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O professor e pesquisador em comunicação e politica Afonso de Albuquerque (UFF) problematiza os desafios para a democracia representados pelos fluxos internacionais da informação e da comunicação e apresenta o projeto do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Disputas e Soberanias Informacionais (INCT/DSI), que foi recentemente aprovado pelo CNPq.
Em dezembro de 2022, o CNPq aprovou o projeto do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Disputas e Soberanias Informacionais (INCT/DSI). Sediado no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense (UFF), o projeto conta com a participação de uma equipe muito qualificada de pesquisadores trabalhando de diversas instituições no Brasil (UFMA-Imperatriz, UFC, UFBA, UnB, UFMT, USP, UFPR, UFTPR, UFRGS/UFPEL, e outros pesquisadores da UFF) e, também, de pesquisadores sediados em instituições no exterior. O eixo central da proposta é a discussão de questões relacionadas aos desafios que se apresentam à soberania informacional em um mundo globalizado. Mas o que, exatamente, isso quer dizer?
Na virada das décadas de 1980 e 1990, na sequência do colapso da União Soviética e dos regimes comunistas a ela associados no Leste Europeu, o mundo assistiu à construção de uma ordem global unipolar guiada por princípios neoliberais e liderada pelos Estados Unidos. Nesse período, a americanização das instituições de países mundo afora foi imposta, para atender aos interesses das elites locais. Por meio de pressão econômica, ou mesmo por força militar. Um imenso aparato ideológico, integrado por universidades, think tanks, fundações, e contando com o apoio de diversas agências do governo dos Estados Unidos, ajudou a legitimar esse processo como um “triunfo da democracia”.
Nas últimas décadas, contudo, diversos sinais têm apontado para o declínio dessa ordem centrada nos Estados Unidos para uma outra, de caráter mais multipolar. A ascensão econômica da China e da Índia (respectivamente a primeira e a terceira potências econômicas pelo critério de paridade de poder de compra) e o retorno da Rússia à condição de superpotência militar são apenas duas facetas desse processo. Um outro, mais importante, diz respeito à construção de alianças organizadas ao largo do Ocidente. O grupo BRICS, que une Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, é um dos exemplos mais importantes nesse cenário. O Brasil também se engajou em alianças destinadas a se aproximar de outros países latino-americanos e, também, da África. Tais iniciativas ganharam novo frescor com o retorno de Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência em 2023.
A ordem multipolar emergente oferece oportunidades ímpares para o exercício da soberania por países ao redor do mundo. Contudo, um domínio ainda resiste a essas tendências de diversificação do poder global: o campo da informação, que permanece ainda fortemente controlado, em escala global, pelos Estados Unidos. A Operação Lava Jato demonstrou, de maneira bastante trágica, as consequências que tal estrutura apresenta do ponto de vista nacional. Sob muitos aspectos, a Lava Jato contou com a mentoria de instituições estadunidenses. O juiz Sergio Moro foi, inclusive, homenageado por instituições universitárias daquele país, o think tank Atlantic Council, ligado à OTAN. Além disso, os procuradores da Lava Jato contaram com apoio intelectual de instituições como o Departamento de Justiça, o Departamento de Estado e o FBI, e mesmo de plataformas de mídias sociais como a Netflix, que produziu a série semificcional O Mecanismo, que pintava a Lava Jato com tintas heróicas.
Uma sociedade que não é capaz de exercer controle soberano sobre a informação que nela circula está fadada a ser controlada por outra. Deste modo, o INCT-DSI se propõe a discutir os desafios para o exercício da soberania no campo da informação. Ele o faz sob três perspectivas distintas e complementares: a primeira delas considera o problema da informação científica, a segunda aborda a questão a partir do ângulo da mídia e a terceira trata do papel que dispositivos sociotécnicos – como plataformas e algoritmos – desempenham na mediação da informação.
