A noite que nunca terminou

Publicado originalmente em Editorial J, – Laboratório de Jornalismo Convergente do Curso de Jornalismo da Famecos Para acessar, clique aqui.

Em Todo dia a mesma noite, Daniela Arbex mostra a importância de se colocar no lugar do outro

  • Por: Fabiane Cunha (6º semestre) | Foto: Fabiane Cunha |

“E se eu estivesse no lugar dele?”, “e se minha filha não tivesse saído naquela noite?”, “e se eu tivesse impedido meus filhos de irem àquela boate?”. E se, e se, e se… Essa é uma das principais perguntas feitas por pais e mães das vítimas do incêndio na boate Kiss, que ocorreu na madrugada de 27 de janeiro de 2013, em Santa Maria, no Rio Grande do Sul. A história teve repercussão mundial, e o luto dos familiares que perderam seus entes queridos na tragédia nunca vai suavizar.

Em 2018, a jornalista Daniela Arbex lançou um de seus livros mais emocionantes. Todo dia a mesma noite: a história não contada da boate Kiss é um trabalho investigativo que vai além da descoberta das vítimas e do que causou a tragédia, se há culpados pelo ocorrido. A reportagem trata da relação que Daniela estabeleceu com familiares de vítimas e sobreviventes. Cada história é contada com um olhar sensível de uma jornalista que está ali para além do seu trabalho. Daniela revela detalhes chocantes dos últimos momentos das vítimas, a relação com os familiares e a preocupação e o desespero de mães e pais que não tinham notícias dos filhos. Muitos demoraram a descobrir que seus descendentes foram a óbito, pois ou não recebiam notícias, ou simplesmente não acreditavam no pior. A forma como cada história é contada causa uma compaixão no leitor, e é impossível não imaginar – pelo menos um pouco – a dor de cada família. Na noite de 26 de janeiro de 2013, pais e mães se despediram de seus filhos sem imaginar que poderiam não reencontrá-los após uma festa que deveria ser como qualquer outra: segura. Alguns pontos já indicavam falhas na boate, como o Alvará de Prevenção e Proteção contra Incêndio vencido e o número limite de pessoas permitidas ultrapassado.

Um dos capítulos mais revoltantes é o quatro, intitulado “Quando a política vem na frente da dor”. A revolta é em relação ao fato de que a presença de políticos dentro do ginásio onde ficaram os corpos das vítimas foi permitida antes mesmo que pais e mães pudessem ver seus filhos e reconhecê-los. Por que um desconhecido pode entrar antes da própria família? A resposta parece óbvia: porque são autoridades. Mas e a dor de mães e pais, e o desejo de enterrar seus filhos com dignidade? Um casal perdeu as duas filhas no incêndio e o pai relatou a dificuldade que seria viver sem elas, enquanto a mãe não queria acreditar na situação e nem aceitar a morte das próprias filhas. São tantas histórias de perda e vivência do luto que se torna impossível classificar quais famílias sofreram mais. 

Diferente de outras obras da autora, Todo dia a mesma noite não possui imagens para ilustrar os capítulos, pois a narrativa já é suficiente para mexer com as emoções do leitor. As imagens, entretanto, estão nas últimas páginas do livro, com legendas que contextualizam o momento em que cada uma foi tirada. Isso preserva a memória de cada vítima do incêndio e a dor das famílias, resultando na compaixão de Daniela ao contar cada história apenas com as palavras.

Além da dor dos familiares, a história também é contada sob o ponto de vista de profissionais da saúde e bombeiros que atuaram no resgate de vítimas e atendimento aos sobreviventes. Uma das passagens mais marcantes é quando Robson Viegas Müller, comandante de Socorro e Sargento do Quartel do Corpo de Bombeiros de Santa Maria, entra na Kiss após o incêndio e, nos banheiros, encontrou pilhas de corpos de pessoas que tentaram fugir por alguma janela que estava vedada e impedia a saída. Robson entrou em choque e afirmou, em desespero, que não havia conseguido salvar ninguém. 

A atuação dos profissionais da saúde e bombeiros durante os dias que prosseguiram a tragédia relembra porque a história não se atém apenas ao ocorrido no interior da boate, mas também mostra a capacidade e vontade desses profissionais de ajudar familiares enlutados. Mesmo com o alto número de vítimas, médicos e enfermeiros continuaram a cuidar dos sobreviventes, que eram transferidos para diversas cidades do estado. O cuidado com sobreviventes fez esses profissionais estudarem amostras de sangue de todos que passaram pela Kiss. Isso resultou na descoberta de cianeto no sangue, uma das substâncias mais letais e que leva à morte em menos de cinco minutos. A fumaça inalada pelas pessoas durante o incêndio é a principal causadora desse problema na corrente sanguínea e da morte por asfixia das vítimas.

Em Todo dia a mesma noite, Daniela Arbex conta uma história que todo mundo já viu na mídia. Porém, a inovação está na forma como cada história em particular é contada e em como algumas se conectam, pois muitos pais e mães de vítimas têm amizade com pessoas que também perderam algum familiar no incêndio. Isto, de certa forma, faz as famílias se unirem e se fortalecerem juntas, buscando apoio e resiliência umas nas outras.

Todo dia a mesma noite é o exemplo perfeito do jornalismo que investiga e apura e que não deixa de lado a emoção de contar uma história cheia de compaixão e luto, sem ter medo de ouvir aqueles que imploram por justiça e lutam para preservar a memória de seus familiares vitimados em uma das maiores tragédias da história do Brasil.

A Netflix adquiriu os direitos do livro e está produzindo uma série baseada na tragédia. A autora da obra, Daniela Arbex, é uma das supervisoras da produção.

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