Agentes comunitários de saúde atuam como mediadores territoriais entre pacientes e sistema de saúde

Publicado originalmente em Jornal da UFRGS por Ronaldo Botelho. Para acessar, clique aqui.

Saúde pública | Apesar do papel fundamental desempenhado por esses trabalhadores no SUS, qualificação permanente e melhoria das condições de trabalho ainda se apresentam como desafios da categoria

*Foto: Marcelo Pires/JU

É uma manhã de terça-feira comum do mês de março para os moradores da Vila do Sossego, na Zona Leste de Porto Alegre. Um grupo de trabalhadores de reciclagem que moram no local debatiam problemas de não-reconhecimento de seu trabalho por segmentos do poder público, quando se aproxima o grupo de 10 acadêmicos da saúde com uma professora. À frente dos visitantes, uma profissional de colete azul.

“Pessoal, os estudantes estão conhecendo a comunidade e o nosso trabalho aqui. Esse é o líder da associação; aquele é um pai, mora separado e pede notícias da filha internada por causa de um engasgo… aqui, temos uma praça onde nos reunimos para ações coletivas em saúde…”

Enquanto media aquela aproximação entre os visitantes e a comunidade, Jovina da Silva Dornelles, agente comunitária da Equipe de Saúde da Família da Unidade de Saúde Santa Cecília, que cobre aquele bairro, se desdobra entre as suas funções que já integram sua rotina diária por ali – analisa, chama, pergunta, responde, orienta e anota.

Familiarizada com o ambiente, em que mora e com o qual tem vínculos de familiares e de vizinhança, o papel de Jovina se assemelha ao de uma liderança comunitária em assuntos da saúde. Mas vai muito além. “A comunidade confia nela, tudo que precisamos, podemos contar”, declara Jeferson Flores, presidente da Associação Vila Sossego.

Para além das relações com a comunidade, o trabalho dos agentes comunitários de saúde (ACSs) passa também por outras instâncias, antes e depois do contato com os pacientes. Reuniões, lançamentos, acompanhamento de vacinações, grupos de tratamento, enfim, uma extensa gama de atividades que movimentam o dia a dia de uma unidade de saúde.

Na manhã em que estivemos na US Santa Cecília, raros foram os momentos em que vi Jovina na pequena sala de sua equipe. “Gosto de me movimentar entre o acolhimento e o auxílio à equipe médica”, comentava ela, enquanto caminhava pela unidade.

A tranquilidade desse trânsito entre outros profissionais é respaldada por uma relação de reconhecimento e de confiança. “É um profissional muito importante na composição da equipe. Diante de uma situação de vulnerabilidade de saúde, ele tem acesso totalmente para trazer essa questão. E aí é pensado, a partir da das informações que ele traz, como é que vai ser o atendimento desse usuário”, explica Fernanda de Mello Chassot, assessora técnica da Diretoria de Atenção Primária à Saúde da
Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre, responsável pelos ACSs na cidade.

O ofício do ACS tem como característica principal lidar com a urgência das realidades locais e tudo que a cerca. Além de prestar certos serviços de assistência, cabe a ele observar e registrar as condições do paciente em seu domicílio para um posterior diagnóstico e atendimento médico “(…) com objetivo de ampliar o acesso da comunidade assistida às ações e aos serviços de informação, de saúde, de promoção social e de proteção da cidadania”, conforme prevê a Lei nº. 11.350, de 5 de outubro de 2006, que regulamenta a profissão.

Conforme dados do Ministério da Saúde, até o final do ano passado havia 278 mil agentes comunitários de saúde no País, atuando em todo o território nacional. Mas a construção dessa imensa rede remonta a uma longa trajetória.

Do controle ao direito

Se em décadas passadas o ingresso dos agentes do Estado nas comunidades se estabelecia de forma compulsória, invadindo residências e impondo procedimentos – como no histórico episódio da Revolta da Vacina, no início do século XIX – no presente essa relação se dá por uma lógica de diálogo, esclarecimento e empatia. Nessa estratégia, o ACS é uma valiosa porta de entrada.

“O que mais me agrada é quando eu posso fazer a diferença na vida de alguém, mesmo quando o sistema é falho. Tenho sempre um sorriso no rosto, esse é meu cartão de visitas”, conta Jovina, enquanto caminhávamos por uma das áreas em que ela atua, um aglomerado de pequenas casas, em um beco espremido sob a paisagem de altos e modernos prédios.

