Publicado originalmente em Jornal da UFRGS. Para acessar, clique aqui.
Ciências Biológicas | André Nogueira Thomas e Milton de Souza Mendonça Júnior apresentam relato de pesquisa que demonstra mudanças nas borboletas na Mata Atlântica devido à grande presença de espécies de plantas exóticas
Observe a imagem acima. Algo despertou a sua atenção? Foram as manchas que lembram os olhos de outros animais (manchas ocelares)? O azul vívido que parece variar em diferentes áreas das asas? Ou quem sabe a mistura das cores do animal com as cores do ambiente? Imaginamos que cada um de nós possui uma resposta diferente, e pensamos se ela não poderia mudar com o tempo. Bem, talvez mude. Não por uma mera mudança de gosto ou percepção das pessoas, mas porque alguns dos padrões de cores presentes nas fotos podem acabar desaparecendo no futuro.
As cores cativam os seres humanos há milhares de anos, mas há milhões elas atuam como atributos que desempenham funções cruciais para os seres vivos, mediando várias de suas interações no ambiente em que vivem. Essas interações podem variar, já que alguns organismos são capazes de perceber diferentes cores, ao mesmo tempo que outros fatores como a iluminação ou as cores do próprio ambiente podem influenciar essa percepção.
A coloração dos organismos está, portanto, adaptada para exercer suas funções em condições específicas nos ecossistemas, e quanto mais dinâmico e biodiverso for esse ecossistema, mais diversas poderão ser as cores encontradas – e as borboletas ilustram isso muito bem! Sua história evolutiva é “pintada” por cores, uma vez que diferentes estratégias foram adquiridas ao longo de milhões de anos, o que explica – em parte – elas estarem entre os organismos mais coloridos na natureza; e esse atributo desempenha funções fundamentais ao longo de toda sua história de vida.
Mas o que ocorre com as borboletas e suas cores se as condições que permitem sua funcionalidade forem alteradas? Ricardo Spaniol, enquanto doutorando do PPG Ecologia da UFRGS e em colaboração com a UFPel e a Universidade de Exeter, na Inglaterra, avaliou a resposta das cores ao desmatamento na Amazônia. Em seu trabalho, Ricardo demonstra que os impactos desse distúrbio causam extinções locais das espécies mais coloridas, enquanto as que utilizam suas cores para se defender (como camuflagem, por exemplo) sobrevivem. Ao desmatar e destruir a Amazônia, estamos perdendo também o colorido das suas borboletas!
Será que outros biomas, como a Mata Atlântica, apresentariam o mesmo padrão de resposta às cores das borboletas? Outros distúrbios poderiam causar a perda da diversidade de cores? A coloração animal (em especial de borboletas) poderia servir como bioindicador? Para responder a essas questões, nós avaliamos a coloração das asas de borboletas frugívoras (que se alimentam de matéria orgânica em fermentação, como frutos) ao longo de diferentes ambientes naturais (sub-bosque e dossel da mata nativa) e antropizados (bordas artificiais e plantios de pinus de aproximadamente 25 e 70 anos, caracterizando diferentes estágios de recuperação da floresta nativa/sucessão florestal) da Floresta Nacional de São Francisco de Paula (Flona-SFP) – Rio Grande do Sul, Brasil, uma Unidade de Conservação de Uso Sustentável, localizada em um remanescente de Mata Atlântica.
A Flona-SFP é considerada um laboratório ecológico vivo, onde diversos trabalhos acadêmicos com importância científica puderam ser desenvolvidos. Em nossa pesquisa, utilizamos um banco de dados contendo 5.855 indivíduos de 47 espécies de borboletas frugívoras, originado a partir de amostragens organizadas pelo professor Cristiano Agra Iserhard (UFPel) e realizadas nos ambientes da Flona-SFP.
Medir e avaliar a coloração não é uma tarefa simples, mas diversas ferramentas podem torná-la possível, incluindo uma que é muito utilizada no nosso dia-a-dia: a fotografia! Utilizando protocolos padronizados e softwares de código aberto, somos capazes de extrair diversas informações sobre as cores dos organismos fotografados. Com esses dados em mãos, conseguimos avaliar e comparar sua distribuição entre as borboletas e entre os ambientes, obtendo assim um panorama da composição de padrões de cores para cada local.
As áreas de mata nativa (sub-bosque e dossel) apresentam composições de cores de borboleta diferentes entre si, algumas com características únicas que são pouco ou sequer encontradas nos ambientes antropizados, como o vermelho vibrante das borboletas-88. A borda também apresenta uma composição de cores diferentes, mas predominantemente mais claras devido à alta incidência de luz solar nessas áreas, além da presença de cores relacionadas a estratégias de defesa como a camuflagem.
Já os plantios de pinus diferem dos demais, mas não possuem diferenças entre si – independentemente da idade e do estágio de recuperação da floresta (sucessão florestal). Ali, apenas borboletas com cores pouco diversas, mais homogêneas, com menor frequência de iridescência e o predomínio de manchas ocelares são capazes de sobreviver. As espécies mais coloridas e com padrões diversos não são comuns ali mesmo após 70 anos do plantio da árvore exótica.
Bordas artificiais e plantios de pinus são distúrbios que alteram a paisagem natural e suas características, expondo as borboletas a diferentes pressões. Ambos tornam os ambientes abertos, seja através da supressão da vegetação causada pela borda ou pelo efeito alelopático dessas árvores, que impede o desenvolvimento de outras espécies vegetais, aumentando a iluminação e assim a visibilidade de cores muito chamativas para potenciais predadores.
Atualmente, a Mata Atlântica é considerada um berço da biodiversidade. No entanto, seu território sofre constantemente com a fragmentação e a perda de habitat causadas por distúrbios, como o avanço de espécies exóticas invasoras e o efeito de borda, o que ameaça as espécies nativas. Distúrbios antropogênicos geralmente são associados à perda da diversidade de espécies. No entanto, a biodiversidade também contempla as características funcionais dos organismos e suas interações. Através de nossa pesquisa, demonstramos que a coloração das borboletas também reflete respostas às consequências desses distúrbios, e pode, sim, ser utilizada como bioindicador.
Nossa pesquisa traz cores para uma faceta da biodiversidade que também sofre com a exploração contínua dos ecossistemas e seus recursos, o que significa a perda de contribuições cruciais para a manutenção da vida no planeta.
“Uma extensa pesquisa do mundo orgânico leva-nos, assim, a concluir que a cor não é, de modo algum, um carácter tão insignificante ou inconstante como parece à primeira vista; quanto mais a examinarmos, mais convencidos ficaremos de que deve servir algum propósito na natureza e que, para além de nos encantar pela sua diversidade e beleza, deve ser bem digna do nosso estudo atento e ter muitos segredos para nos revelar…”
Alfred Russel Wallace em As cores dos animais e das plantas (1890)
André Nogueira Thomas é graduando em Ciências Biológicas (bacharelado) na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, atualmente bolsista Fapergs de Iniciação Científica no Laboratório de Ecologia de Interações e divulgador científico nas plataformas Twitter/X e Instagram.
Milton de Souza Mendonça Júnior é professor do Departamento de Ecologia e coordenador do Laboratório de Ecologia de Interações.