Acesso virtual a acervos situados em países do norte favorece o desenvolvimento de pesquisas sobre o Antigo Oriente no Brasil

Publicado originalmente em Jornal da UFRGS. Para acessar, clique aqui.

Contemporaneidade | Pesquisadores refletem sobre a relevância de buscar em fontes da antiguidade oriental problemáticas que fomentem o debate sobre questões contemporâneas, especialmente quando isso é realizado a partir do sul global

*Foto: Escrita em papiro com parte do ‘Livro dos Mortos’, antigo texto
egípcio usado no início do Império Novo (Crédito: Mark Cartwright)

“Dispuseram morte e vida,
Da morte não revelaram o dia”

Ele que o abismo viu: Epopeia de Gilgámesh

O poema que conta o mito de Gilgámesh é o mais antigo registro literário conhecido até o momento. Acredita-se que foi escrito por volta de 2000 AEC – isto é, “Antes da Era Comum” – em tabuinhas de argila, que foram descobertas entre 1872 EC e 2014 EC. O material que antecede Homero e os textos bíblicos narra uma série de eventos e crenças que acompanham a humanidade até o presente, como a criação do homem a partir do barro, a existência de um grande dilúvio e mesmo o luto pela morte de um amigo muito próximo. Morte essa que abala inclusive um deus-herói como Gilgámesh, que, ao perder seu companheiro, se dá conta da efemeridade do mundo e de si próprio. E chora.

Apesar da distância temporal e mesmo geográfica, essas personagens e mitologias ressoam com a vida contemporânea e suas experiências humanas. Gilgámesh e as pessoas que escreveram sobre ele passaram pelo luto em 2000 AEC, na Suméria, no Antigo Oriente. E assim foi desde então. Hoje em dia, mais de quatro milênios depois, do outro lado do Atlântico, pessoas passam por experiências similares às do deus-herói. 

Tablete V da Epopeia de Gilgamesh, poema épico da Mesopotâmia reconhecido como uma das primeiras obras da literatura mundial (Imagem: Osama Shukir Muhammed Amin FRCP – Glasg)
O olhar contemporâneo

Outra experiência comum entre a contemporaneidade e o Antigo Oriente é a vivência política. O código de Hamurabi é uma das leituras do mundo mesopotâmico que mais emociona Katia Pozzer, assirióloga e coordenadora do Laboratório de Estudos da Antiguidade Oriental (LEAO) na UFRGS. Katia é professora dos cursos de História da Arte e de História e do Programa de Pós-graduação em História. No epílogo do código de Hamurabi, ela comenta, o rei em questão faz um discurso político de grande beleza. Isso a leva sempre a brincar: “Quero votar no Hamurabi!”. Evidente que, no âmbito da pesquisa, são analisadas as nuances ideológicas do discurso. Assim como hoje são analisadas as nuances dos discursos contemporâneos, os quais seguem com um propósito muito similar ao de Hamurabi: cativar, assustar, provocar alguma reação popular. 

Essas assimilações ajudam a pensar um olhar contemporâneo acerca dos estudos do Antigo Oriente Próximo. Katia Pozzer coordena também o projeto de pesquisa Gênero, Representação e Simbolismo na Arte Mesopotâmica, por meio do qual indaga fontes pretéritas, como as representações dos corpos em selos cilíndricos, a partir de ideias e problemas contemporâneos. “Discutir representação de gênero e sexualidade, que é um tema contemporâneo, que aflige e interpela as pessoas, que é importante e faz parte da luta contra o preconceito – é possível fazer isso também interpelando esses documentos antigos. Talvez uma contribuição que a gente possa fazer seja justamente quebrar com uma ideia de naturalidade do preconceito. De que as coisas sempre foram assim, então devem permanecer assim”, comenta a professora.

