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Samuel Pantoja Lima
Pesquisador do objETHOS
“Moraes usou TSE fora do rito para investigar bolsonaristas no Supremo, revelam mensagens”. Esta foi a manchete publicada pelo jornal Folha de S.Paulo (FSP) no último dia 13 de agosto. A denúncia, assinada pelos jornalistas Fabio Serapião e Glenn Greenwald prometia uma espécie de nova “Vaza Jato”, porque lastreada – segundo o próprio texto publicado – no acesso “a mais de 6 gigabytes de mensagens e arquivos trocados via WhatsApp por auxiliares de Moraes, entre eles o seu principal assessor no STF, que ocupa até hoje o posto de juiz instrutor (espécie de auxiliar de Moraes no gabinete), e outros integrantes da sua equipe no TSE e no Supremo”.
O ciclo da notícia, que mirava o ministro Alexandre de Moraes (do Supremo Tribunal Federal) e, em última análise, flertava com o bolsonarismo e toda sorte de haters da extrema-direita, envolvidos até a alma na tentativa de golpe de Estado em 8 de janeiro de 2023, foi mais curto que o editorialista do diário conservador paulista imaginara. Do que tratava mesmo o material? Revela a própria FSP: “Em alguns momentos das conversas, assessores relataram irritação de Moraes com a demora no atendimento às suas ordens. ‘Vocês querem que eu faça o laudo?’, consta em uma das reproduções de falas do ministro. ‘Ele cismou. Quando ele cisma, é uma tragédia’, comentou um dos assessores. ‘Ele tá bravo agora’, disse outro”. Sem lastro informativo, sem relevância jornalística, a denúncia que se anunciara “bombástica” foi fugaz, provocando, porém, um debate intenso sobre o papel político da FSP, com inegável desgaste à imagem pública do jornal.
Editorial defende o golpismo?
No dia seguinte à denúncia, a Folha publicou uma posição institucional, em editorial intitulado “Ordem informal fere devido processo legal” (ed. 14/08/2024). Destaco e comento alguns pontos, a seguir:
(a) “As revelações desta Folha acerca de procedimentos informais envolvendo o ministro Alexandre de Moraes e seu estafe em investigações presididas por ele deveriam merecer rigorosa atenção pública. Trata-se de um desdobramento da inaudita concentração de poder em um mesmo magistrado, como ocorre no heterodoxo e interminável inquérito das fake news”. Resta evidente o pedido de “socorro” do jornal quando clama pela “rigorosa atenção pública”. O fato é que os ditos “6 gigabytes de mensagens e arquivos” vazados pelo jornal não sustentaram uma suíte, tampouco apontaram com clareza inequívoca as supostas ilegalidades; restou a “fumaça da boa fofoca”, ao que tudo indica até a publicação deste texto;
(b) “Não estão em questão a boa-fé de Alexandre de Moraes nem a obtusidade da ala do bolsonarismo que flertou com a ruptura institucional. Discutem-se os meios utilizados para enfrentar a ameaça, real”. Aqui, transparece a preocupação da FSP com a questão de fundo que é a defesa da democracia. Voltando ao ponto: o jornal acusara, em manchete no limite do sensacionalismo e em editorial, o ministro do STF de “desobedecer formalidades na condução do processo”. Não encontrou eco no meio de juristas de renome, tampouco entre os demais veículos do mainstream que noticiaram o assunto de forma secundária ou simplesmente ignoraram a pauta, visto a fragilidade do material. Em defesa de Moraes, mais que seus pares do Supremo, o Procurador Geral da República, Paulo Gonet, e inúmeros juristas que foram fontes de veículos online e dos telejornais em canais por assinatura;
(c) “É uma pena que, por espírito de corpo, colegas de Moraes tenham se apressado a conceder-lhe um novo salvo-conduto. Há acusados e investigados que poderão, com base nas informações que vêm sendo levantadas pelo jornalismo profissional, solicitar a nulidade de provas ou a reversão de decisões. Já sabem que contarão com a antipatia do tribunal que deveria zelar pelas prerrogativas fundamentais dos brasileiros, entre as quais fulgura o devido processo legal”. Aqui reside, a meu modesto juízo, a questão de fundo de tudo o que Folha publicou sobre esse tema. Ainda que de forma envergonhada, a FSP sugere que os processos contra os golpistas do 8 de janeiro de 2023 sejam anulados, supostamente baseado em informações do seu “jornalismo profissional”. O viés político evidente nas reportagens e demais textos publicados pelo diário paulista recebeu acolhida e repercussão nas hostes da extrema-direita, nas plataformas digitais (“redes sociais”) e no Congresso Nacional, no qual tramita neste momento um pedido de “impeachment” do ministro Alexandre de Moraes.
