A digitalização como meio de preservação do patrimônio cultural

Publicado originalmente em Jornal da Universidade por Stefani Fontanive. Para acessar, clique aqui.

Memória | Na UFRGS, 24 edifícios são considerados históricos e têm proteção legal. A digitalização pode auxiliar na conservação do patrimônio, mas processo é demorado e esbarra na falta de recursos

*Foto: Flávio Dutra/ Arquivo JU 04 out. 2022

Ao andar pela região central de Porto Alegre, consegue-se acompanhar o desenvolvimento do Rio Grande do Sul, ao se observarem arranha-céus construídos ao lado de edificações com mais de 100 anos. Na capital, há 25 bens tombados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado (Iphae), enquanto a UFRGS conta com 24 bens protegidos legalmente. Esses prédios são chamados de patrimônio histórico ou cultural.

No estado, são 156 bens tombados pelo Iphae, entre prédios, praças, pontes, estações ferroviária e hidroviárias. O tombamento é um ato administrativo realizado pelo poder público que visa proteger as características originais de bens de valor histórico, cultural, ambiental e arquitetônico, além de significações afetivas para a população.

Um dos grandes desafios em relação ao patrimônio histórico é a preservação, e um projeto da UFRGS pretende auxiliar nesse ponto. É o Laboratório de Design e Seleção de Materiais (LDSM), que, dentre outras atividades, trabalha com a digitalização desses bens. O engenheiro Fábio Silva, responsável pelo laboratório, explica que essa digitalização pode ser usada de diversas maneiras para a preservação do patrimônio. Entre esses usos estão tanto a organização da documentação referente ao bem – necessária para o processo de tombamento, para a análise dos materiais do prédio e para a manutenção da história do local, guardando informações para o futuro – quanto o planejamento de futuras ações de restauro.

A digitalização pode ser utilizada, inclusive, para reconstruir os bens, aponta Antônio Sarasá, do Estúdio Sarasá, empresa responsável pelo restauro do Château D’Eau, em Cachoeira do Sul. Ele cita o exemplo da Itália, onde o processo é difundido por conta dos constantes terremotos e da consequente perda dos prédios. No Rio Grande do Sul, edifícios como o Seminário Claretiano, em Esteio, foram vítimas de incêndio e tiveram que passar por uma reconstrução. A digitalização do monumento facilitaria esse processo. Fábio relembra que não se pode recriar um patrimônio histórico sem sua base documentada, e essa documentação auxilia para contar a história daquele lugar.

Digitalização requer recursos e tempo

Dois prédios da UFRGS já passaram pelo processo de digitalização: a fachada e detalhes de vasos e estátuas do Instituto de Química, além de detalhes do antigo prédio da Faculdade de Medicina, na esquina das ruas Sarmento Leite e Engenheiro Luiz Englert.

Para que os outros 22 prédios históricos da Universidade sejam catalogados, dois itens são fundamentais: recursos e tempo. Fábio explica que há mais de uma forma de se captarem as informações para digitalizar um monumento e que o laboratório possui equipamentos com três tecnologias diferentes. Em todas, é necessário captar imagens do prédio, o que leva, em média, um dia, mas também requer andaimes e espaço. Para digitalizar a escultura O Laçador, de Antônio Caringi, foi necessário auxílio do município, que forneceu um caminhão para elevar o equipamento à altura da estátua. Para a digitalização dos detalhes do prédio da Medicina, os pesquisadores foram à noite até o local, “para evitar interferência da luz solar na captação das cores do monumento”, comenta Fábio.

Se a coleta das imagens pode durar apenas um dia, o que demora mais e necessita de mais recursos é o tratamento das informações. Com o material coletado, é preciso “tratar os dados”, ao se construir uma nuvem de pontos, um sistema de coordenadas tridimensional, para avaliá-los. Esse trabalho, explica Fábio, pode levar meses e requer computadores de alta performance.

Outro uso é para a exposição digital dos bens.

