Publicado originalmente em Coletivo Bereia por Juliane Gonçalves. Para acessar, clique aqui.
Como os fiéis lidaram e estão lidando com esse tempo de distanciamento e limites para a execução de suas atividades religiosas
Quando Raquel soube que as igrejas iam fechar era uma sexta-feira. Ficou desesperada. Saiu correndo para a paróquia que era próxima a sua casa. No aguardo de falar com o sacerdote, ficou no sacrário rezando. Assim que o padre chegou na secretaria, ela logo o cumprimentou e começou a “sondá-lo”.
– Oi padre! Então, vai fechar né?
– Pois é, vai fechar. – respondeu ele.
Ela pensou: “Agora é a hora”.
– Vem cá, o senhor pretende transmitir as missas?
– É, seria bom né? Você sabe fazer isso?
– Sei, sei.
Ela nunca tinha feito, mas estava disposta a aprender na hora.
– Então tá bom, amanhã a gente começa.
No dia seguinte, ela já estava lá.
Raquel Ney Alves Mamede tem 26 anos, é carioca, tijucana, fotógrafa, está se formando em Conservação e Restauração de Bens Móveis na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e professa a fé católica. A religião tem um papel central em sua vida. Ir à missa e realizar os sacramentos, isto é, receber a Eucaristia, realizar a Confissão, são atividades essenciais para sua fé. Durante a quarentena ela não ficou sem missa e contou que o padre deixava algumas pessoas a assistirem escondido.
Não foram todos os fiéis católicos que tiveram ou puderam ter a destreza de Raquel, já que cada arquidiocese e diocese no Brasil enfrentou e está enfrentando durante esse período pandêmico uma situação diferente, decorrente dos decretos estabelecidos pelos governos estaduais e municipais referente às altas nos casos de Covid-19.
Para o fiel católico realizar por completo os ritos de sua fé, a presença física é indispensável. Padre Rinaldo Roberto de Rezende, pároco da Paróquia de Santana de São José dos Campos, São Paulo, formado em Filosofia e Teologia, explica que os sacramentos são essencialmente presenciais na Igreja Católica porque “são sinais sensíveis e eficazes da graça de Deus e precisam ser tocados, é necessário apresentar uma matéria”. Por esta razão, o catolicismo é uma das religiões que mais encontra dificuldade de ter a completude de seus ritos online.
Todas as denominações religiosas que prezam pelo encontro da comunidade em um espaço físico e religioso, durante esses tempos encontraram a saudade. Como as religiões de matriz africana, o Candomblé e a Umbanda, que também prestigiam muito o contato físico, mesmo não sendo necessários para a prática de seus ritos.
Rodrigo André Soares tem 27 anos, é nascido na Bahia, atualmente mora em São Paulo, trabalha como analista de negócios e é umbandista na linhagem sagrada. Ele conta que, para a Umbanda, estar dentro do espaço religioso e sagrado significa o desligamento do mundo exterior, tais como trabalho, família, entre outros:
– Muitos umbandistas diriam que é essencial, porque você tem ali o abraço dos irmãos, toda uma confraternização que é importante – diz Rodrigo. – Muitas pessoas realmente se sentiram perdidas, porque seguiam uma rotina de estar toda sexta feira dentro de um terreiro, se consultando, botando para fora as coisas ruins que acontecem na semana. Quando isso é cortado, pode desestabilizar quem estava indo na caminhada.
Rodrigo também conta que o retorno no seu terreiro, Tenda Umbanda Caboclo Corisco, foi gradativo. Os integrantes foram voltando aos poucos, primeiro os que estavam já presentes na casa, depois os restantes.
Brasil Religião
De acordo com a pesquisa do Datafolha realizada em 2019, 50% dos brasileiros são católicos, 31% evangélicos, 3% espíritas, 2% de fiéis das religiões afro-brasileiras, 1% ateus, 2% proferem outras crenças (budismo, judaísmo, religiões indígenas) e 10% não tem religião. Entretanto, o levantamento não leva em conta quem realmente pratica a religião em toda plenitude e as pesquisas a respeito são pouco frequentes.
