Alunos de outros estados e países encontram novos lares nas casas do estudante da UFRGS

Publicado originalmente em Jornal da UFRGS. Para acessar, clique aqui.

Vida universitária | Há mais de 70 anos, moradias estudantis possibilitam que graduandos de fora de Porto Alegre consigam permanecer na Universidade

*Foto: Neo Macuxi (Pietro Scopel/JU)

Mochilas recheadas de lembranças, passagens com destino de ida ao desconhecido, uma pulsante mescla entre empolgação e aflição, e o futuro no horizonte como uma estrela guia. Começar uma nova fase da vida é sempre um desafio permeado de questionamentos e apreensão. Será que fiz a escolha certa? E se eu falhar? Para algumas pessoas, entretanto, esse novo capítulo tem um prefácio que torna suas histórias ainda mais únicas. É o caso dos universitários que vêm de fora de Porto Alegre em busca de uma graduação na UFRGS e encontram nas casas estudantis a possibilidade de concretizar esse sonho. 

Essas residências são um local em que pessoas distintas, com vivências e expectativas particulares, compartilham entre si a experiência da vida acadêmica. Entre os desafios encontrados pelos estudantes vindos de outros lugares, aparecem os diversos percalços de se estar em uma cidade e um estado novos. As diferentes gírias, os estranhamentos em relação a outros modos de vida e uma curiosidade nata pelo outro, esses são aspectos que se misturam à fragilidade social que quem precisa das casas já vivia em seus locais de origem.

A criação das casas de estudante ocorreu de forma praticamente concomitante à UFRGS. A Casa do Estudante Universitário Aparício Cora de Almeida (Ceuaca), por exemplo, foi a primeira instituição a receber exclusivamente estudantes em Porto Alegre. Inaugurada em 1934, a casa surgiu de um movimento dos estudantes da Faculdade Livre de Direito – posteriormente federalizada e integrada à UFRGS – e que reuniu acadêmicos de outras faculdades independentes de Porto Alegre, a fim de exigir do poder público uma moradia para estudantes que não tinham condições de pagar uma habitação. Assim, carregavam o ideal em seu próprio nome: Movimento Pró-Casa do Estudante Pobre. 

Quase vinte anos depois, em 1950, a UFRGS teria a sua primeira construção destinada à moradia de estudantes – desta vez, especialmente para mulheres, visto que até 1980 a Ceuaca só aceitava homens. Dessa forma, surge a Residência das Alunas da Escola de Enfermagem da UFRGS, que se tornou o lar das primeiras estudantes de Enfermagem da instituição, bem como um símbolo das reivindicações das mulheres pelo direito de permanência na Universidade. Passados mais de 70 anos desde a sua criação, a casa continua no mesmo endereço, mas agora sob o nome de Casa do Estudante Universitário da UFRGS (Ceufrgs), e aceitando estudantes de todos os gêneros.

Hoje em dia, a Universidade conta com outras três moradias: a Casa do Estudante das Faculdades de Agronomia e Veterinária (Cefav), a Casa do Estudante Universitário (CEU) e a mais recente, inaugurada em 2024, a Casa do Estudante Indígena (CEI).

Com a implementação do Sistema de Seleção Unificado (Sisu) e de políticas de internacionalização, a UFRGS passou a receber mais estudantes de outros estados e países e, consequentemente, as moradias estudantis ganharam moradores com novas perspectivas e vivências. 

De acordo com o vice-pró-reitor de Assuntos Estudantis da UFRGS, Igor Corrêa, atualmente as casas estudantis contam com 382 residentes. Desse montante, 42 são de fora do estado e 31 estrangeiros. 

É o caso de três estudantes entrevistados para essa reportagem, que relataram suas percepções e experiências acerca da estadia no Rio Grande do Sul.

“Como vai ser?”

O processo de ingressar em uma universidade federal pode ser penoso. Vestibulares extremamente concorridos são ainda uma das únicas portas para o mundo acadêmico, e os que vêm de outros estados ainda lidam com uma questão intrínseca à chegada nesse novo mundo: enfrentar a realidade longe de suas famílias. 

O estudante de Medicina e técnico em Enfermagem de 26 anos Kauã Amorim é um carioca com uma vontade contagiante de se conectar com as pessoas à sua volta. Ele veio de Volta Redonda, cidade do interior do Rio de Janeiro com cerca de 270 mil habitantes, e chegou na Ceufrgs em abril de 2023, após deixar a faculdade de Medicina que cursava no Paraguai. Kauã morou por um período em Foz do Iguaçu (PR), onde vivia uma rotina exaustiva: cruzava a fronteira diariamente para estudar e retornava ao lado brasileiro para trabalhar e dormir.

