Publicado originalmente em Jornal da Universidade por Elstor Hansen. Para acessar, clique aqui.
Ciências Humanas | Questionada, contestada e até banida dos currículos escolares em nome de conhecimentos “mais úteis e funcionais”, a Filosofia demonstra como as crenças de cada um afetam toda a sociedade
*Foto: Rochele Zandavalli/Secom
Por entender a Filosofia como a base do pensamento, do conhecimento e da ciência, um coletivo de professores, pensadores e alunos organizou grande mobilização no final de 2021, em Porto Alegre, contra a proposta da Secretaria Municipal da Educação (SMED) de excluir a disciplina dos currículos escolares do ensino fundamental e aumentar a carga horária de Português, Matemática e Religião do primeiro ao nono ano. “A introdução à Filosofia no ensino fundamental, justamente na fase da pré-adolescência e adolescência, é crucial na formação da personalidade dos jovens estudantes, ao abordar e aprofundar temáticas pertinentes e sensíveis, como ética, lógica, estética, filosofia política, epistemologia, linguagem, só para citar alguns”, argumenta o professor de História e Filosofia da Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre e mestre em Educação Marco Mello.
Junto com o também professor de Filosofia na rede municipal da capital e mestre em Comunicação André Pares, Marco é um dos organizadores do e-book Fica Filosofia! Pela permanência da disciplina nas escolas públicas de Porto Alegre, lançado em dezembro de 2021, com apoio da Associação dos Trabalhadores em Educação de Porto Alegre e da Seção Sindical do ANDES-UFRGS. Conforme André, é um livro de resistência à retirada dessa disciplina de Ciências Humanas das escolas públicas do município, onde é ensinada desde 1995. “Foi uma sistematização coletiva dos muitos movimentos que visaram barrar a proposta pedagógica imposta pela atual gestão da SMED em pleno contexto pandêmico”, afirma o professor.
A publicação, de aproximadamente 140 páginas, registra as produções de docentes, estudantes e comunidade escolar em torno da frase-chave: Fica Filosofia. “As reações ao livro foram incrivelmente potentes; ele emocionou muitas vezes os que o leram e acompanharam os lançamentos, com reconhecimento pela diversidade de autores, combinação de linguagens, apuro na estética e a própria pertinência temática. A luta da Filosofia ganhou relevância no cenário nacional e virou símbolo de uma luta contra o irracionalismo, a insensatez e a censura”, completa.
O professor do Departamento de Filosofia da UFRGS Eros Moreira de Carvalho reconhece que as humanidades estão perdendo espaço na formação do jovem, e isso, inegavelmente, terá impacto negativo sobre sua capacidade de pensar a sociedade, os seus problemas e a si mesmo.
“Para além das questões pedagógicas que têm a sua autonomia própria, a pergunta sobre que educação queremos ter, qual o seu objetivo central, é indissociável da pergunta sobre que sociedade queremos ter. Tenho a impressão de que a nossa sociedade já não dá muito espaço para a última pergunta. Na ausência dela, alguns modelos educacionais, por exemplo, o centrado na figura do empreendedor, não estão focados no cidadão e se impõem como única opção. Isso me parece ser um problema.”
Eros Carvalho
Ética da crença
Segundo Eros, a Filosofia tem muito a dizer sobre o fenômeno das notícias falsas. Atualmente, há um debate muito vivo envolvendo o campo da ética da crença, ou seja, o que se deve fazer para crer de modo legítimo. “William Clifford, no famoso ensaio A Ética da Crença, chamou a atenção para o fato de que as nossas crenças raramente são privadas, se é que alguma seja, pois elas servem de base para cursos de ações que afetarão outras pessoas. Não temos como isolar as nossas crenças. Quem, durante a pandemia, não usa máscara porque, sem a devida investigação, acredita que elas são ineficazes vai acabar prejudicando outras pessoas”, enfatiza o professor.
Então, sendo a crença praticamente um bem comum, há o dever de crer com base em indícios sólidos. A crença que não for precedida de investigação adequada seria, assim, ilegítima. Ela exibiria negligência ou falta de consideração pelo outro. “De fato, zelamos pelo outro em parte zelando pelas nossas crenças. Clifford desfaz uma confusão que vemos frequentemente na boca das pessoas quando dizem que são livres para crer no que quiserem e que ninguém tem nada a ver com isso”, avalia Eros.
Conforme o docente, as pessoas são ou deveriam ser livres para formar as suas opiniões sem coerção. No entanto, não há plena autonomia para formar a crença de qualquer maneira. “A exigência de que se considere a evidência não é uma coerção, mas o que possibilita, na verdade, que a pessoa seja racionalmente autônoma”, observa.
