Publicado originalmente em ObjETHOS. Para acessar, clique aqui.
João Victor Gobbi Cassol
Mestrando no PPGJOR/UFSC, pesquisador do objETHOS e do Grupo Biosofia (Pesquisas e Estudos em Filosofia) URI-FW
Quando Jair Bolsonaro tomou posse como presidente da República em 2019, o tratamento dado aos jornalistas que cobriram aquela cerimônia de início de mandato era sintomático do que viria pela frente nos próximos anos. Na época, havia um receio velado sobre quais seriam os termos da relação entre o novo presidente e os jornalistas.
Contudo, ao contrário de romper abruptamente com a instituição do jornalismo brasileiro, Bolsonaro adotou com os profissionais da mídia um relacionamento baseado na constante tensão. Como uma criança em fase de desenvolvimento intelectual e comportamental que testa a tolerância dos pais, o presidente, que ao contrário da criança já não é um ser inocente, foi paulatinamente investindo contra o jornalismo (e também contra outras instituições) e medindo os limites dessa relação.
Aproveitando-se de uma sociedade democraticamente jovem e, portanto, inexperiente e resiliente diante de tais comportamentos, Bolsonaro “esticou a corda” ao limite com o jornalismo. Em quatro anos, ele pavimentou um caminho para que o inconcebível se tornasse tolerável, a ver os dois ataques sofridos pela jornalista Vera Magalhães em menos de 20 dias no meio da campanha eleitoral de 2022. O primeiro, de autoria do próprio presidente, e o segundo – pauta dessa última semana – cometido pelo deputado Douglas Garcia (Republicanos-SP).
Toda essa introdução, no entanto, não traz nada de novo. Sabemos que nossa profissão está sob constantes ataques, assim como está também a democracia brasileira. Temos consciência dos prejuízos concretos e estimamos alguns dos impactos a longo prazo dessa política implantada por Bolsonaro. Nada disso é novidade para qualquer jornalista.
E é justamente esse o problema. Nos acostumamos a sofrer.
Ser jornalista no Brasil
Bolsonaro, suas ações e seu projeto de país direta ou indiretamente pioraram a vida dos jornalistas brasileiros, uma realidade que já existia antes do atual governo, mas que agora foi ampliada.
E não falo aqui apenas dos aspectos políticos. Sim, jornalistas são escorraçados pelo presidente e também renegados ao sabor das circunstâncias por direitistas e esquerdistas – que o diga Vera Magalhães nessa semana. Mas vai além, o sofrimento da categoria se materializa em aspectos mais terrenos, por assim dizer.
Eterno postulante a um espaço central no mundo das profissões, o periférico jornalismo se contenta com migalhados elogios sobre sua “importância para a democracia”. Na prática, paga pouco para a grande massa de profissionais que trabalha na mídia. O Perfil do Jornalista Brasileiro de 2021 atestou: 23,9% dos nossos nem sempre têm dinheiro suficiente para pagar as contas do mês e um a cada dez (11,1%) fica devendo.
Enquanto ganhamos pouco, trabalhamos muito. Dos participantes dessa mesma pesquisa, 79,3% afirmaram trabalhar mais de cinco horas diárias – jornada legalmente considerada regular para um jornalista, embora as horas-extras também sejam previstas pela legislação, mediante pagamento.
A esses aspectos financeiros se somam outros: a maioria dos jornalistas se sente estressado no trabalho, uns 40% já sofreram assédio moral no ofício, 51,9% viram um colega sofrer assédio moral e outros 43% foram constrangidos por superiores. Um quarto dos respondentes frequentemente leva trabalho para terminar em casa.
Dores no corpo são comuns para 30,6% dos jornalistas e 24% relatam ter dores de cabeça com frequência. Nem todos têm tempo para cuidar de si mesmo, muitos não conseguem estabelecer limites entre a vida pessoal e profissional e 24,1% discordaram totalmente da afirmação de que seus empregadores oferecem um sistema de incentivo a uma relação balanceada entre trabalho e família.
Sem deixar transparecer pessimismo, é preciso ser justo e dizer também que o mesmo Perfil do Jornalista Brasileiro mostra que os profissionais em geral estão satisfeitos com sua qualidade de vida e prestígio social e a maioria quer permanecer trabalhando com jornalismo.
O que nos sustenta
Tais dados mostram uma aparente contradição na profissão de jornalista no país. É visível que estamos sofrendo já faz algum tempo – e agora ainda mais –, mas mesmo assim persistimos, resistimos. Diariamente vamos às redações e temos de lidar com algum problema com o qual não deveríamos ter nos acostumado, sejam eles de ordem interna, administrativa, ou externa, política. Há, ainda, outros agravantes que atingem especificamente as jornalistas mulheres.
Nossas respostas para essas condições repetidamente vêm sendo as mesmas. Ora parece que estamos sozinhos e sozinhas na luta por liberdade e respeito e aceitamos os fatos como se fossem isolados e desconexos, ora nos apegamos a um discurso hercúleo, de que o exercício do jornalismo prescinde de conforto e exige abnegação e coragem, tudo em prol de uma tal democracia.
Definitivamente esse comportamento de autoafirmação, que é virtuoso e honesto, não deveria ser celebrado com tons de masoquismo. Definitivamente, não deveria ser assim, não é nossa razão de ser. Pergunte a um calouro de jornalismo as razões pelas quais ele escolheu esse curso e veja se ele vai dizer que o sonho de sua vida é trabalhar até 10 horas por dia, sob pressão dos superiores e sem saber se o salário vai ser suficiente para pagar as contas no fim do mês. Não deveria ser tão custoso e difícil fazer um trabalho que é necessário para a sociedade.
Mercado de trabalho, política e neoliberalismo são alguns dos fatores que nos trouxeram a esse momento difuso enquanto categoria. E o estandarte da importância social, que historicamente usamos como escudo, está também sendo questionado – como deve ser, afinal nunca foi consensual ou totalmente capaz de garantir nossa liberdade, vide os últimos quatro anos.
É difícil encontrar soluções, mas o debate está posto. Não valorizados, sabemos que somos importantes, mas, ao melhor padrão jornalístico, para quem, quando, como e por quê?