Publicado originalmente em Brasil de Fato por Karina Pinhão, Gabriela Guillén, Judite Stronzake e Katiuscia Galhera. Para acessar, clique aqui.
A política de apaziguamento já foi percebida pelos indígenas que resistem e se recusam a abandonar seus territórios
Os fatos: violência contra os Guarani e Kaiowá e a mãe-terra
Na manhã do dia 13 de julho de 2024, no município de Douradina, Mato Grosso do Sul, o povo Guarani e Kaiowá iniciou a autodemarcação do seu território longamente esperado. A reivindicação é de uma área de 12.196 hectares em estudo e já identificada. Envolve os territórios de Gua’aroka, Yvy Ajhere, Ita´y Ka’agurusu, Pikyxi´yn, Kurupay´y, Tajasu Ygua e Guyra Kambi ?y, aos quais se encontram sobrepostas grandes propriedade de monocultivo de soja e de milho. O Mato Grosso do Sul tem a maior concentração fundiária do Brasil: de acordo com o Atlas Agropecuário de 2017, as terras particulares configuram 92% do território do estado. Nas retomadas, as principais lideranças são as nhandesys, mulheres anciãs, sabedoras da localização da terra ancestral, acompanhadas na luta por mulheres gestantes, jovens e crianças. As terras tradicionais ou tekoha são para os Guarani e Kaiowá os lugares nos quais as comunidades podem exercer seu modo de ser em reciprocidade com a natureza. Ali, as parentelas ampliadas estabelecem relações sagradas com o território, o que possibilita a continuidade dos seus costumes e a vida mesma através do acesso ao que resta da biodiversidade das florestas que lhes proporcionam alimentos saudáveis e variados e plantas medicinais.
A reação violenta dos grandes proprietários rurais cujas fazendas incidem nos territórios Guarani e Kaiowá foi imediata. Um primeiro momento de terror com dezenas de camionetes cercando, perseguindo e disparando contra a comunidade deixou vários feridos, Guarani e Kaiowá. Posteriormente, circulou nas redes sociais vídeo dos ruralistas organizando seu próprio acampamento e um cerco noturno de camionetes novas perto das retomadas. No vídeo veicularam frases em tom de ameaça como: “o bambu vai envergar e a tropa de choque está chegando”. A confiança que os grandes ruralistas depositam no apoio de políticos locais de extrema direita e na segurança pública descortina a desigualdade das forças em jogo: de um lado, fazendeiros e seus pistoleiros fortemente armados com dezenas de camionetes e drones e, de outro, uma comunidade liderada pelas mulheres nhandesys com seus mbarakas em mãos.
Dois lados antagônicos nessa história. Dois projetos societários em confronto declarado. Os fazendeiros abocanham as terras tradicionais, em clara assimetria de poder. Desfilando de dia e sobretudo à noite, as caminhonetes disparam fogos de artifício perto das retomadas, reforçando com os farois as ameaças e o terror. Da parte dos Guarani e Kaiowá, os mbarakas e tacuaras dos quais retiram a força da sua reza e o canto nas vozes das mulheres anciãs são os alentos coletivos para continuar a luta por seu tekoha. A discrepância entre o luxo da estrutura montada pelos fazendeiros e seus capangas contrasta com os barracos de lona preta erguidos pelos Guarani e Kaiowá é gritante. As imagens do conflito revelam o cenário seco e monótono da destruição causada pelo monocultivo de commodities para exportação, refletindo o peso do Estado nesse teatro de horrores que é a produção agrícola em grande escala para acumulação de capital.
Nos mesmos vídeos, é possível escutar tiros vindos das agromilícias em suas caminhonetes que ultrapassam constantemente as barricadas formadas pelos Guarani e Kaiowá¹. Estes atos em muito se assemelham com as ações do Invasão Zero, uma organização que reúne cerca de 5 mil membros, entre fazendeiros e parlamentares da bancada ruralista, cujo objetivo é atacar e criminalizar os movimentos do campo que lutam pela terra. O grupo surge em março de 2023 e conta com o apoio da Frente Parlamentar Invasão Zero e associações empresariais ligadas ao agronegócio.