“É possível se fazer tour virtual, mostrar a fachada, para que mais pessoas conheçam aquele lugar”

Fábio Silva

O LDSM foi responsável, inclusive, por catalogar e disponibilizar, por exemplo, o acervo do Museu de Ciências Naturais da UFRGS, localizado em Imbé, e um tour virtual na sala principal do Museu. “Lá tem o esqueleto da baleia jubarte, que foi digitalizado”, conta. Essa ação auxilia na preservação da memória do lugar e, também, na abertura, no sentido de que mais pessoas possam conhecer os locais, lembrar e, assim, cuidar deles.

O prédio conhecido como Château, tombado e restaurado pela Universidade, fica no Câmpus Central da UFRGS (Foto: Flávio Dutra/Arquivo JU 10 jul. 2020)
Tombamento e reconhecimento

“O tombamento ocorre a partir da lei”, explica Luísa Gertrudis Durán Rocca, pesquisadora do grupo de pesquisa de Cultura e Patrimônio do Programa de Pós-graduação em Museologia da UFRGS. Para se tombar um bem, é necessário que o seu administrador – seja público ou privado – reúna informações sobre ele e submeta ao órgão responsável. “Se um bem tem relevância para a cidade, será tombado no âmbito municipal. Se tiver relevância para o Rio Grande do Sul, será tombado no âmbito estadual. E, se for nacional, o tombamento será federal”, explica Renata Manara Tonioli, chefe do setor de patrimônio histórico da UFRGS, área responsável pelo cuidado dos prédios históricos da Universidade. Em Porto Alegre, o setor responsável pelo procedimento é a Secretaria Municipal de Cultura. No Rio Grande do Sul, ele ocorre pelo Iphae e, no Brasil, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

A Universidade é um bom exemplo de patrimônio protegido nas diferentes esferas. Na esfera nacional, tem-se o Observatório Astronômico. Entre as protegidas em âmbito estadual, está a Escola de Engenharia, que, conforme Renata, “faz parte da história do desenvolvimento do Rio Grande”. Os prédios da Universidade, entretanto, não são protegidos por meio de tombamento, mas pela Lei Estadual n.º 11.525, de 2000, que “declara integrantes do patrimônio cultural do estado os prédios históricos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul”.

No Brasil, a proteção de prédios históricos teve início em 1937, durante o governo Getúlio Vargas, através do Decreto-Lei n.º 25, de 30 de novembro daquele ano. No Rio Grande do Sul, o início dos tombamentos ocorreu em 1980, com a criação do Iphae. Luísa afirma que definir o patrimônio é sempre um processo, já que, em diferentes épocas, diferentes bens são considerados patrimônio.

“A definição de patrimônio está atrelada a valores, e cada época, cada geração, faz uma escolha do que é patrimônio”

Luísa Gertrudis Durán Rocca
A restauradora Anice Jaroczinski trabalha na recuperação das pinturas das paredes da Biblioteca Pública de Porto Alegre, recentemente reaberta. Na imagem de capa, sala de consulta da biblioteca (Fotos: Flávio Dutra/Arquivo JU 04 out. 2022)

O período com maior número de bens protegidos foi na década de 1980, com o surgimento do Iphae. Em 1986, houve o tombamento de 26 bens em âmbito estadual, enquanto na década de 2000 poucas edificações tornaram-se protegidas – entre 2002 e 2005, nenhum prédio foi tombado. Já na década de 2010, voltou-se à proteção dos bens e, em 2013, 23 prédios passaram a ser protegidos.

No estado, as antigas residências representam o maior número de tombamentos – cerca de 30% dos bens – realizado, em sua maioria, ainda na década de 80. Locais em que moravam políticos como Borges de Medeiros, Getúlio Vargas e Júlio de Castilhos, ou escritores como Simões Lopes Neto, além das primeiras casas de imigrantes italianos, alemães e portugueses no estado, como a Casa dos Veronese, em Flores da Cunha, ou o Sobrado dos Azulejos, na cidade de Rio Grande.

Os cinco principais usos originais dos bens tombados pelo Iphae no Estado

Antônio Sarasá aponta que diferentes bens devem ser preservados, mesmo que a arquitetura possa parecer mais simples. É o caso do Clube Cultural Fica Ahi Pra Ir Dizendo, clube carnavalesco pelotense, e do Clube Cultural 24 de agosto, de Jaguarão, agremiações voltadas à população negra do estado, ambas tombadas em 2012.

