Apesar de mudanças na lei, bioma Pampa sofre com perda de vegetação

Publicado originalmente em Jornal da UFRGS. Para acessar, clique aqui.

Meio ambiente | Bioma que faz parte da cultura e história do Rio Grande do Sul perdeu mais de 3 milhões de hectares de vegetação nativa desde 1985

*Foto: Valerio Pillar

É o meu Rio Grande do Sul
Céu, sol, sul, terra e cor
Onde tudo o que se planta cresce
E o que mais floresce é o amor

- Trecho de "Céu, sol, sul, terra e cor", de Leonardo

Uma das mais conhecidas do gênero nativista, a canção que abre esse texto afirma, em sua estrofe mais famosa, que no estado “tudo que se planta cresce”. Em outra parte, a música fala em “ver os campos florindo” e “mostrar para quem quiser ver / um lugar pra viver sem chorar”. Apesar de não citar diretamente o Pampa, “Céu, sol, sul, terra e cor” descreve os campos do RS, marcados pelo bioma que é parte da cultura do estado.

O bioma Pampa é formado por planícies e eventuais regiões de relevo mais “ondulados”, com uma vegetação majoritariamente rasteira em que há grande biodiversidade. Presente em pouco mais da metade do RS, o bioma abriga ao menos 3.000 espécies de flora e quase 500 espécies de fauna. Certos tipos de gramíneas, arbustos e animais – como o tuco-tuco, o sapinho-de-barriga-vermelha e o veado campeiro – são nativos dessa região.

Apesar do orgulho gaúcho, que afirma os campos nativos como parte da cultura e história do estado, o Pampa foi o bioma que mais perdeu área em termos percentuais entre 2000 e 2018, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)Dados divulgados no final de agosto deste ano pelo MapBiomas apontam que, juntamente com o Cerrado, o Pampa foi o bioma que mais perdeu área de vegetação nativa em termos proporcionais ao próprio tamanho: entre 1985 e 2023, o Pampa perdeu 28% de área de vegetação nativa, o que corresponde a 3,3 milhões de hectares.

MapBiomas aponta que, em 1985, a área composta por vegetação natural não florestal – basicamente de formação campestre – no Pampa correspondia a 49,34% do território, enquanto 27,95% era de zona agropecuária. Em 2023, a área natural não florestal ocupava 31,34% do bioma e a agropecuária correspondia a 45,26%.

De acordo com o professor do Instituto de Biociências da UFRGS e coordenador da Rede Campos Sulinos Valério Pillar, a vegetação nativa do Pampa está sendo suprimida para uso agrícola, com a soja como principal tipo de lavoura – essa cultura, inclusive, tem substituído outros tipos de plantio.

(Fotos: Rede Campos Sulinos/Arquivo)
A legislação e a fragilidade na proteção

O reconhecimento da necessidade de preservação do Pampa é algo recente. Na Constituição Federal de 1988, por exemplo, ele não é citado no capítulo sobre meio ambiente, e foi só em 2004 que o Pampa foi reconhecido como bioma pelo IBGE. As alterações na Lei Federal de Proteção da Vegetação Nativa de 2012, entretanto, passam a abranger as formações campestres por meio da utilização de termos como “vegetação nativa” – antes, a legislação citava apenas as florestas.

Já a Constituição Estadual estabelece o compromisso de valorizar e preservar o Pampa e a sua cultura. Enquanto isso, o Código Estadual do Meio Ambiente, que passou por mudanças em 2020, aborda o bioma de maneira mais específica e afirma que ele terá suas características definidas em regulamento específico – que ainda não existe.

No entanto, o Código Ambiental possibilita certas fragilizações do bioma, segundo especialistas. Em julho deste ano, um grupo de professores da UFRGS elaborou uma planilha com as mudanças feitas no Código em 2020 e possíveis implicações. Um dos autores da comparação, o professor do Instituto de Biociências da UFRGS Gonçalo Ferraz, ressalta uma definição: a “área rural consolidada”. Esse termo, explica, se refere a um território que era vegetação nativa e passou a ser usado de outra forma antes de determinado período especificado na lei. Ele considera que, quando um local é dito como área rural consolidada, se torna mais fácil utilizá-lo sem preservação.

As áreas rurais consolidadas podem ser definidas dessa forma por “supressão de vegetação nativa” ou “para uso alternativo do solo”, envolvendo atividades “agrossilvipastoris”. O último termo gera discussões entre pesquisadores, tanto ao criticarem a amplitude nas atividades que ele engloba quanto na brecha deixada em relação à atividade pastoril. Também autor do estudo que analisou as modificações do Código Ambiental, Valério Pillar destaca que o campo nativo pode continuar existindo nesse tipo de produção e, por isso, seria necessário um olhar mais atento à definição.

Os problemas referentes ao uso do termo “agrossilvipastoril” também são apontados por Rodrigo Dutra, analista ambiental do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). “Se eu digo que tudo é consolidado, eu não preciso recuperar”, afirma Rodrigo – afinal, a criação de gado no RS remonta ao período da colonização ibérica.

Desde 2015, há uma disputa judicial em relação às declarações de área rural consolidada por atividades pastoris. Entidades ambientalistas ingressaram na justiça contra trechos do decreto vigente na época e obtiveram liminar que assegura que espaços com atividade pastoril não poderão ser consideradas área rural consolidada. Com a sanção do Código Estadual do Meio Ambiente em 2020, porém, há dúvidas se a liminar segue vigente.

Outra mudança feita em 2020 passou a admitir como área consolidada atividades agrossilvipastoris em período de pousio, ou seja, quando a terra é deixada para “descanso”. Para Gonçalo, isso facilita que qualquer local, mesmo que nunca tenha sido usado, seja alegado como em pousio.