Na sua primeira aparição midiática, o grupo foi acusado pela morte de Nega Pataxó-Hã-Hã-Hãe durante a retomada Terra Caramuru-Catarina Paraguaçu, na Bahia. Segundo algumas lideranças indígenas, o grupo Invasão Zero funciona como uma milícia que opera através do WhatsApp. Os fazendeiros se comunicam acerca de “invasões” em suas propriedades e ali organizam uma operação conjunta e, através da figura legal do “desforço imediato”, se amparam para deflagrar com as próprias mãos uma reintegração de posse ilegal e violenta. O deputado Zucco, presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) contra o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), justifica a criação do grupo pela “ausência do Estado na resolução dos conflitos agrários, [que] pode provocar uma tragédia se tivermos um enfrentamento mais duro entre índios (sic), sem-terra e agricultores”. O primeiro presidente do Invasão Zero já declarou que “a Constituição não existe na Bahia. E também não se prende ninguém pela invasão de propriedade. Dessa forma, tivemos que reagir e nos organizar para expulsar os invasores por conta própria“. O grupo atua frontal e violentamente contra a demarcação de terras indígenas e contra a reforma agrária espalhando o ódio e o racismo. Apesar das explícitas e reiteradas manifestações que indicam seu caráter miliciano, os órgãos públicos não tomam cartas no assunto para sua dissolução.
Os ruralistas em Douradina vem realizando táticas semelhantes à Invasão Zero, lançando mão de diversos expedientes para projetar sua truculência nas retomadas como uma luta social dentro da legalidade com atos em frente ao Ministério Público, apoiados por políticos bolsonaristas. Com efeito, nos vídeos das redes sociais, deputados federais e estaduais da extrema direita vinculados às bancadas da bala, da bíblia e dos bancos disseminam fake news e criminalizam a autodemarcação dos Guarani e Kaiowá. Imitando o grupo Invasão Zero, conclamam o Estado a perpetrar uma ação violenta de despejo ou atuarão em seu lugar. Em defesa da propriedade privada, o povo Guarani e Kaiowá é criminalizado como um empecilho ao lucro que grupos privados obtêm com a exploração da terra tradicional.
Os conflitos de terra no MS refletem um contexto mais amplo da necessidade de expansão do capital em crise sobre os territórios. Essa expansão é sustentada e legitimada através do Estado Democrático de Direito e operacionalizada pelos diferentes governos, à esquerda ou à direita, cujo papel vem sendo o de criar continuamente as condições para viabilizar a produção destrutiva do agronegócio para acumulação de renda nas mãos da burguesia agrária e do capital financeiro internacional. Essas condições envolvem uma permanente reciclagem de dispositivos legais que complementam os mecanismos violentos e de espólio perpetrados pelas classes dominantes desde os tempos coloniais.
Do mesmo modo, o saqueio vem sendo realizado contra a mãe-terra e os efeitos da mudança climática se ativaram de forma alarmante na região. No Pantanal, as queimadas de origem criminosa para desmatar e expandir o agronegócio começaram mais cedo, em 2024, disparando os focos de incêndio em 1025% nos seis primeiros meses em comparação ao ano anterior. A bacia do rio Paraguai apresenta seca recorde a respeito de 2023, levando o bioma a uma das piores crises hídricas da sua história em que alguns municípios pantaneiros apresentam redução da superfície de água. Em alguns lugares, os moradores estão sem água potável e precisam ser assistidos por caminhões pipa. Atualmente, Mato Grosso do Sul, cujas cidades se cobrem da fumaça vinda do Pantanal a cada ano, é um dos estados brasileiros mais afetados pela severa estiagem causada pelo desmatamento e as queimadas. Nos últimos meses, o estado registra um clima de deserto, com índices de umidade relativa do ar entre 10% a 20% – níveis considerados críticos e de grande impacto à saúde humana. Como se isso não bastasse, a contaminação do solo, da água dos rios e dos lençois freáticos e, inclusive, a água das chuvas pelo uso intensivo de agrotóxicos que este modelo produtivo/destrutivo na agricultura exige, é um grave problema invisibilizado pela mídia hegemônica, pelos políticos locais e pelas autoridades de saúde pública. O problema se agrava quando estes químicos nocivos à saúde humana e ao meio ambiente são pulverizados nas proximidades de comunidades camponesas e indígenas, sendo em muitas ocasiões utilizados como arma de guerra contra as comunidades Guarani e Kaiowá.