Agende de saúde negra, com cabelo preso e camiseta estampada aparece conversando com três pessoas nos fundos de uma casa.
Agente comunitária da US Santa Cecília, em Porto Alegre, Jovina Dornelles tem as visitas domiciliares como uma de suas atribuições (Foto: Ronaldo Botelho/JU)

Em silêncio e atentos, os acadêmicos de Medicina de Família na Comunidade (MFC) e da Residência Multiprofissional (RM) da UFRGS observavam tudo em cada interação. “Essa saída para além do consultório é necessária para compreender o que há por trás da vida do paciente”, comentava Adriana Barbieri, 29 anos, uma das integrantes do grupo em visita à comunidade.

Enquanto unidade referência junto ao Hospital de Clínicas de Porto Alegre, a US Santa Cecília tem uma estrutura diferenciada comparada às outras 133 UBSs e USs (as segundas assim denominadas quando já contam com a Equipe de Saúde da Família) de Porto Alegre. “Por estarmos vinculados à Universidade e ao HCPA, nossos ACSs são muito solicitados pelas equipes assistenciais para ‘apresentarem’ o território, suas vulnerabilidades, o trabalho feito com as famílias, tanto para os alunos como para os residentes. Não há atividade no território que não seja feita com os ACS – nas escolas, nos domicílios, nas instituições de
longa permanência, etc.”, explica Claunara Schilling Mendonça, professora da Faculdade de Medicina da UFRGS e coordenadora da US Santa Cecília.

Afeto e sinceridade

Mas o público atendido pelos ACS, como o SUS no geral, contempla também bairros melhor estruturados. Ainda que com mais recursos econômicos, os pacientes têm diferentes configurações familiares e de vida, decorrentes da dispersão dos filhos ou do puro e simples abandono. Sabe bem disso a ACS Vanda Juçara dos Santos Blazina, 62 anos, que atua no bairro Juca Batista e arredores, na Zona Sul de Porto Alegre, onde atende a uma média de 150 famílias.

“Os filhos crescem, casam, se mudam, vão para fora do País e os idosos ficam sozinhos. A maioria são mulheres passando pela ‘síndrome do ninho vazio’”, explica. Formada em História e com experiência anterior também na área administrativa de saúde, Vanda diz gostar do seu trabalho, para o qual diz contar com a sua experiência pessoal. “Minha mãe teve Alzheimer, faleceu com 93 anos e morava comigo. Me toca muito”, declara.

Durante uma tarde de quinta-feira, acompanhamos parte de uma visita domiciliar a uma das pacientes que atende regularmente. Enquanto nos dirigia à residência, Vanda falava sobre problemas que não se enxergam, como a solidão e a depressão, mas que muitos pacientes enfrentam. “São casas boas, mas tu te defronta com o sofrimento humano. Às vezes, o sofrimento maior é o da alma, é não ter com quem falar, com que se discute, te oriente, preste atenção”. No território também é mantido pela US um grupo de saúde mental, que “faz com que o usuário não vá parar só na medicação”, explica.

Teresinha Margarida Francines, de 86 anos, com mobilidade limitada e quase totalmente cega, é a paciente cujo atendimento acompanhamos naquela tarde. Após chegarmos à casa de Teresinha, Vanda se acomoda e começa seu trabalho, fazendo perguntas sobre a situação da idosa, examinando a pele, consultando a neta que a acompanha sobre a administração de seus remédios, medindo a pressão e assim por diante.

“A relação de confiança normalmente é facilmente estabelecida a partir do momento que o ouvimos com real atenção e respeito. Jamais prometo o que não posso cumprir. A empatia logo se estabelece de ambos os lados”

Vanda Juçara dos Santos Blazina

A paciente, por sua vez, fala desinibidamente sobre sua vida – da mudança do interior para a Capital; da juventude ao casamento; das relações com familiares e com a vizinhança. Aproveito uma brecha desse diálogo para perguntar sobre o seu convívio com outras pessoas de um modo geral. “Visita mesmo eu tenho é de uma senhora da terceira casa. Eu tô controlando só gente aqui de confiança”, justifica. Depois de alguns momentos, deixamos as duas para a finalização do tratamento, que incluiria também curativos e outras atenções.

Na despedida, Vanda ainda ressalta a importância da sinceridade na relação com os pacientes. “Jamais opino sobre diagnósticos ou indicação de medicações. Levo as dúvidas do paciente sobre o seu tratamento para a equipe médica ou enfermeira na reunião de equipe”, afirma.

