Publicado originalmente em Jornal da UFRGS. Para acessar, clique aqui.
Comunidade | Museu da Cultura Hip Hop e Galpão Cultural, em Porto Alegre, apresentam a perspectiva periférica e afrodiaspórica do movimento e acolhem identidades rejeitadas pela cultura hegemônica
*Foto: Leo Zanini
Antes de as enchentes atingirem o Rio Grande do Sul, o Jornal da Universidade vinha já trabalhando nesta reportagem sobre o funcionamento de espaços de Hip Hop, em especial na cidade de Porto Alegre. Quando a catástrofe se abateu sobre o estado, pudemos observar a atuação do Museu da Cultura Hip Hop e do Galpão Cultural – entidades que vínhamos acompanhando e ilustram esta matéria – na corrente solidária mobilizada nesses tempos de crise, organizando doações.
À medida que vamos vencendo o período de resposta emergencial, o Museu já pôde reabrir, tendo retomado as visitações e atividades no dia 29 de maio. O Galpão não chegou a interromper suas programações.
Ao longo desse tempo de atenção, dois aspectos se destacam: a coletividade visada pelo Hip Hop e a demarcação da forte presença do movimento no estado do Rio Grande do Sul.
Um museu e seu acervo
O Hip Hop é uma cultura que bebe muito de suas raízes afrodiaspóricas. O Museu da Cultura Hip Hop, em Porto Alegre, é o primeiro do tipo no país, responsabilidade da Casa da Cultura Hip Hop, de Esteio, igualmente pioneira no Brasil.
Rafael Mautone, coordenador pedagógico e um dos idealizadores do museu, explica um pouco o surgimento do espaço: “Historicamente, os grandes museus do mundo roubaram as coisas. O nosso é um museu comunitário, onde a comunidade quis fazer esse museu”.
Boa parte do acervo foi arrecadado durante eventos em cidades das nove regiões do estado, no ano de 2022, quando o espaço físico do Museu ainda não existia. Rafael relata que houve uma pesquisa histórica e antropológica realizada com 406 hip hoppers de todas as regiões do Rio Grande do Sul.
Esse tipo de pesquisa e o pioneirismo da instituição trazem à luz e enaltecem uma cultura de origem periférica e negra que não costuma ser associada ao Rio Grande do Sul.
“Esse museu é diferente dos outros. Ele é um museu que tá acontecendo. Ele conta e mostra coisas de pessoas que estão vivas. A gente tá falando de uma cultura que tá em transformação e acontecendo”
Rafael Mautone
O espaço conta hoje com financiamento da Petrobrás através da lei Rouanet, realizando ações que, assim como o Hip Hop, valorizam o ineditismo, a identidade e a forma de cada um ser. Entre as atividades, um dos grandes objetivos do Museu é receber visitas de escolas. “Tu tem uma cultura que valoriza quem é diferente. Valoriza tu ser tu mesmo. Pra juventude, enquanto educação, é disruptivo e maravilhoso”, reflete o coordenador pedagógico.
Acesso à cultura
“Eu tinha 17 anos e muita raiva. Muita raiva porque eu não concordava com muita coisa.” É assim que NegraJaque, rapper que realiza mediações no Museu do Hip Hop começa a falar sobre a sua relação com o movimento. “Ele surge como um movimento de luta de direitos. Acesso à cultura é um direito. O direito à alimentação, o direito ao espaço adequado, acolhedor e de proteção às crianças, onde elas não vão ser violadas”, arremata.
NegraJaque também coordena o Galpão Cultural, espaço localizado na periferia de Porto Alegre. “Não se tinha nada. Na comunidade onde a gente mora, os dois territórios de cultura acessível eram as festas de Cosme e a escolinha dominical da igreja. O Galpão surge como uma terceira via. Uma alternativa de fazer cultura acessível, democrática e acolhedora, que não seja condicionada a uma religião. É uma consequência de um circuito de arte, de um grupo de voluntários que são daqui do morro”.
A rapper relata que jovens violentos são consequência de uma sociedade violenta. Dessa forma, tenta fazer do galpão um espaço de acolhimento dessa juventude, e vê o projeto funcionando ao ouvir de uma menina de quatro anos que frequenta o lugar: “Aqui eu me comporto, tia Jaque”.
“[O Hip Hop é] um grande movimento, universal, artístico, político e social, que, além da manifestação cultural, é uma forma de posicionamento político, de vida”.
NegraJaque
Ancestralidades comuns
Além do Hip Hop, NegraJaque também tem o samba muito presente em sua vida. Ainda que diferentes em muitas características, o movimento e o gênero musical compartilham algumas vivências e bebem de algumas raízes em comum.
O diálogo entre as duas manifestações foi celebrado pela Escola de Samba Vai-Vai no desfile de São Paulo deste ano. Forjado no samba desde pequeno, o carnavalesco Sidnei França foi viver o movimento Hip Hop pela primeira vez a partir das pesquisas realizadas para o desfile da escola. “Eu enxerguei naquela possibilidade de carnaval, de enredo, uma voz.”
“O Hip Hop é um modo de enxergar o mundo a partir do olhar periférico, daqueles que não aceitam o status quo estabelecido pela elite”
Sidnei França
Toda a pesquisa realizada por Sidnei o levou a compreender que tanto o samba quanto o Hip Hop começaram pretos, marginalizados e periféricos. “A partir do momento em que [compreendi que] o Hip Hop não é só um estilo musical, mas sim uma cultura, foi mais fácil. O que a gente fez não foi transformar rap em samba, e sim a cultura Hip Hop em carnaval, em desfile”, comenta o carnavalesco.
A arte do encontro e do coletivo
Felipe Merker Castellani é docente do Departamento de Música da UFRGS e estuda epistemologias afrodiaspóricas e seus desdobramentos no contexto musical. Ele destaca a coletividade como um dos aspectos centrais dessas expressões culturais. Essa comunhão ocorre através de “tecnologias coletivas”, como chama Felipe, que envolvem a oratória e podem ser percebidas na contemporaneidade através de rodas de samba ou de slam, onde a separação entre público e plateia não é tão clara e o público participa o tempo inteiro.
Sobre o rap, um dos elementos culturais do Hip Hop, o professor comenta: “A gente consegue traçar, desde o continente africano, uma série de formas de improvisação vocal que vão se desdobrando em diferentes gêneros musicais até chegar no rap”.
Felipe considera que o Hip Hop representa, de certa forma, um amálgama que gera identificação ao se internacionalizar, “tanto por um viés político – por as pessoas observarem esse processo de gentrificação e desapropriação dos grandes centros urbanos, que vai expulsar essa população jovem, negra e pobre de seus bairros –, quanto por uma matriz diaspórica comum de musicalidades e vocalidades que vai acabar se conectando com esses múltiplos lugares nas américas”.