A informação científica legitimada no circuito internacional conta com uma infraestrutura que favorece desproporcionalmente a difusão de perspectivas oriundas dos Estados Unidos – e, secundariamente, de outros países ocidentais. Esse esquema se ancora em um sistema de rankings internacionais que definem quais universidades pertencem à elite mundial, quais periódicos são mais importantes, quais são os departamentos e professores com mais prestígio. Os Estados Unidos – secundados por outros países ocidentais, especialmente o Reino Unido – são super-representados neste sistema. A consequência disso é que perspectivas oriundas desses países obtêm um status de conhecimento universal, diferentemente das que são produzidas em outras partes do mundo. Uma consequência óbvia desse desequilíbrio é que as sociedades mais contempladas pelo sistema adquirem um poder de definir quais são os problemas de suas próprias sociedades e, também, das demais, bem como de apontar soluções para elas. Para as sociedades marginalizadas por essa lógica, isso se traduz em dificuldades em estabelecer a própria agenda de ação política de maneira autônoma.
O segundo nível de análise privilegiado pelo INCT-DSI diz respeito ao controle da informação que circula pelas diversas mídias. Esse problema é, de fato, bastante antigo. As bases do poder de influenciar qual a dieta de informação a ser consumida em escala global foram estabelecidas ainda no século XIX, com a criação das agências de notícias baseadas no telégrafo. Na década de 1990, um intenso processo de privatização e globalização da mídia teve lugar, e a CNN emergiu como parâmetro do jornalismo mundial, o que contribuiu para dar status universal às perspectivas enunciadas a partir dos Estados Unidos. Além disso, os meios de comunicação atuantes no plano nacional muitas vezes reproduzem agendas externas e se apresentam contrários a políticas voltadas para a soberania nacional. O ataque contínuo à Petrobrás por veículos da mídia nacional – acelerado durante a Operação Lava Jato – fornece um exemplo patente de como essa lógica opera.
A terceira perspectiva contemplada releva de uma questão bem mais recente, e dá conta do papel que desempenham as plataformas de mídias sociais e a lógica dos algoritmos como instrumentos de controle social. Há menos de uma década, era bastante comum – mesmo entre pesquisadores acadêmicos – a ideia de que essas plataformas constituíam um meio ambiente “neutro” que permitiria aos indivíduos se expressarem livremente, sem mediações. Essa perspectiva orientou muitas das análises sobre as Jornadas de Junho de 2013, bem como eventos de natureza similar que ocorreram em outras partes do mundo. Mais recentemente essa visão foi desafiada, principalmente a partir do escândalo da Cambridge Analytica. Uma nova agenda de pesquisa tem dado conta das plataformas como agentes de um novo tipo de imperialismo. Elas têm um papel fundamental na desestruturação de um modelo de trabalho baseado em legislações e controles nacionais e na difusão de modelos de trabalho precário. Igualmente, as plataformas estabeleceram mecanismos de captura de dados e atuam como gatekeepers da visibilidade de agentes públicos sem que, frequentemente, qualquer controle efetivo seja exercido sobre elas pelo poder público.
Um exemplo da relevância da abordagem adotada pelo INCT-DSI sobre a informação se refere ao problema da difusão de informação. Existe hoje um grande acordo em que a desinformação constitui um problema para diversos âmbitos da vida social (política, saúde, ciência, dentre outros). Contudo, um outro aspecto menos mencionado da questão diz respeito à definição do que é informação crível e o que é desinformação. A delimitação das fronteiras entre informação e desinformação estabelece as bases de um poder de legitimar certos discursos e deslegitimar outros e traz problemas concretos do ponto de vista da soberania. O sistema acadêmico enviesado em favor dos Estados Unidos tem um papel importante em promover certas definições de informação legítimas em detrimento de outras, não raro promovendo os interesses daquele país. Agências de fact-checking – criadas inicialmente naquele país – e, particularmente, aquelas filiadas ao International Fact Checking Network (IFCN) – também criada nos Estados Unidos – atuam no sentido de distinguir informações públicas como sendo fato ou fake. Plataformas sediadas nos Estados Unidos diminuem a visibilidade ou mesmo excluem aqueles acusados de disseminar desinformação. Os problemas que est e arranjo apresenta do ponto de vista da soberania sobre a informação são bastante óbvios.
Afonso de Albuquerque
Professor na Universidade Federal Fluminense e pesquisador responsável pelo projeto do INCT-DSI
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