Publicado originalmente em Jornal da UFRGS. Para acessar, clique aqui.
Comunicação Científica | Movimento teve início no país ainda nos anos 1990, com o lançamento do portal SciELO e a rápida adesão ao OJS, software gratuito de editoração. Visando a uma mudança no sistema de publicações, a Capes promove Acordos Transformativos com periódicos, que combinam a contratação de assinaturas com isenção no pagamento de taxas de publicação de artigos
Foto: Felipe Ewald/JU
O apego aos modos consolidados de como se faz ciência em um país é um fator que coloca à prova a adoção de novas práticas. Segundo Bianca Amaro, coordenadora do Programa de Ciência Aberta do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT), apesar da maior visibilidade de um novo paradigma proporcionada pelo movimento de acesso aberto aos artigos publicados, muitos pesquisadores preferem seguir atuando de acordo com modelos tradicionais estabelecidos por países do Norte global.
“Nosso principal desafio hoje é mudar essa cultura dos pesquisadores sêniores e reconhecidos que, na sua grande maioria, absolutamente não querem alterar práticas como o fator de impacto, por exemplo. São regras e métricas que não foram criadas pelo Brasil, mas pelos países do Norte; são regras do jogo que eles inventaram para a realidade deles, e para nós os resultados são pífios. Então você publica em uma revista de alto fator de impacto. E o que a pesquisa brasileira ganha com isso? Se eu fizer essa pergunta, ninguém consegue me dar um retorno”, argumenta Bianca.
Alternativa a esse cenário, a Ciência Aberta propõe um paradigma de fazer ciência baseado em práticas colaborativas e transparentes, com o objetivo de tornar o processo científico e seus resultados acessíveis a toda sociedade. Trata-se de um movimento global para acessibilidade, compartilhamento, transparência e reutilização do conhecimento científico, incluindo a literatura, periódicos e dados.
O movimento ganhou força nas últimas décadas com o surgimento da internet e das tecnologias digitais. Em 2002, a Iniciativa de Acesso Aberto de Budapeste lançou um apelo para que a literatura científica fosse disponibilizada gratuitamente online. Isso inspirou a criação de repositórios e revistas de acesso aberto. Em 2003, a Declaração de Berlim reafirmou esses princípios. Paralelamente, o movimento pelo acesso aberto a dados de pesquisa ganhou impulso com iniciativas como a Recomendação da Comissão Europeia sobre Acesso Aberto e Preservação (2018), a Declaração de São Paulo sobre Ciência Aberta (2019) e as Recomendações da UNESCO (2021) – que definem princípios e valores comuns adotados por 193 países e identifica áreas prioritárias de ação para implementação, complementando os marcos anteriores na consolidação global da Ciência Aberta.
O desafio da mudança de cultura
De acordo com Washington Segundo, coordenador-geral de Informação Científica e Técnica do IBICT, a resistência à transição para o modelo da Ciência Aberta ainda é grande, especialmente por conta da noção de prestígio.
“Esse é o maior entrave que a gente vive hoje. Mudar a cultura dos pesquisadores é algo muito difícil, porque, se você está no clube, não vai querer que mais ninguém entre, porque você quer manter privilégios, o que muitas vezes significa ter mais oportunidade de financiamento. Você quer ser prestigiado, então essa é a moeda, e quebrar esse ciclo é bem complicado”
Washington Segundo
O “clube” que Washington critica é o círculo de quem consegue publicar em revistas Qualis A1, algumas das quais cobram elevadas taxas de processamento. São publicações reconhecidas pelo alto fator de impacto, mas que, segundo ele, “não têm uma contribuição tão grande para a ciência brasileira, apesar de ter visibilidade. Em geral, esse grupo está nas cúpulas das decisões e não quer mexer em seu status quo”.
Do ponto de vista da coordenadora do Programa de Ciência Aberta do IBICT, estas e outras métricas tradicionais, como volume de produção e formas de avaliação, já não servem mais. “Há que se falar também do papel muito importante das Recomendações da Unesco, firmadas em 2021 por 192 países, e que agora são basilares e incluem rever a forma de avaliação.”