Magali do Nascimento Cunha, 58 anos, é jornalista e pesquisadora em Comunicação e Religião. Ela conta um pouco como a religião e a fé compõem o retrato do povo brasileiro:
– A fé é muito presente na forma como culturalmente o Brasil foi construído – explica Magali Cunha. – A gente tem uma matriz religiosa que vem dos povos indígenas, dos colonizadores portugueses com o Cristianismo via Catolicismo, com os africanos que trouxeram suas crenças e assim por diante. Essa base está muito presente na nossa forma de viver, na forma como a fé foi assimilada e mesclada. Então, o brasileiro pode não ter nenhum vínculo com alguma religião, mas esse elemento da fé vai aparecer de alguma forma. Por exemplo, uma pessoa vai ao jogo de futebol e fica fazendo oração para o seu time ganhar. Tem dois deuses? Tem um deus mais forte? Não, na verdade é a forma como essa pessoa lida com esses elementos, de fé, de ter uma experiência com o mistério, com o inexplicável, com o transcendente.
Igrejas: um serviço essencial?
– A meu ver, a saúde espiritual é até mais importante que a física. Não que precisemos deixar a física, porque somos um todo e precisamos cuidar dele, mas porque a saúde espiritual vai além – diz Raquel logo após contar a história de alguns santos, como Madre Teresa de Calcutá e Maximiliano Maria Kolbe, que tiveram sua saúde física debilitada, mas permaneceram fortes em sua trajetória de fé. Por conta dessa posição e de citar que a própria Medicina reconhece o fator de auxílio da fé, ela acredita que as igrejas podem ser incluídas nos serviços essenciais.
No dia 26 de março de 2020, o governo federal incluiu as igrejas na lista de serviços essenciais para a população brasileira, aqueles indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade, que, se não atendidos, colocam em perigo a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população.
De acordo com estudiosos da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Juiz de Fora, a fé ajuda a tratar depressão e ansiedade, doenças que durante a pandemia duplicaram segundo o Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Constatou-se que os casos de depressão saltaram de 4,1% para 8%, e nos casos de ansiedade o índice saltou de 8% para 14,9%.
Raquel conta que sua tia teve uma depressão com surtos psicóticos durante três meses. Sua situação era grave e o motivo era a preocupação com o vírus. A tia vivia lavando tudo. Com receio das consequências psicológicas, sua família desde o início da pandemia decidiu coletivamente não se preocupar tanto.
– Não é que eu não pense no coletivo, mas achar que pensar no coletivo se limita ao coronavírus e não transmiti-lo, é muita ingenuidade. Eu teria que concordar com o comportamento da minha tia então?
Em contrapartida, alguns especialistas não acham que seja adequado que as igrejas voltem a funcionar, em razão da possibilidade de contaminação, e que o decreto do governo está além da atenção aos fiéis e sim fazendo política. Assim opina Magali Cunha, que atualmente está trabalhando com pesquisas em relação à presença de religiosos no Congresso Nacional:
– O governo que está no poder constituiu alianças com grupos religiosos cristãos conservadores. Para se manter minimamente bem, ele vai se “agarrando” a essas alianças que vêm desde a campanha em 2018. Ao classificar igrejas como serviços essenciais, o governo está agradando esse grupo. Isso nunca poderia ser considerado, primeiro porque o Brasil é um país constitucionalmente laico. Em segundo lugar, quando a gente fala de um serviço essencial durante a pandemia, uma guerra, situações que são consideradas um perigo, está se limitando serviços para manter a população viva com saúde. Uma reunião em uma igreja ou espaço religioso não é um serviço essencial para essa natureza, as pessoas precisam porque têm fé, mas isso pode ser mantido de alguma forma à distância, como muitos grupos religiosos fizeram. Se há alternativa, não é essencial. Fora isso, o fiel corre o perigo de ir à igreja e não voltar – diz Magali Cunha.
Encontrar novas formas de estar presente
Durante a pandemia, igrejas, centros e terreiros tiveram que buscar alternativas. Religiosos que não têm como cerne a presença dos fiéis no espaço físico para a completude dos ritos conseguiram adaptar mais facilmente suas atividades religiosas para o meio remoto. Mas independentemente de credo, todos os entrevistados afirmam sentir falta de se reunir em grupo.