Idosa de cabelos curtos e grisalhos, usando vestido estampado, aparece recepcionando agente de saúde, que está usando jaleco azul, enquanto segura prancheta de mdf e mochila.
A agente comunitária Vanda Blazina realiza visita domiciliar para atendimento de Teresinha Margarida Francines, na Zona Sul de Porto Alegre (Marcelo Pires/JU)
Lutas e conquistas

Ainda que muitas conquistas já tenham sido consolidadas na profissão, os ACS mantêm importantes bandeiras. Conforme Cláudia Canatta, presidente da Associação dos Agentes Comunitários de Saúde de Porto Alegre (AACS-POA), na Capital as principais demandas da categoria são o pagamento de Incentivo Financeiro da União, o Incentivo de Qualidade, a atualização e correção da Carteira de Trabalho, a comprovação de recolhimento do INSS e melhorias nas condições de trabalho.

“A associação se constituiu em um momento que a categoria estava desprotegida e não se via representada pelo sindicato existente na época. Tentamos todas as alternativas de diálogo e a partir daí determinamos com a categoria outras formas de luta”, afirma Cláudia, que também atua como ACS desde 2004, em uma equipe que atende 1.100 famílias no bairro Jardim Floresta, Zona Norte de Porto Alegre.

Já de acordo com Valdívia Gonçalves Lucas, presidente do Sindicato dos Agentes Comunitarios de Saude do RS (Sindac-RS), em âmbito estadual as reivindicações para a carreira se concentram na luta pelo cumprimento à Lei n.º 11.350/2006 e à Emenda Constitucional 120/22, garantindo piso salarial, contratos de trabalho dignos, pagamento do Incentivo Financeiro anual e plano de carreira.

“A terceirização prejudica o trabalho do ACS, terminou com o vínculo existente com a população.
É insatisfatório porque o rodízio de profissionais é constante, em algumas unidades a cada retorno em consulta o usuário é atendido por equipes diferentes”

Valdívia Gonçalves Lucas

Aos 74 anos, sendo ACS há 23, atualmente Valdívia é lotada na US Tijuca, no bairro Morro Santana, Região Leste de Porto Alegre, onde chegou a atender 600 famílias. Atualmente, está afastada para exercer a atividade sindical.

Nacionalmente, as lutas dos ACSs se resumem a duas pautas principais: “A conclusão do curso técnico e a regulamentação da aposentadoria especial através da Emenda Constitucional 120/22”, considera a presidente da Confederação Nacional dos Agentes Comunitários de Saúde e Agentes de Combate às Endemias (Conacs), Ilda Angélica dos Santos Correia.

A Secretaria Estadual de Saúde, por meio de sua assessoria de comunicação, informa que quem contrata agentes comunitários de saúde são os municípios.

Já a equipe de gestão da Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre, por meio de sua assessoria de comunicação, afirma que a Atenção Primária à Saúde da Capital entende a relevância do profissional ACS. A secretaria informa ainda que foi constituído um Grupo de Trabalho (GT) para tratar questões sensíveis aos ACS e ACEs. Conforme a equipe de gestão, o ACS é o profissional que mais vem recebendo capacitações, e o município tem dois processos seletivos em andamento. Sobre o incentivo financeiro da União, a SMS observa que esse recurso pode ser utilizado para fins de melhorias, aquisição de insumos e materiais.

Quanto ao pagamento da GIQ (Gratificação e Incentivo de Qualidade) a SMS diz que, quando os cargos de ACS e ACE foram criados no município, não foi previsto o recebimento desse incentivo. Desde então, essa pauta teria sido apontada nas reuniões do GT e, mais recentemente, levada ao secretário de Saúde adjunto, que solicitou encaminhamento da demanda para tratativas. Já sobre a atualização e correção na Carteira de Trabalho deste profissional, a SMS explica que, devido à transposição de ACS e ACE do extinto Instituto Municipal de Estratégia de Saúde da Família (Imesf) para a Prefeitura, esses profissionais são oriundos de regime celetista e, devido a tal fato, a Secretaria Municipal de Administração e Patrimônio (SMAP) está realizando o processo de implantação do e-Social.

A respeito do registro e comprovação do recolhimento do INSS, a SMS comunica que está ciente dos transtornos causados pela não conclusão da implementação do e-Social. A pasta informa que ocorreu reunião entre INSS e SMAP, em que foram tratados os casos mais urgentes, e observa que uma nova reunião será agendada para novas tratativas.

Sobre melhorias das condições de trabalho como local e equipamento para registro, a SMS esclarece que a estrutura física das unidades de saúde são muito diversas e, por essa razão, não se dispõe de uma sala para os ACS em cada US, porém são disponibilizados consultórios ou salas para a realização das suas atividades administrativas. Finalmente, acrescenta que houve a aquisição de palmtops utilizados pelo censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e que todas as UBSs/USs possuem wi-fi.