Dificuldades de fiscalização

O Ibama e a Secretaria Estadual do Meio Ambiente e Infraestrutura (Sema) têm a função de fiscalizar e proteger o meio ambiente. De acordo com a lei, qualquer tipo de degradação ambiental exige liberação prévia. Por lei, todas as propriedades rurais precisam manter 20% de sua área como Reserva Legal, espaço em que não pode haver atividades que causem a supressão da vegetação nativa. Ainda assim, 80% dos campos nativos em propriedades podem ser extintos segundo a legislação.

De acordo com Rodrigo, também há muita supressão ilegal dos campos. Pelo monitoramento por satélite, o Ibama consegue identificar grandes regiões afetadas e realizar visitas de verificação. Há, porém, poucos fiscais disponíveis para dar conta de todas as demandas: em janeiro do ano passado havia apenas 15 fiscais trabalhando no Rio Grande do Sul; em julho deste ano eram 800 em todo o Brasil. Para tentar suprir a falta de mão de obra, os fiscais costumam reservar um mês do ano, quando ocorre mais supressão do campo, para um acompanhamento mais intenso.

A Sema afirma que “tem atuado em várias frentes no intuito de garantir a proteção e recomposição de áreas de vegetação nativa no estado”. A pasta também cita iniciativas como o Programa Estadual de Recuperação da Vegetação Nativa (Proveg/RS), que objetiva ampliar a regularização ambiental de propriedades rurais, incentivar a conservação e restauração de áreas e incentivar projetos e políticas públicas de apoio à restauração da vegetação nativa.

A secretaria afirma que as mudanças de 2020 no Código Ambiental passaram “a prever uma série de medidas de proteção à vegetação nativa […]. O novo Código também aprimorou o poder de polícia dos órgãos ambientais.” E que, a partir dessas alterações, o Pampa passou a ser protegido por lei.

O órgão também afirmou que um levantamento recente da ONG SOS Mata Atlântica, usando dados do MapBiomas, “aponta que o desmatamento no RS caiu 75% em setembro e outubro de 2023”. A pasta não menciona, entretanto, que esse dado na verdade se refere ao bioma Mata Atlântica.

Valério também alerta que esses levantamentos normalmente consideram o sistema de alertas do MapBiomas e podem gerar uma falsa impressão de redução da supressão campestre. Os dados se referem a áreas com vegetação florestal, detectando apenas áreas de campo que estão próximas às florestas, como explica uma matéria da própria Sema.

O pesquisador também comenta os dados sobre uso e cobertura do solo publicados pelo MapBiomas no fim de agosto. No Pampa, foram perdidos 132 mil hectares de campo entre 2022 e 2023. De acordo com Valério, o número é um pouco abaixo da média que se mantém desde 2012 – cerca de 139 mil hectares por ano.

A perda de vegetação não tem um impacto direto na quantidade de chuvas que causaram as cheias de maio no RS, porém Valério explica que, caso o solo não estivesse tão desprotegido, a água poderia ter subido mais devagar e com menor quantidade de barro. Em uma escala global, a supressão da vegetação nativa colabora para o aquecimento global, o que afeta a mudança de temperatura do planeta.

A Sema diz que está trabalhando junto com a Secretaria da Agricultura, Pecuária, Produção Sustentável e Irrigação (Seapi) no Plano ABC+RS, buscando reduzir a emissão de gases do efeito estufa e estimular a “cobertura permanente do solo, rotação de cultura, e terraços” para ajudar na maior capacidade de retenção de água pelo solo.

Possibilidades

A criação pastoril, especialmente a de gado bovino, faz parte da história do estado. Permanecem no imaginário gaúcho a cena do barco sendo levado por uma carreta de bois durante a Guerra dos Farrapos ou mesmo que essa guerra começou por causa do aumento dos impostos do charque. Apesar da tradição nesse tipo de a atividade, ela tem sido deixada de lado para a criação de grandes cultivos – principalmente de soja, que registrou um aumento de 101% na área cultivada entre 2001 e 2020.

A criação de animais em campo nativo, no entanto, é uma alternativa que ajuda a preservar a vegetação. É o que explica o professor aposentado da Faculdade de Agronomia da UFRGS Carlos Nabinger. Ele destaca que é preciso alinhar a quantidade certa de animais por extensão de terra para não sobrecarregar o pasto e disponibilizar alimento o suficiente para os bichos.

O docente acrescenta que os estudos e a práticas comprovam que colocar menos animais em uma região com grande quantidade de pasto faz com que eles engordem rapidamente, ficando prontos para abate em menos tempo. Assim, no longo prazo se aumenta a produtividade do campo.

Vera Colares é pecuarista em campo nativo na zona rural de Bagé, na região da Campanha. Ela vê na prática o que Carlos afirma. Para ela, a alimentação de pasto nativo se reflete na saúde dos animais e até no sabor da carne. Vera também percebe como a vegetação é afetada pelas chuvas e pela seca. “Às vezes parece que tá tudo morto, […] daqui um pouquinho chove, no outro dia tá tudo florido. É uma coisa impressionante a capacidade de regeneração.”

Resgatar o uso dos campos nativos para manejo e criação de animais permite aos proprietários uma forma de renda e também a preservação do Pampa. Ao manter os animais em campo, eles ajudam na troca genética e na adubação do solo, o que colabora para o desenvolvimento da vegetação. Mesmo que o Rio Grande do Sul seja o lugar “onde tudo o que se planta cresce”, vale questionar qual o custo desse cultivo para o meio ambiente e se parte da história do gaúcho não está se perdendo junto com o Pampa.

Compartilhe:

Share on whatsapp
Share on twitter
Share on facebook
Share on email
Share on linkedin
Share on telegram
Share on google
Language »
Fonte
Contraste