Em 2022, Kauã foi aprovado para Medicina na UFRGS. Ele relembra que não se sentia seguro para abandonar a vida no Paraná antes de passar por todos os trâmites da homologação da vaga: por ter concorrido à modalidade L14 (pessoa com deficiência e autodeclarado preto, pardo ou indígena), ele teria que passar por alguns métodos de avaliação, o que significa meses de espera por uma resposta definitiva:

“Lembro que a primeira crise de ansiedade que tive na vida foi nesse período de espera. Chegando da faculdade à noite eu comecei a sentir uma baita agonia. Não consegui ir para frente nem para trás. Travei que nem um jegue (risos). Quando saiu a matrícula definitiva, foi um alívio”

Kauã Amorim

Depois de passar por uma montanha russa de emoções e constantemente se questionar sobre como seria essa nova realidade, Kauã chegou a Porto Alegre com a expectativa de poder se dedicar integralmente aos estudos. No entanto, enfrentava uma dívida da época em que estudava no Paraguai. A Ceufrgs, então, surge como um suspiro na vida do estudante, que consegue se manter com uma bolsa da Pró-reitoria de Assuntos Estudantis (Prae) e um emprego de meio período em um hospital.

O amparo institucional para a permanência na graduação também foi o que motivou o estudante de Biotecnologia Neo Macuxi, de 30 anos, a ingressar na UFRGS em 2018. Antes de vir para Porto Alegre, Neo estudava Engenharia de Automação na Universidade Estadual do Amazonas (UEA), em Manaus, mas enfrentava dificuldades de se deslocar à universidade em decorrência da vulnerabilidade econômica – sem dinheiro para o transporte, tinha que percorrer longas distâncias a pé para assistir às aulas. Os benefícios econômicos de permanência fornecidos pela UEA se restringiam a estudantes cujo grupo familiar não residisse na capital amazonense, o que não era o caso dele.

O estudante conta que, antes de efetivamente chegar a Porto Alegre, trocou e-mails com a Prae para entender como funcionam os benefícios e ter certeza de que poderia contar com o recebimento dos valores em cerca de um mês após a chegada ao RS. Veio a Porto Alegre com o dinheiro contado, suficiente para passar um mês, em março de 2018 – mas ficou três meses sem receber nenhum valor.

Ainda logo se deparou com a matrícula provisória (quando os documentos submetidos ainda não foram homologados) e enfrentou um longo processo até conseguir a matrícula definitiva. Neo comenta a extrema dificuldade de conseguir os documentos solicitados pela Universidade.

“Mamãe é professora em uma comunidade que faz fronteira com a Venezuela e teria que se deslocar 12 horas para conseguir os documentos que eles pediam, e sempre pediam mais. Eles querem que tenha indígena na universidade, mas não querem que a gente seja indígena”

Neo Macuxi

Sete meses após a chegada a Porto Alegre, em outubro de 2018, o aluno finalmente conseguiu uma vaga na CEU. Após tantos percalços, Neo encontrou aliviado na casa um coletivo indígena que resgatou nele a memória afetiva de se viver em comunidade. Mesmo que a maioria dos estudantes indígenas da CEU sejam de árvores culturais diferentes dos Macuxi – os Kaingang, por exemplo –, houve um reencontro com o sentimento de desfrutar de momentos em família que ele deixou para trás quando percorreu os mais de 4.500 quilômetros até chegar à capital gaúcha.

“A gente se reúne aos fins de semana e cozinha peixe aqui no terraço. A culinária faz muito parte da nossa saúde mental. Também criamos a nossa atlética e praticamos na orla. Isso ajuda muito”

Neo Macuxi

O estudante afirma que, a partir da sua experiência, procura recepcionar outros alunos indígenas, fornecendo apoio e acolhimento. “Todo corpo que luta sozinho é um alvo mais fácil na cilada”, diz, citando um trecho da música “Quilombo Aldeia”, da artista Kaê Guajajara.

