A história do jornalismo negro no Rio Grande do Sul mostra a permanência das situações denunciadas há mais de um século

Publicado originalmente em Jornal da UFRGS por Rodrigo Flores. Para acessar, clique aqui.

Relações étnico-raciais | Reflexo da organização da população negra no estado, a imprensa antirracista remonta ao século XIX com o periódico O Exemplo e chega à experiência marcante da revista Tição

*Imagem: Acervo Museu/UFRGS

Porto Alegre, domingo, 11 de dezembro de 1892. “Nosso programa é simples e podemos exará-lo em duas palavras: a defesa de nossa classe e o aperfeiçoamento de nossos medíocres conhecimentos.” Assim se apresentava em seu texto inaugural O Exemplo, primeiro jornal negro no Rio Grande do Sul. Apesar da ironia, os autores tinham bem definidos seus objetivos e suas capacidades: “Devemos mostrar à sociedade que também temos um cérebro que se desenvolve segundo o grão de estudo que o sujeitem”, em afronta aos “doutrinários que julgam o homem pela cor da epiderme”.

O periódico trazia matérias como “Brutalidade”, onde era denunciada a violência policial contra a população inocente, seguidas de poemas satíricos. Suas primeiras edições são um misto de jornal literário com crítica e denúncia. A idealização surgiu em uma barbearia na Rua da Praia, no Salão Cilixto (onde hoje fica o supermercado Zaffari), local que servia de ponto de encontro e espaço de convivência. Os frequentadores, em sua maioria homens negros que já se conheciam de outras associações, como clubes e irmandades, discutem sua posição na sociedade. “Eles começaram a perceber que algo os incomoda: a República aconteceu, a abolição aconteceu, uma lei diz que somos iguais, mas mesmo sendo instruídos e bem colocados socialmente, o racismo ainda restringia a cidadania deles”, diz Melina Perussato, professora da Faculdade de Educação e coordenadora do Projeto Imprensa Negra Educadora (Pine).

O Exemplo é considerada a primeira amostra de imprensa negra no estado. Existem periódicos anteriores que poderiam ter esse título, mas traçar a origem não é tarefa simples. Mateus Marçal, mestre em teoria da literatura e integrante do Pine, aponta a dificuldade de afirmar se uma obra é ou não negra, se não houver algum marcador social explícito no texto ou em outra fonte paralela sobre os autores.

O Museu de Comunicação Hipólito José da Costa tem em seu acervo uma coleção de jornais negros do estado. Nela, o exemplar mais antigo é de 1886, ainda no império e antes da abolição. Chamado O Judas, está cercado de outras folhas, a maioria de curta duração, nomes provocativos e textos ácidos.

Esses jornais não surgem por acaso, estão dentro de um contexto de associativismo negro que reporta ao século XVIII. A professora Melina explica que por muito tempo foi proibido a pessoas negras que se reunissem ou formassem qualquer tipo de associação. A igreja era uma das únicas formas de fazer isso legalmente. Uma das manifestações mais antigas desse tipo de iniciativa é a Irmandade do Rosário, de Viamão, que traz em seu termo de compromisso de 1756: “Os Irmãos da Irmandade Nossa Senhora do Rosário, assim escravos, como forros, e brancos da freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Viamão”.

Estela Ferreira, mestra em história e integrante do Pine, explica que, com a abolição e a proclamação da República, surgem os clubes negros.

“Eles se tornaram uma forma de resistência, mas também de socialização de pessoas negras. Dessa socialização foi possível fortalecer laços, conhecimentos e questões que foram levados à imprensa negra”

Estela Ferreira

Nesse caldo cultural surgem os periódicos negros, feitos por pessoas que se movimentavam e interagiam nesses espaços. “É muito comum ver a imprensa negra promover eventos nestes clubes. São espaços de socialização que conseguiram criar laços. O jornal publicizava o que acontecia: os debates, as questões que muitas vezes ficariam restritas ao espaço físico”, completa Estela.

Organização e proposição

Em uma sociedade como a brasileira, raça e classe se sobrepõem, “não dá pra pensar raça e classe de forma dissociada”, afirma Melina. Na primeira década do século XX, acontece a aproximação do jornal O Exemplo com o movimento socialista operário, principalmente com a corrente anarquista, hegemônica à época. Pessoas como Tácito Pires (primeiro presidente da Liga Operária Internacional) e Cristiano Fettermann (importante anarquista porto-alegrense) entram para o jornal. Isso marca uma mudança editorial e seus objetivos se tornam mais explícitos: o fim do analfabetismo e a luta contra o racismo.