Ela entende que pesquisas que interessam ao Brasil não necessariamente precisam estar presentes na revista Nature, já que o interesse do pesquisador pode ser se comunicar com seus pares aqui. “Temos nossas realidades, mas é uma régua igual para todo mundo que já não cabe, não funciona para mais ninguém, nem para os países do Norte”, afirma Bianca.
O critério do número de citações também é alvo de críticas. “Se eu estudo uma área muito específica e não tem tanta gente para ler meu trabalho, vou deixar de estudar uma doença rara por conta disso? Esse é o ponto. O que é de fato uma pesquisa de impacto? É aquela que tem muitas citações ou é uma pesquisa que resolveu algum problema local, que teve algum tipo de desdobramento em outras pesquisas ou resultou em uma ação social? Tudo isso tem que ser medido, não pode ser só a quantidade de citações”, diz Washington.
A revisão por pares aberta, um dos pilares da ciência aberta, é outro aspecto que envolve a disputa de vaidade e ética. De acordo com Bianca, os pesquisadores sêniores dificilmente vão aceitar os pareceres abertos no lugar do modelo atual de avaliação por pares duplo cega. Em suas palavras, a revisão por pares aberta traz mais qualidade porque envolve o que o pesquisador tem de mais importante, que é seu nome e sua reputação. Logo, ele não fará um parecer mal formulado se o nome dele vai ficar exposto.
Outro desafio nesse cenário é a reprodutibilidade da ciência, já que, para validar os resultados de uma pesquisa, é necessário ter acesso aos dados brutos e aos detalhes do protocolo de pesquisa. Mas, por conta do critério da produtividade, os resultados podem não ser reutilizáveis justamente porque o pesquisador não teve tempo suficiente para verificar e validar seus próprios achados. Isso resulta em um modelo de produção científica baseado na quantidade em detrimento da qualidade. A ênfase excessiva na quantidade de publicações pode comprometer a confiabilidade da pesquisa. “Você vê que não tinha como chegar àquela conclusão. Às vezes é um artigo que pagou APC [taxa de processamento], gastou dinheiro público tanto com o salário dessa pessoa quanto com a pesquisa e, no final, o que se produziu?”, indaga Bianca.
Uma das normas prevalentes no meio científico é o sistema de avaliação dos pesquisadores com base na quantidade de publicações. Bianca sugere ser necessário adotar uma abordagem mais criteriosa para avaliar o impacto real da pesquisa: “Qual é o [seu] benefício para a ciência?”, questiona Bianca. “Você não tem nada a dizer, mas acaba inventando algo apenas para cumprir a cota de artigos por ano. Precisamos avaliar a ciência de forma mais qualitativa.”
O custo da taxa de publicação é apenas um dos aspectos da problemática do sistema como um todo. As exigências dos sistemas de avaliação para progredir na carreira e tornar-se respeitado forçam o pesquisador a publicar em um periódico com taxas elevadas. Por outro lado, há periódicos de acesso aberto no Brasil que não cobram taxa de processamento para disseminar a produção científica nacional, embora não disponham do impacto e da visibilidade de revistas comerciais de grife.
Mas, de acordo com Bianca Amaro, ainda temos uma posição de “vira-latas” em relação aos países do Norte, o que impediria os pesquisadores de pressionar por uma mudança do modelo de avaliação.
“Por isso seguimos todas as regras que eles utilizam. Se a gente conseguisse vencer isso, poderíamos dar um salto muito grande em termos científicos, porque em última instância a questão é se publica o que se publica para comunicar o resultado de uma pesquisa. Hoje em dia, no entanto, a gente publica porque tem que ter um número x de publicações para ser bem avaliado, não importando a comunicação”
Bianca Amaro
Desenvolvimento da Ciência Aberta no Brasil
Diretamente envolvida em pesquisas na área de Comunicação Científica, com ênfase na produção de indicadores científicos e colaboração científica, entre outros temas ligados à Cientometria, a professora Samile Andréa de Souza Vanz, do Programa de Pós-graduação em Ciência da Informação (PPGCIN) da UFRGS, é otimista em relação à cooperação e à divulgação científica que vêm sendo desenvolvidas na América Latina e, sobretudo, no Brasil.