Todo este cenário de destruição e violência vai de encontro a simbologia exibida na posse presidencial do Lula em janeiro de 2023. Na época, ele subia a rampa junto ao cacique Raoni, liderança dos povos originários, invocando o fim de uma conjuntura política anti-povos indígenas e anunciando uma agenda progressista em favor das comunidades do campo e da cidade. Porém, a desconexão entre o plano simbólico do espetáculo midiático e a efetivação concreta dos direitos sociais aponta para a permanência de uma dívida histórica que se enraíza na austeridade fiscal. Instrumento determinante no controle da distribuição da riqueza social, o plano de austeridade apresentado pelo atual governo através do arcabouço fiscal é a continuidade do projeto de poder neoliberal que o capital vem impondo há décadas para manter seu secular padrão de dominação.
As migalhas destinadas aos direitos sociais, seja educação, saúde, reforma agrária e demarcação de terras indígenas são apresentadas ideologicamente como uma grande solução e como o horizonte final ao qual o povo brasileiro deve se adaptar. Elas cumprem um papel conciliatório na dimensão ideológica, mas na prática são parciais e acabam por neutralizar as lutas tão necessárias à melhoria das condições de vida de toda a população. Neste contexto de austeridade, uma das táticas da burguesia agrária na questão das demarcações dos territórios indígenas é impor os mecanismos neoliberais do mercado e da privatização da terra, flexibilizando a Constituição de 1988.
Os limites da política conciliatória do atual governo e a insuficiência das pseudo alternativas impostas pelo capital em crise já foi percebida pelas comunidades Guarani e Kaiowá. Para garantir formas de vida digna e a própria sobrevivência não há mais opção do que efetivar com suas próprias forças comunitárias a auto demarcação dos territórios. Um sintoma disso é a recente proliferação de retomadas de terra Brasil afora, como expressam as lutas dos povos Avá-Guarani no Paraná, Anacé no Ceará, Guarani Mbya e Kaigang no Rio Grande do Sul, Parakanã no Pará, e dos Guarani Kaiowá em outros municípios do próprio MS, como Caarapó, que anunciam um novo ciclo de resistências.
Demarcação de terra que nunca sai do papel
O processo demarcatório da TI Panambi-Lagoa Rica iniciado em 2005, está suspenso desde 2011 por uma ação judicial no Tribunal Regional Federal (TRF3) a partir de sentença favorável ao produtor rural em fase de recurso. Em 2016, o processo de demarcação foi anulado na 1a Vara Federal de Dourados através por um juiz que se baseou na tese do marco temporal, a qual obriga os povos originários a comprovar a ocupação dos territórios em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição como condição para efetivar a demarcação.
Durante décadas a fio, a reforma agrária e a demarcação dos territórios indígenas têm sido sistematicamente engavetadas nos labirintos dos rituais burocráticos apesar de serem transformações estruturais necessárias à concretização dos direitos sociais e da dignidade dos
povos do campo e da classe trabalhadora, em especial dos povos originários. O congelamento das demarcações de terras indígenas previstas na Constituição de 1988 responde, por um lado, ao bloqueio histórico das reformas estruturais outrora prometidas pela industrialização fordista e escamoteadas no período neoliberal. Por outro lado, as saídas impostas autoritariamente pelas classes dominantes brasileiras e internacionais nestes tempos neoliberais hegemonizados pelo capital financeiro apontam para o viés neoliberal e privatizante do mercado. A flexibilização da Constituição de 88 se efetiva através da lei 14.701/23, ainda que todas as ações judiciais que se baseiam no Marco Temporal estão suspensos por determinação do STF. Ao instituir o marco temporal através desta lei, a bancada ruralista promoveu o aumento significativo da violência e da insegurança física e jurídica dos povos originários, implicando graves retrocessos como o questionamento de territórios em processo de demarcação ou já demarcados, a anulação da voz das comunidades indígenas referente à entrada nos seus territórios de projetos extrativistas de mineração e grandes empreendimentos e a legalização de práticas de arrendamentos destinadas à produção de commodities agrícolas.
A lei 14.701/23 ignorou a decisão colegiada do STF que rejeitou o marco temporal e se posicionou a favor de sua inconstitucionalidade. Apesar deste julgamento, o STF considerou viável a figura de indenização prévia da terra nua aos não indígenas, leia-se grandes proprietários de terra. É importante ressaltar que apenas a indenização das benfeitorias (e não da terra nua) e o eventual acionamento da permuta são mecanismos permitidos dentro do processo de demarcação para a desintrusão da terra, sobretudo para que pequenos produtores tenham seus direitos garantidos quando suas propriedades incidem em territórios indígenas. A União é obrigada a ressarcir as benfeitorias ou a oferecer a permuta como alternativa, ao nosso ver justa, para reassentar os pequenos produtores que não contam com os recursos necessários para recomeço das suas vidas. Tudo isto é viável desde que estes procedimentos estejam atrelados ao reconhecimento da tradicionalidade dos territórios indígenas e em observância dos ritos do processo demarcatório segundo a Constituição.