Sabrina Komatsu Lopes, 22 anos, estuda Pedagogia, mora em São José dos Campos, no interior de São Paulo, e é espírita kardecista. No seu Centro Espírita todos os participantes assistem e dão aulas. Ela mesma já chegou a dar aulas para crianças. Com a pandemia, eles migraram para o meio remoto. Seu centro espírita esteve fechado, mas se alguém precisasse de muito de ajuda, poderia participar de uma reunião mediúnica ou receber um Reiki (captar informações de outras encarnações) presencialmente. Apenas em casos extremos é aberta uma exceção. Ela conta que se adaptou bem aos meios remotos, mas sente falta dos eventos intermunicipais.
– O momento que estamos vivendo agora é para pensar na saúde pública. Você estando em casa está protegendo a todos, não só você. Se você quer priorizar seu lado espiritual você pode se concentrar em pegar um livro, aplicar o seu estudo ou fazer um momento de evangelho com a sua família. Há outros meios de manter o equilíbrio espiritual. – diz Sabrina, alegando a possibilidade da prática da fé fora do centro religioso.
Suellen Rocha da Silva, 26 anos, estudante de pedagogia da UFRJ, conta como foi realizar a Santa Ceia on-line durante o tempo em que sua igreja protestante, Nova Vida, esteve fechada:
– Cada pessoa poderia pegar um suco de uva e um pedaço de pão, o pastor fazia a oração e aquilo estava representando a Santa Ceia mesmo.
Com a abertura das igrejas, ela diz que agora os pãezinhos e vinho são distribuídos em copinhos lacrados. Voltou a frequentar presencialmente sua Igreja depois de um longo período de quarentena. Na época, ficou feliz pelo fechamento porque achou a decisão mais segura. Mas agora, acredita com credibilidade que com os cuidados necessários e uso de máscara é possível frequentar as celebrações. Após ter ido a três cultos presenciais depois da quarentena, descobriu que estava com a Covid-19. Ela, seu marido Kleber, mãe e pai tinham pegado de uma tia que ocasionalmente os visitou. Dois dias antes de descobrir, ela e o esposo tinham conversado com o pastor que era grupo de risco. Seu marido e ela estavam de máscara e usavam frequentemente álcool em gel. Ela diz que o pastor queria entrar em contato, mas Kleber não permitiu. Com os cuidados, o pastor ficou imune.
Sabrina, Suellen e Rodrigo não acreditam que as igrejas devam ser consideradas serviços essenciais, justamente porque a distância do espaço religioso não anula a prática da fé. Rodrigo, durante sua quarentena, esteve de joelhos, acendeu velas, clamou proteções, fazendo suas orações. Ele viu a pandemia como uma oportunidade de trabalhar a espiritualidade interna, algo que ele acredita que já carrega.
Padre Rinaldo agora sente maior firmeza em tocar as celebrações em sua paróquia, já que o tempo de pandemia o ensinou a evitar ao máximo a possibilidade de contaminação. A diocese local incentivou que todos os párocos reforçassem as restrições. Ele concorda que a Igreja Católica deva permanecer aberta e afirma que ela é a que geralmente segue melhor as restrições. Relatou como uma de suas fiéis reagiu quando soube que São José dos Campos adotara as medidas da fase vermelha do plano São Paulo:
– Vocês vão fechar a Igreja? Padre pelo amor de Deus não fecha a Igreja! É o lugar aonde eu vou todos os dias, onde eu me encontro, onde eu tenho conseguido encontrar forças para lutar. Enquanto isso, em junho, Raquel publicava nas redes sociais: “E se um idoso quiser ir à igreja e assumir o risco de morrer? Tipo assim, e se ele preferir morrer comungando a ficar em casa sem os Sacramentos? Eu sei, a gente nem acredita mais tanto assim nos Sacramentos, para nós tanto faz… mas e se tiver um louco de cabeça branca que ainda acredite na Presença de Jesus na Eucaristia e prefira morrer com Ele do que em casa vendo notícias?”.
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Foto de capa: Raquel Nery