Se no início a perspectiva era de que as denúncias gerassem uma resposta do poder público, os integrantes do periódico percebem que a inação do estado era justamente essa resposta. O jornal começa a encabeçar projetos mais ambiciosos de transformação social, como a fundação da Escola Noturna O Exemplo, com “professores do nosso meio”, para educar pessoas que não poderiam ir às aulas diurnas. Também propunham asilo a órfãos negros, que eram discriminados pelas instituições existentes. Os projetos não chegam a se concretizar, mas a linha editorial se mantém até o fim.

Em 2 de Janeiro de 1930 é publicada a última edição de O Exemplo. Após 37 anos de atividades – com hiatos –, dificuldades de financiamento e impressão, entre outros percalços, o jornal porto-alegrense chega ao fim. O custeio de produção era mantido com anúncios e assinaturas, mas a crise econômica de 1929 foi um baque que não se conseguiu superar. Assim se encerrava a principal experiência jornalística negra do Rio Grande do Sul até então, criando um intervalo no gênero que duraria quase cinco décadas.

Com o passar dos anos, a sociedade muda e, por sua vez, as formas de se organizar também. Os associativismos de clubes e irmandades, que tiveram importante papel no passado, vão sendo substituídos por outras formas de luta, como sindicatos e movimentos sociais. Por consequência, a comunicação também vai sendo modificada. Nos anos 1970, em meio à ditadura, a imprensa alternativa começa a surgir pelo país driblando a censura.

Pipocam jornais e revistas críticos, satíricos e de denúncia como forma de resistência. Nesse caldo cultural, inspirados por movimentos como os Panteras Negras nos Estados Unidos e as independências africanas, particularmente de ex-colônias portuguesas, um grupo de jornalistas e ativistas negros em Porto Alegre decide fundar a revista Tição.

Atualidade das pautas

Em março de 1978, no editorial da primeira edição, lia-se: “TIÇÃO pretende falar com a comunidade negra não só de Porto Alegre, através de uma linguagem simples e buscando um trabalho de conscientização racial, social e cultural”. A revista foi fundada e publicada em Porto Alegre. Com duas edições – a segunda em 1979 – e uma terceira em jornal, foi um marco na imprensa negra gaúcha.

Foram fundadores da Tição Emilio Chagas, Vera Daisy Barcellos, Jeanice Dias Ramos e Jorge Freitas, todos jornalistas. Jeanice, que hoje é diretora do Sindjors (Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul), relembra: “Tínhamos o objetivo de congregar todos os jornalistas negros no estado do Rio Grande do Sul”. O projeto ganhou mais participantes quando o sociólogo Edilson Nabarro e o militante Walter Carneiro se juntaram à redação. Também se incorpora a estes Oliveira Silveira, poeta e fundador do Grupo Palmares, movimento responsável por resgatar a data do 20 de Novembro como Dia da Consciência Negra.

Entre os principais desafios, aponta Emilio, estavam o financiamento e a distribuição.

“Era uma revista negra em plena ditadura, abordando temas como racismo, a situação da mulher. Ninguém queria ler, só o público negro. Nós mesmos financiamos, fomos distribuindo em bancas, bares, shows, nos clubes, na esquina maldita”

Emilio Chagas

Havia também dificuldades práticas da produção jornalística. “As reuniões de pauta eram bíblicas, muita gente se reunindo para decidir”, lembra Jeanice. Somando-se essas dificuldades, a revista não passou de duas edições, com um ano de intervalo, e outra em formato jornal posteriormente.

Apesar do fim, a Tição ainda permanece presente na memória. “Se tu olhar, até hoje as pautas ainda estão atuais, ainda estão no imaginário da população negra”, pontua Jeanice. “Recebemos cartas até hoje”, sublinha a jornalista; por isso, garante: “Vamos reavivar a Tição!”.

Ao lermos e rememorarmos os periódicos que já existiram, o que mais surpreende talvez seja justamente a atualidade dos temas tratados. A denúncia do racismo, da violência policial, a exclusão de pessoas negras de ambientes e espaços. O fato de que a abolição não resolveu um problema crônico do país, que a igualdade no papel não se reflete na igualdade concreta, são problemas que ainda constituem todos os aspectos da sociedade brasileira.

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