O entendimento do STF, uma semana após considerar inconstitucional a tese do marco temporal, é que a indenização prévia da terra nua é um importante instrumento de conciliação de conflitos. Porém, esta determinação que valida a compensação monetária pela terra, antecipadamente e realizada fora do processo demarcatório estabelecido por lei, viola a constituição e responde à operacionalização da lógica mercantil e neoliberal nas políticas de demarcação de territórios. Estes dispositivos cumprem duas funções muito importantes: 1) Recriam as condições de acumulação e expansão do capital na agricultura; 2) Do ponto de vista ideológico desmontam perigosamente a noção de tradicionalidade da terra indigena, também prevista constitucionalmente. A ocupação pelos povos indígenas de suas terras tradicionais e por eles habitadas em caráter permanente são direitos originários, segundo os artigos 231 e 232 da Constituição de 1988. Isto significa que a ocupação é anterior às leis fundiárias e de parcelamento do solo em propriedades privadas e antecede qualquer normativa legal da sociedade brasileira. O questionamento do direito originário através da indenização prévia da terra nua e a permuta implementada fora do processo administrativo demarcatório cumpre a função de colocar as terras tradicionais das comunidades no balcão do mercado nacional e internacional.
A substituição do arcabouço constitucional por estas políticas parciais e mercantilizantes vem tomando conta dos operadores burocratizados do Estado e dos governos de turno, independentemente da cor político-partidária. Há uma convergência unânime em torno da compra de terras para indenizar os fazendeiros ou a permuta por fora dos processos demarcatórios. Em evento de oficialização da exportação de carnes rumo à China, realizado no frigorífico da JBS em Campo Grande no começo deste ano, o presidente Lula anunciou a compra de uma fazenda para os Guarani e Kaiowá na beira da estrada. Ao mesmo tempo, conclamou o governador do estado, Eduardo Riedel, a criar uma parceria para a compra de propriedades rurais para assentar os indígenas. Conhecido empresário e ruralista, Riedel organizou o Leilão da Resistência quando era presidente da Federação de Agricultura e Pecuária de Mato Grosso do Sul (Famasul), em 2013.² Há 11 anos atrás, Riedel já apontava para essa saída e inclusive participou da criação do Fundo Estadual para Aquisição de Terras Indígenas (FEPATI), cujo objetivo é a captação de recursos públicos e privados para a compra de fazendas que incidem em territórios indígenas – com o consentimento do governo federal, inclusive de políticos locais ligados ao Partido dos Trabalhadores. A proposta não contempla a devida consulta às comunidades indígenas, passando por cima da tradicionalidade da terra, sendo que já há terras identificadas e reconhecidas como tradicionais e originárias. Esta imposição se configura como mais um processo de desterritorialização das comunidades que teimam em acampar nas beiras de estrada próximas aos seus almejados territórios.
O Ministério dos Povos Indígenas, através de seu gabinete da crise, vem também sinalizando como solução aos conflitos a retribuição monetária dos fazendeiros pela terra. No fundo, da continuidade a política do Governo Federal de conciliação dos interesses antagônicos entre fazendeiros e os Guarani e Kaiowá. Porém, esse mecanismo abre um perigoso precedente de vincular os direitos originários à capacidade da União em arcar com os preços de mercado da terra exigidos pelos fazendeiros, não levando em conta que essas terras são fruto de violências expropriatórias contra os indígenas durante a história republicana do Brasil que vai desde a cessão de 5 milhões de hectares de terra à Cia. Matte Laranjeiras, passa pela Marcha para o Oeste durante o governo Vargas e perdura até os dias atuais. Também, em um contexto de austeridade fiscal para os direitos sociais, a morosidade de pagamento das terras aos fazendeiros se converte em mais um mecanismo que retarda o acesso à terra.