Esta é mais uma contribuição do Grupo Folha à democracia brasileira. Fico com a análise do jornalista Moisés Mendes: “A Folha vendeu, desde a primeira manchete contra Alexandre de Moraes, a ideia de que o não cumprimento de ritos levaria à nulidade das provas das investigações contra os golpistas. Mas o fracasso imediato dos argumentos ‘jurídicos’ levou o jornal, dois dias depois, a buscar outra tática e a investir na pauta pretensamente ética e moralista para desqualificar o ministro”.
A posição da Ombudsman: entre o “mar” e o “rochedo”
A jornalista Alexandra Moraes, atual Ombudsman da Folha, tratou do assunto em sua última coluna (domingo, 18/08/2024). Sob o título “Xandão, a Folha e o ‘rito’“, ela garante que o jornal “cutuca o poder com gravações, mas deixa leitores incomodados”.
Nas palavras da representante do leitor, o jornal “agora, colocou no ar os diálogos com as risadas e os emojis que os acompanhavam. Também definiu a atuação de Moraes como “fora do rito”. Especialistas apontaram que não haveria um rito claro a ser seguido. Já segundo Moraes, foi “tudo absolutamente documentado e oficializado, com acompanhamento da PGR e as diligências necessárias”. Parecia um bom balizamento para a reflexão de alguém com seu poder e local de fala. Ledo engano.
Seu ponto de partida para analisar o tal “rito” é interessante. Alexandra recorre a um colunista da própria Folha: “O problema do rito apareceu em artigos de opinião na Folha e em outros veículos. Em seu “Moraes não é Moro“, o colunista Thiago Amparo, advogado e professor, afirmava que a “Folha acerta ao expor as mensagens, mas errará se não explicar que são situações distintas”. E, de fato, Amparo tinha toda razão: não houve nenhuma preocupação do jornal em distinguir os dois juízes e casos.
Sem esboçar uma crítica mais efetiva, a Ombudsman afinal indaga: “Como ficamos? Do ponto de vista jornalístico, e não tendo cometido crime para obter o material, parece claro que o que a Folha tinha em mãos era de interesse público. No mínimo mostrava a simbiose entre os tribunais e o problema do desenho institucional, ainda que a questão do rito carecesse de maior explicação”. Nenhuma palavra em defesa da democracia, que em tese seria um compromisso do jornalismo, ela se resume a publicar algumas críticas de leitores, indignados com a posição da Folha: “Vou cancelar minha assinatura da Folha. Jornalismo sensacionalista, desonesto, alimentando os bolsonaristas com suas paranoias e fake news, disse Elizabeth Freire”.
Sem enfrentar o debate com rigor e verticalidade, restou à nobre Ombusdman abrir o “palco” para o Secretário de Redação Vinícius Mota, a quem coube a palavra final de sua coluna: “Cancelamentos nos frustram por não termos difundido com a eficácia necessária a mensagem do projeto editorial da Folha, que é a de praticar um jornalismo crítico – e especialmente crítico em relação a quem detém poder –, apartidário, objetivo e atento ao exercício do contraditório. Nessa trajetória, a exposição do leitor a notícias que lhe causem desconforto deveria ser encarada com naturalidade, até porque o jornal aplica a mesma régua há décadas a quaisquer que sejam os ocupantes circunstanciais dos postos de responsabilidade pública”. Mota se limitou a responder com uma velha cantilena da Folha – que seria um jornal “apartidário e objetivo”. Por fim, o mais risível que é a explicação do Secretário da Redação para a justificativa do suposto interesse público no “fora do rito”: “O rito da Justiça não pode ser o da informalidade, daí o jornal ter alçado o termo aos seus enunciados”.
Ora, o inquérito das fake news e os processos contra os golpistas do 8 de janeiro de 2023 são formais, com provas robustas arroladas e sentenças já prolatadas pelo Supremo Tribunal Federal. O mais, é o “Jus sperniandi” de veículos jornalísticos como a Folha de S.Paulo, que parece cada vez mais próxima dos porta-vozes midiáticos da extrema-direita no país.