Segundo ela, muitos países da América Latina estão engajados no movimento da Ciência Aberta muito por conta do lançamento do portal SciELO no Brasil ainda nos anos 1990.
“A SciELO se expandiu em seguida para a América Latina. Então este é considerado um dos principais movimentos incentivadores da Ciência Aberta. A América Latina vivenciou isso, tendo o Brasil como o país líder. É um marco importante para o movimento”
Samile Andréa de Souza Vanz
Além disso, houve o lançamento do software OJS (Open Journal Systems), um software livre disponibilizado gratuitamente e customizável. “As revistas latino-americanas, e especialmente as daqui do Brasil, pegam esse software, que é traduzido para o português e para o espanhol, e começam a utilizá-lo com muita rapidez, porque até então trabalhavam com um sistema todo analógico de publicação ainda em formato papel e envio via Correios. Daí, devido à gratuidade, tradução e facilidades, as revistas aderem ao OJS já dentro dessa lógica de publicações em acesso aberto”, conta.
Com o OJS até seria possível seguir a cobrança da assinatura, mas pelas características do software, as revistas passam a operar de forma gratuita e aberta: “No momento em que começam a ser disponibilizadas através da internet para os seus assinantes, sem os custos de antes, as revistas entraram no movimento mesmo sem saber exatamente o que isso significava. Acho que é por isso que nós somos muito fortes na Ciência Aberta no Brasil, pela adesão ao OJS e porque surgiu a SciELO”.
Os Acordos Transformativos da Capes
Com a intenção de fomentar uma mudança no sistema de publicação, a Capes lançou a iniciativa Acordos Transformativos, buscando uma democratização do acesso à pesquisa científica. Além da assinatura de periódicos científicos, a agência pretende colaborar com outras entidades para apoiar a publicação de artigos em acesso aberto. Para isso, adotou ações no sentido de combinar a contratação de assinaturas de periódicos com isenções nas taxas de publicação de artigos (APC).
Inicialmente, a Capes conduziu um questionário consultivo, envolvendo a comunidade acadêmica, para subsidiar a formulação da política de acesso aberto. Agora os resultados desse processo estão sendo aplicados por meio do Programa de Apoio à Disseminação de Informação Científica e Tecnológica (Padict), criado pela Portaria n.º 275 de 4 de dezembro de 2023. A Coordenação-geral do Portal de Periódicos e Informação Científica será responsável por avaliar e definir as instituições participantes, as editoras e os periódicos envolvidos. O conselho consultivo do Padict acompanhará anualmente essas ações.
Em junho de 2024, o Padict discutiu a possibilidade da transição das publicações científicas para o acesso aberto no âmbito do Portal Periódicos. O debate girou em torno de cifras milionárias, cujo contratos somam cerca de 100 milhões de dólares.
A Portaria n.º 120/2024 definiu diretrizes para o pagamento de APC, que será feito diretamente para as editoras científicas, a partir de contratos assinados pela Capes com editoras internacionais. Não haverá repasse de recursos diretamente ao pesquisador.
Os pesquisadores brasileiros publicaram quase 157 mil artigos em 2023, 75% deles em acesso aberto. Essa quantidade colocou o país na 10.ª posição daqueles com maior produção científica no ano. Os dados são do catálogo internacional OpenAlex e foram apresentados pela Capes durante uma mesa redonda sobre Ciência Aberta no Ibict. A discussão se concentrou na necessidade de maior divulgação científica no país e na importância de o Brasil se preparar para estar bem posicionado no movimento mundial de acesso aberto.