“Quando tu propõe questões que são contemporâneas, é legítimo tu indagar fontes antigas. Tu tá conectado com o mundo em que vive, não é diletantismo, tu não está estudando algo no passado só porque quer saber mais sobre, e sim porque essas questões têm a ver com a nossa vida hoje. Com a minha, com a tua, com o mundo em que a gente vive”

– Katia Pozzer

Leandro Ranieri integra o Laboratório do Antigo Oriente Próximo (LAOP), na Universidade de São Paulo (USP), e pesquisa história do corpo, dos gestos e dos sentidos corporais na antiguidade. Quando questionado se existe alguma característica que diferencia a leitura da Antiguidade Oriental feita no Brasil daquela feita no polo hegemônico (Norte Global), Leandro responde: “Às vezes a gente presta atenção a determinadas coisas que outros pesquisadores não prestam. Acho que o caso mais emblemático é o da imagem da mulher. Há mulheres nas cenas dos relevos palacianos, mas qual é o papel delas? O que estão fazendo ali? Esse lugar da mulher nas fontes é algo que foi durante muito tempo negligenciado”.

O pesquisador ainda comenta que não apenas a cultura desses países, mas também a formação histórica na academia são diferentes.

“A gente vai ter tendências teóricas nas ciências humanas que vão falar dos estudos pós-coloniais, decoloniais – tudo isso vai impactar a forma de lidar não só com as fontes de cultura material, mas também com as fontes escritas”

Leandro Ranieri
Uma nova geração

Ana Carolina Stobbe é estudante de Licenciatura em História na UFRGS e participa do LEAO. Próxima de concluir a graduação, Ana pretende seguir na pesquisa, em especial estudando gênero na Antiga Mesopotâmia. Foi em um Salão de Iniciação Científica que ela entrou em contato pela primeira vez com os selos-cilindros da Antiga Mesopotâmia. Desde então, teve a certeza de que esse seria um de seus objetos de estudo.

A discente, no entanto, chama a atenção para a ausência de tradução para a língua portuguesa de importantes bibliografias e a dificuldade de formar mais pesquisadores latino-americanos em função disso. O fato de que a maior parte dos acervos de artefatos do Antigo Oriente Próximo se concentram no Norte Global também impacta na produção de uma pesquisa a partir da ótica do Sul Global: “Temos muitas questões de direitos autorais, por exemplo, se formos publicar um livro e quisermos utilizar imagens dos museus […]. Acaba sendo caro viabilizar uma publicação.”. 

Ainda assim, segundo Ana, as coisas estão mudando para se formarem novos assiriólogos, por exemplo. “Nós temos professores que estão atuando muito forte aqui no Brasil.” A estudante cita três nomes, dos três únicos profissionais no Brasil com formação em acádio, sendo eles: a própria professora Katia, que coordena o LEAO; Marcelo Rede e Carlos Gonçalves, que coordenam o LAOP, na USP.

Tabuinhas de silício transatlânticas

Carlos Gonçalves observa que uma das principais razões que condicionam o ritmo de pesquisa da Antiguidade Oriental no Brasil, em comparação com a tradição já mais estabelecida no Norte Global, é a ausência no país de museus Fde grande porte com grande acervo ‘próximo oriental’. “Isso modifica um pouco a maneira de trabalhar com o Antigo Oriente Próximo. Nossa ênfase nunca vai ser a publicação de novos textos cuneiformes. Os museus (tanto na Europa quanto nos Estados Unidos) têm ainda muito material não publicado. É operacionalmente mais fácil de se publicar um tablete cuneiforme ainda inédito nesses lugares do que no Brasil, por uma questão de acesso.”

A modernidade, contudo, trouxe consigo os microchips, que acompanham as “tabuinhas de silício”, sendo elas computadores ou smartphones. Essa tecnologia ajuda em muito a desenvolver os estudos sobre o Antigo Oriente no Brasil, seja pelo acesso de fontes presentes no acervo de museus situados no Norte Global, como o acervo da Biblioteca Nacional da França, seja pela divulgação de tais estudos em uma linguagem mais acessível nas redes sociais, como é o caso do perfil do LEAO no Instagram, que conta com postagens de diversos pesquisadores do tema pelo Brasil.

A internet e a linguagem utilizada fazem com que o assunto atinja muito mais gente que possa vir a se interessar pelo estudo do que esses artefatos significam e como atuam sob o olhar contemporâneo. Nesse ritmo, quem sabe, daqui a um tempo, a palavra “assiriólogo” e sua função sejam tão conhecidas por um público mais amplo quanto a parceira helenista.

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