Seguindo essa trilha de raciocínio, o professor chega ao ponto das notícias falsas. “Assim, quem consome fake news ou as compartilha comete, aos olhos de Clifford, um grave erro, não só contra si, mas, sobretudo, contra a humanidade. Temos de ser mais zelosos com respeito ao que cremos e ao que falamos (e compartilhamos) pela simples razão de que crenças falsas e desinformação prejudicam os outros”, pondera o filósofo. Os movimentos antivacina são um exemplo disso, porque tornam mais difícil a absorção do conhecimento dos especialistas acerca da confiabilidade das vacinas para a população. “Na dúvida quanto à veracidade dos fatos, diria Clifford nos dias de hoje, não compartilhe”, alerta.
Por isso, os organizadores do e-book concordam que deixar o debate da Filosofia e da Ciência para especialistas, ou seja, só para quem é da área, pode ser trágico para a vida em sociedade. A falta de conhecimento e pensamento crítico tende a favorecer as notícias falsas e o negacionismo.
De acordo com Marco, para uma parcela da sociedade que faz apologia ao movimento anticiência e desqualifica as regras de civilidade, não importa a natureza dos argumentos e a verdade, mas tão somente os efeitos discursivos utilitários na lógica de seus projetos. “Infelizmente, tem sido regra esse movimento e método articulados; o caso da reforma da grade curricular aqui é um exemplo. O fim da Filosofia, portanto, é absolutamente coerente para eles, porque, em última análise, não se quer democracia, diálogo, liberdade, tampouco a busca da verdade”, destaca.
Debate público
Segundo Matthew D’Ancona, autor do livro Pós-verdade: a nova guerra contra os fatos em tempos de fake news, pode-se dizer que esta é uma fase do “triunfo do visceral sobre o racional, do enganosamente simples sobre o honestamente complexo”, um período em que os fatos são cada vez mais desvalorizados, enquanto opiniões, paixões e crenças ganham força. Nesse contexto, prospera a circulação de informações contra vacinas, por exemplo, sem nenhuma base científica.
O que inegavelmente observamos é o uso de estratégias negacionistas ou de produção de ignorância por parte de setores da sociedade no debate público. Essas estratégias são usadas por quem quer manipular a opinião pública. Isso sempre existiu, mas agora temos de reconhecer que a internet e as redes sociais, para onde em parte o debate público migrou, potencializam o uso dessas estratégias.
Eros Carvalho
Quando o debate público fica sobrecarregado pelo uso desses procedimentos, tem-se muita dificuldade de obter consensos, acordos; por conseguinte, a capacidade de coordenação social para a resolução de problemas fica severamente comprometida.
Disciplina indispensável
Questionado sobre o ditado popular que diz: “quem pensa não faz”, Eros não hesita. “De imediato, digo que quem não pensa corre um sério risco de fazer errado”. Como exemplo, cita o quanto a ignorância e a negação do conhecimento têm custado individual e coletivamente, ceifando centenas de milhares de vidas na negação da covid-19. “Voltando ao dito popular e mantendo o bom senso em ordem, é saudável que evitemos os extremos e, certamente, pensar e nunca colocar as ideias em prática é algo que não devemos almejar. Ideias precisam ser testadas ou então não vamos melhorá-las e descartar as ruins ou falsas. Há também situações em que não temos tempo para descobrir qual seria a melhor solução para o problema ou dificuldade que temos em mãos. Isso não significa que vamos agir sem pensar de todo, mas vamos pensar o tanto que a situação permite”, aponta.
No âmbito mais específico da produção de conhecimento científico, o docente posiciona a Filosofia como disciplina indispensável para o desenvolvimento de todas as outras. “Quando uma disciplina entra em crise, é à Filosofia que recorre. No final do século XIX, a Matemática entrou em crise com relação aos seus fundamentos e procedimentos. Muitos filósofos, com treinamento em matemática, participaram desse debate e ajudaram a colocar ordem na casa”, recorda.
A Filosofia, defende Eros, auxilia no entendimento da coletividade, buscando refletir sobre todos os saberes e estabelecer as conexões, pontos comuns e diferenças. Isso é a capacidade de fornecer uma imagem mais geral das atividades intelectuais e práticas. “Assim, qualquer sociedade (e por consequência universidade) que cuida e preza pelo seu saber encontrará um lugar para a Filosofia”, conclui.
Em última instância, caberia a ela compreender e fornecer os fundamentos últimos do conhecimento. “Essa é uma preocupação legítima: investigar o quanto os saberes herdados e as demais disciplinas são confiáveis, como podemos contornar os fatores que atravessam ou atrapalham a busca do conhecimento, os limites do que podemos conhecer.”