Morador da Casa do Estudante Universitário Campus Centro, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul em seu quarto.
Foto: Pietro Scopel/JU
Morador da casa do estudante chegando com suas malas para iniciar o semestre.
Na foto de capa e acima, o morador da Casa do Estudante Universitário Câmpus Centro (CEU/UFRGS), o aluno indígena Neo Macuxi veio do Amazonas para estudar Biotecnologia (Fotos: Pietro Scopel/JU)
Percepções e choques culturais

Uma percepção comum entre Kauã e Neo é a apatia instalada entre os moradores das casas estudantis. Apesar de morarem em diferentes residências, ambos atribuem esse comportamento e uma falta de senso de coletividade à cultura local. Para Neo, esse traço ficou mais evidente quando percebeu que era o único a molhar as plantas na sacada do andar em que mora na CEU. Já Kauã comenta que as pessoas são mais frias do que na sua terra natal.

Os dois também apontam os reflexos da pandemia nesse cenário. Antes de 2020, a interação era mais comum e a cordialidade, mais presente. Outro ponto que eles acreditam ter impactado nesse aspecto é que, a partir de 2019, alunos oriundos da região metropolitana de Porto Alegre passaram a poder residir nas casas. Nos finais de semana, esses estudantes retornam às casas de suas famílias, o que resulta em ambientes de convivência mais vazios, comentam.

Outra experiência compartilhada entre ambos os discentes foi a de serem pessoas racializadas em um estado predominantemente branco. Segundo o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Rio Grande do Sul é o estado com maior proporção de pessoas autodeclaradas brancas do Brasil, totalizando 78,6% do total da população. Kauã conta que sua vinda para o RS foi um catalisador para se entender enquanto pessoa preta, pois foi aqui que sofreu a primeira experiência de racismo.

Nesse sentido, o apoio é uma forma de driblar as dificuldades e os estranhamentos. Através dos encontros nos compridos corredores das casas ou das conversas na cozinha compartilhada, os estudantes reformulam a ideia de família e se apoiam uns aos outros à medida que se reconhecem nas suas dificuldades. 

“Considero que existe essa preocupação em se ajudar. Hoje, por exemplo, eu sei que, se eu não estiver bem, vai haver pessoas que vão bater na minha porta e falar: ‘e aí, o que tá rolando? Tá de boa?’”

Kauã Amorim
Do mundo para a UFRGS

Alunos de outros países também se beneficiam das casas estudantis. É o caso da jamaicana e moradora da CEU Danielle Brown, de 27 anos.

Danielle veio ao Brasil em 2019 para cursar Fisioterapia na UFRGS por meio do Programa de Estudantes-Convênio de Graduação (PEC-G). Por alguns meses, morou sozinha em uma quitinete, até que ficou sabendo, por meio de uma colega do curso de Português para Estrangeiros, da possibilidade de morar gratuitamente em uma casa de estudante: “Como assim? Nós tínhamos isso o tempo todo?”, exclamou na época.

Assim que chegou na CEU, Danielle se viu imersa em dinâmicas culturais totalmente novas. Os diferentes sotaques do português – língua que teve que aprender do zero – que ouvia pelos corredores, compromissos cancelados em dia de jogos do Brasil, e o maior choque de todos: ser cumprimentada com beijos e abraços. Ela conta que se sentiu movida pela maneira apaixonada como os brasileiros se expressam, e destaca uma similaridade que relembra sua vida na Jamaica.

“Na Jamaica nós temos o dialeto ‘patois’ com algumas similaridades com o português. Por exemplo, nós usamos “nossa”, e quando eu ouvi a primeira vez pensei ‘nós temos isso [lá] também, eu sei o significado!’”

Danielle Brown

Mesmo tão longe de Clarendon, sua cidade natal na Jamaica, Danielle encontrou algumas maneiras de manter o contato com os sabores de casa, como preparar pratos típicos da sua região para compartilhar com os outros moradores da CEU.

O quarto dela traz outras lembranças da sua terra natal, como fotos dos amigos e a bandeira da Jamaica. Também uma foto da mãe, com quem se comunica diariamente.

Como morar nas casas estudantis?

As quatro casas estudantis da UFRGS contam com um modelo de representação e autonomia administrativa interna, o que significa que cada residência dispõe de um edital específico para seleção de novos moradores.

Todas, no entanto, têm um critério comum: o candidato precisa comprovar renda familiar per capita de até um salário mínimo e meio, conforme estabelecido pelo Programa Nacional de Assistência Estudantil (Pnaes).

A CEU abre vagas semestralmente e tem seu processo seletivo realizado pela Prae. Já os processos da Cefav e da Ceufrgs são um pouco diferentes: os candidatos precisam passar por uma etapa de entrevistas conduzidas por integrantes da Comissão de Seleção de cada casa – que também são moradores.

Mais informações sobre as casas do estudante, além dos canais para esclarecer dúvidas, podem ser encontradas no site da Prae.

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