal: Eu percebo algumas mudanças e eu acho que o fact-checking tem méritos muito importantes. A imprensa tradicional passou a ter práticas que ela tinha, talvez, esquecido há um tempo atrás, a partir das práticas do fact-checking: a transparência, principalmente de onde saiu esse dado, qual é o dado, por que eu estou trazendo essa informação para essa matéria, eu acho que é um ponto importante. A gente tem iniciativas como The Trust Project, que é um conjunto de boas práticas de transparência para trazer mais credibilidade e, dentro do Trust Project, a gente tem uma coisa específica para que os veículos expliquem por que estão cobrindo aquele tema e qual é o background que tem os seus repórteres que estão cobrindo aquele tema, o que ajuda a trazer um pouco mais de credibilidade. Essa transparência e busca de credibilidade vieram muito da implementação do fact-checking no Brasil. 

Eu vejo que os veículos mais tradicionais ficaram mais atentos com o jornalismo declaratório também, passou a se contar um pouco menos com a interpretação do leitor e a se lavar menos as mãos. A gente teve um momento na imprensa brasileira em que a gente apenas reproduzia uma fala sem nenhum tipo de contraditório, sem nenhum tipo de contraposição e deixava que as pessoas tirassem suas próprias conclusões, mesmo que soubéssemos que aquela fala não condizia com a realidade. Então acho que era um momento de um pouco de irresponsabilidade dos veículos com a informação e com o seu compromisso com o público. 

Eu gosto muito, me satisfaz muito, ver quando um veículo tradicional, como uma Folha de São Paulo, um Estadão, Uol, Globo, indica que um político mentiu, que um político disse uma fala falsa, comprovadamente falsa. Porque há um tempo atrás o que a gente veria seria a reprodução dessa fala sem nenhum tipo de contraposição. Então eu acho que esse é um mérito que o trabalho do fact-checking tem e que não vejo que isso teria mudado se a gente não tivesse as plataformas de checagem o tempo inteiro dizendo: “isso aqui é falso, isso aqui é falso, essa pessoa já falou isso cinco vezes e a gente já mostrou que é falso”. A gente fica o tempo inteiro trazendo essa discussão de que não dá mais apenas reproduzir falas e não fazer uma crítica, uma observação crítica dessas coisas. Então eu acho que esses são méritos que a gente não pode tirar do trabalho das plataformas de checagem e do fact-checking como gênero inserido dentro do jornalismo brasileiro.  

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