A liberdade para fabricar mentiras fatais

Publicado originalmente em Observatório da Imprensa por Sandra Bitencourt e Samuel Pantoja. Para acessar, clique aqui.

Na coluna “Indignação popular não é Fake News”, publicada na Folha de São Paulo no dia 12 de maio de 2024, Lygia Maria, doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, diz que “o governo para conter desinformação sobre a tragédia no Rio Grande do Sul deve participar do debate em vez de usar seu poder de polícia para perseguir cidadãos”. Sob um verniz acadêmico, a autora desdenha checagens e naturaliza a disseminação de desinformação em catástrofes, tudo em nome de uma estranha defesa da democracia e da liberdade, ignorando conceitos e transformações cruciais na dinâmica virtual e sua totalidade simbólica no mundo. São argumentos que fazem recuar várias casas no intricado e dinâmico “jogo” epistemológico da nova ecologia midiática, espaço fundamental da intensa disputa pela hegemonia das ideias na sociedade.

Falando em jogo. Foi graças aos videogames que o usuário, pela primeira vez, podia controlar o que acontecia na tela. Os diferenciais mais importantes entre a TV e os jogos domésticos que dividiram as famílias no entretenimento audiovisual foram a atividade, a concentração, a participação e a conexão direta entre simulação e realidade. De muitos modos, as ações e dinâmicas nas redes sociais são herdeiras dessa primeira tecnologia mais acessível, inaugural de uma nova era síntese entre o signo e o ato, entre representação e ação. Essa visita a mundos imaginários com a possibilidade de interatividade criou uma outra linguagem e, portanto, um novo discurso, dominado pela imagem, pelos contextos específicos de percepções, cognições e novos processos de significação, com inovadores aspectos culturais e semânticos.

A importância da leitura de imagens e da conexão entre simulação e realidade precisa ser reconhecida para compreender novos fluxos e usos dos conteúdos que circulam como memes, como vídeos – síntese, como prova de denúncia, como relato de posições, como disputa política e mercadológica. Na contabilidade dos que pretendem dominar a vitrine digital está o número de cliques conquistados, o engajamento, o alcance, a orquestração, a influência, a monetização, com diferentes propósitos, estratégias e rentabilidades. Os usuários da comunicação percebem, agem, respondem, criam experiências, coabitam essas interfaces como um novo território midiático e produzem mudanças em todos os âmbitos: da política, da cultura, do trabalho, da ciência, reinterpretando e ressignificando permanentemente as estratégias propostas pela indústria digital e customizando o que julgam ser verdade. É sempre oportuno lembrar que no novo ecossistema midiático digital há notáveis distinções dos poderes de fala dos agentes, cidadãos e cidadãs comuns. Tal aspecto, em geral, desequilibra o jogo em favor dos poderes econômicos e políticos.

Isso altera tudo. Porque não há mais somente opinião ou livre pensamento desinteressado na timeline, há em grande medida organização criminosa com foco em lucro financeiro e político, com elevados recursos, ramificações internacionais, com exércitos de robôs, com sofisticados usos neurolinguísticos para capturar emoções e sentimentos, promover instabilidades e fazer reinar interesses nunca confessos. Olhar para os modos – e princípios – do fazer comunicação pública, promover transparência, escutar opinião e, em síntese, informar devidamente o debate cívico e de interesse dos cidadãos, adquire outro patamar e exige outras responsabilidades públicas, especialmente dos governos. Fazer isso em meio a um acontecimento trágico torna-se ainda mais dramático e, portanto, mais severo, com implicações profundas na sociedade. Não se trata de um game. Não há vidas para gastar no jogo. A morte é real. Um meme ou um vídeo falso pode significar que alguém que aguarda desesperado no telhado de uma casa arrastada pela correnteza não encontre resgate. Que alguém que não sucumbiu à força da enxurrada, exausto e entristecido, não consiga abrigo ou uma comida quente para sobreviver ao desalento completo.

Deixando um pouquinho os conceitos de lado, que não é o ponto forte do texto da autora, vamos aos fatos, algo tão escasso nos ataques coordenados e sistemáticos feitos pelos promotores da mentira.

Desde o dia 3 de maio, a agência de checagem Lupa está com uma equipe dedicada a verificar as fakes sobre as enchentes no RS. São mais de três dúzias de conteúdos verificados e desmentidos (https://lupa.uol.com.br/jornalismo/2024/05/06/doacoes-retidas-e-corpos-encontrados-veja-o-que-ja-checamos-sobre-as-enchentes-no-rs). Tem de tudo um pouco, mas alguns são especialmente nocivos e dolorosamente perigosos para o socorro aos refugiados climáticos, como os que dizem que a água que chega nas torneiras é imprópria para consumo, que o envio de remédios doados é barrado pela Anvisa, que o governo federal enviou alimentos vencidos ou que os caminhões com doações estão sendo retidos em postos fiscais. A desinformação ampliou dramaticamente a crise no Estado.

De olho nisso, as decisões judiciais têm bloqueado a disseminação do caos. A cautelar que mandou retirar a postagem do perfil Nego Di no Facebook que mentia sobre uma suposta proibição pelo governo do Estado das operações de salvamento por barcos e Jet Skys privados é emblemática. O teor do despacho da juíza Fernanda Ajnhorn é cristalino a respeito do prejuízo das mentiras em momento de calamidade e vulnerabilidade da população: “A disseminação de informações inverídicas, sem embasamento na realidade sobre a atuação estatal, atrapalha o delicado trabalho de socorro, gerando incerteza e insegurança, com potencial de desestimular a ajuda da sociedade cível”. 

A pandemia de Covid 19 deveria ter nos ensinado o custo abominável do negacionismo, mais letal que o próprio vírus na escalada de mortes no país – cujo número atualizado ultrapassa 712 mil vidas perdidas. A ideia de que a permissão de fake news, muitas das quais crimes já tipificados, que atentam contra a saúde pública, o ambiente, a infância e outros grupos minorizados seria proteção à expressão é um simulacro intolerável. Quem empunha bandeira da liberdade para mentir, fazendo parecer o mantra de uma nova era pós-moderna, pós-política e pós-democrática, o faz com intencionalidade e interesses, não no bem público, mas no clique fácil, no projeto político ilegítimo, no descrédito das instituições, no ganho fácil. Como acontece nos jogos eletrônicos, vão passando de fase, destruindo pontes, aniquilando opositores, escalando a violência e gastando vidas. Neste caso, são vidas reais sob ataque. Pessoas que escrevem em jornais costumam saber disso ou, no mínimo, deveriam saber.

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Sandra Bitencourt Genro é jornalista, doutora em Comunicação e Informação pela UFRGS e pesquisadora do Núcleo de Comunicação Pública e Política do PPGCOM da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Samuel Pantoja Lima é jornalista e doutor em Mídia e Teoria do Conhecimento pela UFSC. Docente e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

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