A literatura orgulhosamente negra e caipira de Ruth Guimarães

Publicado originalmente em Jornal da UFRGS por Mírian Barradas. Para acessar, clique aqui.

“E Joca é esse trapo que anda aí. Virou andante. Um dia está aqui, outro dia não se sabe dele. Aquele sossega só com a morte. Assim mesmo, não sei. Até em Curiango a praga acertou de ricochete. Enquanto o pai foi vivo, foi um cabresto para ela, mas depois que morreu… Não pode contar com o marido e não é mulher pra ficar sozinha. É moça demais e é bonita demais. Tudo no diacho dessa mulher faz a gente lembrar de correnteza. Tem o andar bamboleado e macio de veio d’água. Tem uma risada de passarinho nascido perto da cachoeira. E o lustro daqueles olhos pretos é ver lustro de jabuticaba bem madura, molhada de chuva”

Trecho de Água Funda

“É um romance, mas escrito como se fosse prosa fiada, como se fosse narrativa caprichosa que vai indo e vindo ao sabor da memória, ao jeito dos contadores de casos.” É dessa forma que Antonio Candido resume Água Funda no prefácio escrito para a segunda edição da obra, publicada em 2003.

Essa prosa fiada, que dá ao leitor a sensação de estar escutando as personagens, é um dos aspectos mais aclamados do romance de Ruth Guimarães (1920-2014). Nascida e criada em Cachoeira Paulista, cidade localizada quase na divisa com Minas Gerais, Ruth traz a Água Funda um retrato do Brasil caipira sem cair em estereótipos ou idealizações. Usando seu lugar de fala como mulher negra e caipira, a autora se inspira na sua própria vida na roça.

Com linguagem marcada pela oralidade, o romance é repleto de descrições. “A gente vê o caipira, aquele que é ligado à terra, as descrições da natureza, a gente vê bem o sentimento dela [da Ruth] de amar esse lugar. E aí tu vai ver na biografia dela que ela não sai desse lugar, ela fica ali. Esse é o desejo dela: ver aquele céu, ver aqueles pássaros, ver aquela flora… E a gente chega até a sentir o cheiro do ar puro”, destaca a doutoranda em Letras pela UFRGS Ana dos Santos, que pesquisa literatura negra de autoria feminina.

A obra é escrita em um formato de conversa de um/a narrador/a com “um moço”. A doutoranda do departamento de Estudos Literários da USP Cecília Furquim defende que, na verdade, o/a narrador/a é uma mulher. Ela explica que, ao longo do romance há diversas pistas que mostram que esse/a narrador/a é alguém da comunidade e que, ao mesmo tempo que tem familiaridade com a linguagem caipira, também possui educação formal. “A gente poderia dizer que a narradora é um alterego da Ruth, porque ela tinha uma escolaridade, inclusive, excepcional para a época, para o fato de ser uma mulher negra”, aponta.

Ana concorda que o/a narrador/a é alguém pertencente à comunidade, mas tem dúvidas quanto ao gênero. “Pode ser uma narradora, mas o que me incomoda é que o posicionamento desse narrador é muito vago. Ele só diz ‘na escravidão era assim’. E eu não sei se a Ruth respeitaria tanto assim o poder, porque, para mim, ela era muito ousada para a época”, analisa. Afinal, Ruth era uma mulher negra, caipira e jovem – Água Funda foi publicado em 1946, quando ela tinha 26 anos.

Seja com narrador ou narradora, a composição do romance – fragmentada, uma espécie de “colcha de retalhos” – é a grande originalidade da obra. Cecília aponta que, como isso não era comum na época, esse aspecto não foi bem recebido pela crítica naquele momento. “A gente pode dizer que essa composição da obra – que na época do lançamento foi alvo de críticas – tem a ver com o fato de a Ruth ter juntado ‘causos’ que ela escutava, vivenciava”, diz.

Em um depoimento concedido ao Museu Afro Brasil em 2007, Ruth comentou que essa composição se inspirava no povo brasileiro.

“Assim como somos um povo mestiço, todo cheio de misturas de todo jeito, a nossa literatura também é toda feita de pedaços de textos, de arrumações aqui e ali”

Ruth Guimarães

A obra acontece em dois momentos temporais: a primeira parte do livro se passa cerca de 15 anos antes da abolição da escravatura, na fazenda Olhos D’Água; a segunda parte, entre os anos 1930 e 1940, na cidade de Pedra Branca. Apesar desse salto no tempo, o que se percebe no romance é que aspectos como a exploração do caipira e a desigualdade permanecem intocados, fazendo uma espécie de desvelamento da estrutura colonial que permaneceu no Brasil.

“Mudou a fase, mudou o século, mudou de Monarquia para República, mas na água funda do Brasil se manteve a estrutura colonial”

Ana dos Santos

Nesse sentido, em um dos trechos do livro é inevitável lembrar de notícias recentes sobre casos de trabalho análogo à escravidão na Serra e na Fronteira Oeste gaúchas. Em Água Funda, um forasteiro sem nome chega a Pedra Branca para recrutar homens para trabalhar na abertura de estradas no sertão, prometendo o pagamento de trinta mil réis (um valor alto) por dia.

“– E livre de despesas. Quer dizer, não é bem livre de despesas. É assim: todos os gastos correm por conta dos engenheiros. É uma companhia grande. Depois o empregado paga aos poucos. Quando a gente entra, assina um contrato…

– Assim é bom. Mas a Companhia tem de tudo?

– Tem. Armazém, loja e farmácia, além de alojamento para o pessoal.

– Tudo isso e os trinta por dia correndo…”

Um dos personagens, Mané Pão Doce, resolve aceitar a oferta. Volta, tempos depois, contando que precisou fugir do lugar, porque a situação era diferente do prometido: além de trabalhar pesado, sem descanso e ouvindo ofensas do patrão, os empregados eram pagos em vales, aceitos apenas no armazém da Companhia – que cobrava muito caro pelos produtos. Ao pedir as contas, o empregado descobre que deve ao patrão pela viagem, pela esteira em que dormia, pelo alojamento, pela lavagem de roupa, além das compras no armazém – e só pode ir embora quando saldar a dívida. “Contando com tudo, ia meu ordenado e eu ainda ficava devendo uns dois meses de serviço”, reflete a personagem.

O/a narrador/a de Água Funda credita os tristes destinos dos personagens a uma praga lançada pela escravizada Joana. Para Ana, a praga é uma metáfora para os 300 anos de escravidão. “Esse romance está fazendo uma crítica à escravidão e ao pós-abolição, que manteve as coisas como estão e, se elas estão dando errado, é porque não se resolveu isso lá atrás. É o fantasma da escravidão”, conclui a pesquisadora.

Leia mais:
Ruth Guimarães: Uma romancista negra na imprensa brasileira dos anos 1940, de Silvio D’Onofrio
A instabilidade na crítica do romance Água Funda, de Ruth Guimarães, de Cecília Furquim

Arte: Erika Nunes Fernandes 

Com o objetivo de ampliar as experiências de leitura, o JU produz, desde 2018, uma série de reportagens em que especialistas destacam aspectos e fazem análises interpretativas das obras indicadas pela Universidade. Acompanha cada texto a criação de artistas convidados que dialoga com a obra e a biografia de autoras e autores. Veja todas reportagens aqui.

Erika Nunes Fernandes é artista visual e estudante de Artes Visuais na UFRGS. Suas pinturas e esculturas partem do estudo da fauna e flora e usam tintas fluorescentes, tendo vida também no escuro.

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