Tanto Luísa como Antônio e Renata afirmam ainda que, para se cuidar de um bem, é preciso conhecê-lo. Já Luísa também aponta que mais importante que o reconhecimento governamental é o reconhecimento social.

“Tombamento é importante, mas não é o único fator. Se não há o reconhecimento da sociedade, ele não serve pra nada”

Luísa Gertrudis Durán Rocca

Dos 156 prédios protegidos pelo Iphae, 35 mantiveram seu uso original. Em Porto Alegre, dos 25 bens tombados – sendo dois bens móveis, ou seja, a mobília e adornos do local –, 14 permanecem com o mesmo uso. É o caso da Biblioteca Pública do Estado, do Theatro São Pedro e da Cinemateca Capitólio. A maioria das edificações, entretanto, vê seu uso atual diverso da função de sua construção original: 43 tornaram-se centros culturais, como museus, bibliotecas e casas de cultura. Órgãos da administração pública ocupam 18 prédios, sendo 10 secretarias municipais, três prefeituras e a sede do governo do estado, o Palácio Piratini. A abertura desses espaços à população vai ao encontro do afirmado pelos entrevistados: é necessário que a sociedade conheça e se aproprie do bem para cuidá-lo.

Principais usos atuais dos bens culturais do Estado
A rotina de cuidados e a preservação da memória

Renata explica que cuidar de um bem cultural e público não é simples. “Qualquer intervenção nos prédios da UFRGS precisa passar pelo setor de patrimônio histórico.” De pinturas à definição de qual será a utilização de uma sala, é necessário que se faça um estudo, para garantir a preservação da originalidade do bem. Ela afirma ainda que a Universidade é um bem cultural de toda a sociedade, por isso precisa ser aberta para o público. É o caso do Centro Cultural da UFRGS, cuja obra de restauro foi concluída em 2018.

A rotina, o cuidado, a contratação de serviços e a mão de obra são pontos que afetam a conservação de uma edificação, aponta Maria Clara Bassin, arquiteta responsável pelo Palácio Piratini. Ela afirma que, para se cuidar do prédio, é necessária uma equipe multidisciplinar. Luísa concorda e cita a importância de se terem historiadores, arquitetos, engenheiros e restauradores trabalhando em conjunto.

Maria Clara também explica que há diferença entre conservação e restauro.

“Se conserva para não precisar restaurar, porque todo restauro é uma perda”

Maria Clara Bassin

Antônio complementa, afirmando que “restauro é sempre a excepcionalidade, mas no Brasil é tido como regra”. O restaurador afirma que o ponto mais importante é a prevenção e a conservação. Luísa aponta que quem cuida do patrimônio “sempre atua apagando incêndios”.

Além da manutenção e do cuidado com a edificação, os bens culturais também têm outro fator muito importante: a manutenção da memória. “O Palácio Piratini carrega a história do Rio Grande do Sul”, aponta Maria Clara, assim como a UFRGS traz consigo a história do desenvolvimento da educação tanto no Rio Grande como no Brasil.

Mas os prédios da UFRGS representam, também, as memórias das pessoas que passaram pela Universidade. Os restauros dos prédios da Universidade ocorrem, por meio da Lei de Incentivo à Cultura, por patrocínios. A maior parte das doações são oriundas de pessoas físicas, muitas ex-alunas da Universidade. “Tem o caso da capela São Pedro, na Estação Experimental Agronômica: todas as doações foram de pessoas físicas, muitas que se casaram na capela”, conta Luísa.

A memória tanto coletiva quanto pessoal auxilia no cuidado com o patrimônio. Um bem cultural não se torna patrimônio apenas por sua arquitetura, mas pela sua simbologia, pelo que representa. Casas de políticos relembram a história daquela personalidade. Edificações com características da imigração contam a história da miscigenação na construção do Rio Grande do Sul. Prédios contam as memórias e histórias de épocas passadas e das pessoas que passaram por ali. “O patrimônio histórico é um suporte para a memória coletiva”, resume Luísa.

Fachada do Theatro São Pedro, no Centro Histórico de Porto Alegre (Foto: Flávio Dutra/ Arquivo JU 08 jul. 2013)

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