Qualificação técnica

Uma outra frente de reivindicação é a qualificação profissional dos ACSs, que é prevista no SUS, mas ainda não tinha se consumado em um nível técnico. Nesse aspecto, um avanço recente foi o Curso Técnico em Agente Comunitário de Saúde, cuja primeira edição foi realizada ao longo do ano de 2022 por meio do projeto Saúde com Agente. A iniciativa do Ministério da Saúde foi viabilizada com a participação da UFRGS e do Conselho Nacional das Secretarias Municipais de Saúde (CONASEMS).

Com duração de 10 meses e carga horária de 1.275 horas, o curso prepara a realização de diagnóstico em saúde nos territórios, promoção e prevenção à saúde, coleta e registro de dados, condicionalidades de programas sociais, planejamento integrado e controle das doenças e agravos nos territórios.

O planejamento da primeira edição do curso, ainda durante a pandemia, envolveu 14 áreas da Universidade relacionadas à saúde, 11 mil preceptores e contou com 236 mil inscrições, formando 180 mil agentes, com a adesão de quase 5.400 cidades. “Era durante a pandemia, tínhamos que ter uma carga presencial de 60% e um prazo a cumprir. Pense então na logística, e esse foi o nosso desafio. E nós formulamos a proposta”, comemora Leandro Raizer, coordenador-geral do projeto e vice-pró-reitor de Graduação da UFRGS.

“Entendemos que esse curso tem que realmente qualificar as pessoas para o serviço, ele tem que levar aos agentes de saúde as últimas informações da academia”

Leandro Raizer

Para a presidente da Confederação Nacional dos Agentes Comunitários de Saúde e Agentes de Combate às Endemias (Conacs), Angélica dos Santos Correia, o curso é uma iniciativa salutar, que deve melhorar ainda mais. “Quero agradecer muito a UFRGS pela forma que conduziu esse curso, e sempre em parceria também conosco, acredito que a segunda turma do projeto será ainda melhor”, avalia.

Outros territórios e perspectivas

“A unidade é pequena e não tem suporte pra aguentar a demanda, que é muito grande. É preciso sempre fazer a busca ativa dos pacientes que ficam muito tempo sem ir à UBS. O que mais me agrada é deixar o paciente satisfeito. A qualificação é muito importante, ajuda na jornada de trabalho”, afirma Jucilene Brito Bitencourt, 46 anos, atuando há 24 anos como ACS. Atualmente, ela trabalha no bairro Coroado, na zona leste de Manaus, AM, município premiado no Previne Brasil 2023, programa nacional que mede a qualidade da Atenção Básica no país.

“As maiores dificuldades são não ter informações corretas, carro para locomoção até o especialista e medicação que falta. Mas saber da confiança e respeito que cada família tem com nosso trabalho nos motiva a cada dia fazer e doar o melhor de nós. O curso do Saúde com Agente foi muito importante porque resgata valores de vínculo com a comunidade”, diz Marinalva de Oliveira Paiva, 53 anos, há 24 atuando como ACS e participante do curso Saúde com Agente. Atualmente, atende 236 famílias em Corumbá de Goiás (GO).

“Nosso diálogo com os gestores, tanto na esfera municipal como com o Ministério da Saúde, tem sido em torno da necessidade urgente de concursos para novos ACS. As áreas descobertas trazem um prejuízo enorme para UBS e as pessoas ficam desassistidas”, lembra Ilda Angélica dos Santos Correia, 55 anos, há 33 atuando na profissão de ACS, responsável por 120 famílias no bairro de Boa Esperança em Maracanaú (CE). Ela também é presidente da Confederação Nacional dos Agentes Comunitários de Saúde e Agentes de Combate às Endemias (Conacs).

“O contato próximo com a comunidade me proporciona um senso de conexão e propósito, enquanto ajudo a construir um ambiente mais saudável e resiliente. O aspecto dinâmico e desafiador da profissão também é cativante. Considero a qualificação importante porque proporciona habilidades específicas e conhecimento necessário para oferecer assistência e cuidados de qualidade à comunidade”, diz Dirce Aída Francisco Ribeiro Melo, 59 anos de idade, 16 anos como ACS. Dirce foi colaboradora na equipe técnica na construção do curso do projeto Saúde com Agente e, atualmente, atende 75 famílias em Kamaiurá e adjacências, em Unaí, município mineiro do noroeste do estado de Minas Gerais.

Mulher com cabelos compridos e lisos, utilizando camiseta escrito 'SUS - Sistema únido de saúde', aparece palestrando para pessoas de meia idade.
ACS em Unaí (MG), Dirce Melo palestra em evento comunitário sobre dependência química (Arquivo Pessoal)

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