Publicado originalmente em Jornal da UFRGS. Para acessar, clique aqui.
Artigo | Vitória Duarte e Marília Luz David, da Sociologia, destacam a experiência das Cozinhas Solidárias para demonstrar a capacidade das periferias de produzir respostas articuladas e eficazes em momentos de crise climática e aumento da insegurança alimentar e nutricional da população
Foto: Isadora Klein/Levante Popular da Juventude
Durante a covid-19, movimentos sociais criaram as chamadas Cozinhas Solidárias, espaços coletivos de produção e distribuição gratuita de alimentos para grupos em situação de vulnerabilidade social. Tais iniciativas emergiram como resposta ao aumento drástico dos níveis de insegurança alimentar e nutricional (ISAN) no Brasil durante a pandemia e, ainda, ao desinteresse e inépcia do Governo Bolsonaro em lidar com a calamidade sanitária.
Um estudo sobre segurança alimentar e covid-19 demonstrou que as pessoas que apresentavam mais dificuldade para a aquisição de alimentos eram mulheres negras, mães solo e moradoras de zonas marginalizadas. Assim, as Cozinhas visam combater a fome no Brasil, que afeta principalmente pessoas periféricas e é intensificada durante períodos de crise, como durante a ocorrência de eventos climáticos extremos.
Com o Rio Grande do Sul (RS) vivenciando uma catástrofe ambiental que parece não acabar, as Cozinhas Solidárias demonstram novamente sua importância para garantir que as periferias tenham o que comer e chamam a atenção para como as mudanças climáticas têm efeitos diretos nos níveis de ISAN da população. Mais de 55 mil pessoas afetadas pelas enchentes estão em abrigos improvisados pelo governo do estado. Em Porto Alegre, os abrigos concentram a população mais vulnerável, que não pôde se alojar na casa de familiares e nem se refugiar no litoral gaúcho, como “apelou” o prefeito Sebastião Melo. Esses abrigos representam a maior parte das demandas das Cozinhas espalhadas pela cidade, que tomam diferentes formas e são comandadas por distintos movimentos sociais em busca do mesmo objetivo: oferecer alimentação adequada e saudável para quem já perdeu tanto.
A Cozinha Solidária da Azenha (CSA), na Capital, serve cerca 3.400 marmitas por dia para suprir a demanda emergencial da cidade — um aumento de três mil almoços em relação ao seu funcionamento normal, que atendia apenas às pessoas em situação de vulnerabilidade social da região. A CSA é uma das 47 Cozinhas gerenciadas pelo Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST) e representa um esforço coletivo de combate à fome nas periferias urbanas, contando com os movimentos de Atingidos por Barragem (MAB), Pequenos Agricultores (MPA), com a Marcha Mundial das Mulheres e o projeto Amanda Massa, além de voluntárias “expontâneas” que ajudam a construí-la.
Na Vila Barracão, a Cozinha chefiada pelo Levante Popular da Juventude passou a funcionar no começo do mês de maio, quando o colapso na capital iniciou. Neste mesmo cenário, o Levante passou a se somar a Cozinhas nos bairros Mário Quintana e Bom Jesus, que já existiam e são chefiadas por lideranças locais, que atendiam as moradoras dos seus próprios bairros e regiões vizinhas. Estas Cozinhas são exemplos de ações, protagonizadas pelas periferias, que já existiam e foram capazes de se potencializar a fim de diminuir os efeitos das mudanças climáticas nos níveis de ISAN da população.
O protagonismo das Cozinhas durante a pandemia da covid-19 e agora, durante o colapso ambiental no RS, demonstra a importância da mobilização popular e das ações de ativismo alimentar no combate à fome e na garantia de segurança alimentar e nutricional (SAN) da população periférica. Construídos por ativistas que fazem parte das comunidades, estes são projetos de ativismo alimentar de pessoas periféricas para pessoas periféricas. Além da soberania alimentar, promovem um espaço de luta e resistência para a população local, recebem apoios coletivos e individuais, organizam rodas de conversa e oficinas culturais.
Por serem construídas por pessoas historicamente marginalizadas, as Cozinhas são projetos que entendem que, sim, “quem tem fome, tem pressa”, mas que, além de comer, a periferia também precisa de espaços de sociabilidade.
Conduzidos de forma voluntária, os projetos contam principalmente com a sociedade civil para se manterem de pé. Tendo trabalhado em algumas dessas Cozinhas durante o último mês, a primeira autora deste artigo pôde presenciar o senso de comunidade que estrutura esses espaços. Mais do que uma forma de mobilização para a construção de periferias que defendem o direito das suas moradoras à dignidade, as Cozinhas também são lembretes diários de que o acesso à SAN é um direito da população brasileira, garantido pela Constituição e que, portanto, deve(ria) ser assegurado por meio de políticas públicas.
Em entrevistas e coletivas de imprensa, o governador do RS, Eduardo Leite, regularmente sinaliza que o estado precisa de recursos financeiros para ser reconstruído. Ainda no começo de maio, o presidente Lula anunciou o repasse de R$ 50,9bi, além de suspender a dívida do estado com a União por três anos. Mesmo assim, Leite não apresentou nenhum plano concreto do que será feito com a verba destinada. O prefeito da capital também parece não saber o que acontece com a cidade e notícias sugerem que há pouco controle das empresas privatizadas com seu apoio. Enquanto isso, as periferias têm se mobilizado por conta própria para não deixar os seus passarem fome, demonstrando, mais uma vez, como esses sujeitos são capazes de produzir respostas criativas e articuladas para crises e emergências.
No dia 23 de maio, movimentos sociais e sindicais, conselhos da sociedade civil e representantes de ministérios do governo federal e parlamentares, inauguraram a Central de Abastecimento das Cozinhas Solidárias (CEAB) em Porto Alegre. A CEAB visa organizar o recebimento e a distribuição dos alimentos às Cozinhas Solidárias da capital e promover cursos e ações que capacitem as suas voluntárias. Ela também representa um avanço importante no diálogo entre movimentos sociais e governo.
As periferias precisam ser reconhecidas não apenas como objetos para os quais as políticas públicas sobre ISAN e adaptação e enfrentamento às mudanças do clima são formuladas, mas também como sujeitos das suas criações, capazes de produzir conhecimento, competências e valores relevantes para pensar essas questões.
Vitória Duarte é educadora, historiadora, mestranda em Sociologia pela UFRGS e membro dos grupos de pesquisa TEMAS (Tecnologia, Meio ambiente e Sociedade), onde pesquisa os diferentes arranjos de ativismos alimentares no Brasil, e SOPAS/UFRGS (Sociologia das Práticas Alimentares).
Marília Luz David é professora do PPG em Sociologia da UFRGS, coordenadora-adjunta do grupo TEMAS, onde desenvolve pesquisas sobre práticas alimentares e tecnociência, e pesquisadora do grupo SOPAS/UFRGS (Sociologia das Práticas Alimentares).