A liberalização dos territórios indígenas, efetuada a partir da deslegitimação ideológica da tradicionalidade pela via da indenização prévia da terra nua, abre a possibilidade de que variantes distorcidas de permuta sejam realizadas de forma completamente diferente do estabelecido por lei. Grandes proprietários podem passar a oferecer terras altamente degradadas às comunidades que reivindicam territórios condicionando a entrega da terra ao recuo das comunidades e a saída das retomadas. Esta situação aconteceu na recente audiência conciliatória entre comunidades indígenas e fazendeiros no Ministério Público Federal pelo conflito da TI Panambi-Lagoa Rica, em que grandes proprietários ofereceram 150 hectares de terra degradada aos indígenas. Perante os 12.196 hectares reivindicados, esta troca representou uma barganha inaceitável para os Guarani e Kaiowá que no ato recusaram dignamente o ardil. Os mesmos 150 hectares de terra oferecidos como forma de negociação mediada pelo MPF, foram objeto de ordem de reintegração de posse em favor dos fazendeiros. Se efetivado este tipo “saída” na TI Panambi Lagoa-Rica se abre a possibilidade de um precedente de aplicação em nível nacional além de promover a desobrigação do Estado no avanço das demarcações.
O paroxismo com que o agronegócio busca ludibriar os mecanismos institucionais que garantem direitos sociais e meio ambientais expressam uma crise estrutural muito profunda em que o capital não mais aceita barreiras ao seu processo de expansão. Subordinada às grandes corporações transnacionais e pressionada pela feroz concorrência no mercado internacional de commodities, a burguesia agrária local não consegue reproduzir seu padrão de acumulação e domínio sem um alto grau de destruição de seres humanos e da natureza, levando a humanidade aos limites da catástrofe e da mera sobrevivência através da acumulação por espoliação.
Torna-se essencial o controle político através das bancadas no Congresso Nacional, dos representantes ideológicos ao interior do STF e da ocupação de pastas no Governo Federal, onde redes de burocratas, cujos interesses estão intimamente vinculados à estabilidade do sistema, operacionalizam a drenagem da riqueza socialmente produzida via cadeias globais de acumulação comandadas pelos grandes monopólios do capital financeiro internacional. Os dispositivos acionados são os mais diversos: isenções fiscais através da antiga Lei Kandir e, mais recentemente, da reforma tributária, o perdão das dívidas ao setor e, caso notável que escancara a assimetria de poder econômico e político é a do Plano Safra 2024-2025, que destinou um montante de R$ 600 bilhões ao agronegócio. As propostas de indenização prévia da terra nua e de permuta em suas inúmeras variantes junto com a flexibilização da constituição são mais um capítulo do saqueio em curso que reflete a crise global em que o capital se encontra atualmente.
Os limites do Estado e da administração do conflito
No dia 17 de julho, os fazendeiros locais entraram com ação judicial de reintegração de posse ajuizada na 1ª Vara Federal de Dourados com pedido de antecipação de tutela para o despejo da comunidade Guarani e Kaiowá. O pedido dos ruralistas foi aceito e legitimado pelo juiz, que deu 5 dias para que a comunidade saia do seu legítimo território tradicional, já identificado a partir do processo demarcatório. O juiz, sem fazer referência expressa, se utiliza justamente da tese do marco temporal para descaracterizar o território indígena e tratar os Guarani Kaiowá como invasores da propriedade privada rural. Ao deferir a antecipação de tutela, o juízo ignora a existência do processo demarcatório impedindo a defesa do povo do seu território.
Desde a ordem de reintegração de posse, um helicóptero sobrevoa a área da retomada impondo o terror e trazendo lembranças do Massacre de Guapo´y em 2022, quando um helicóptero da Polícia Militar literalmente caçou os indígenas deixando dezenas de feridos e 1 morto. Os fatos mostram como o Estado democrático de direito é funcional aos interesses do grande capital, dando ares de legalidade e legitimidade à concentração da riqueza social e da terra enquanto recorre à violência direta quando lhe escapa das mãos o controle social. O “desforço imediato” acionado pelos próprios fazendeiros e o uso de segurança pública para “apaziguar o conflito” e “oferecer segurança aos indígenas” são lados da mesma moeda do espólio de terras. Com efeito, de acordo com os próprios Guarani Kaiowá, a Força Nacional, acionada pelo MPI, tem feito vistas grossas às ameaças dos ruralistas ou mesmo agravado o tensionamento local.
A ampla gama de instituições criadas para resguardar os direitos territoriais dos povos originários: Gabinete de Crise do MPI, Grupo de Trabalho Povos Indígenas (GTPI), Defensoria Pública da União (DPU), Departamento de Mediação de Conflitos do MPI, Ministério de Direitos Humanos e Cidadania (MDHC) – se mostra inofensiva e inoperante diante jogo de forças com que os fazendeiros contam na hora de perpetrar um despejo que anuncia mais um derramamento de sangue. Na prática, um MPI desfinanciado e despido de suas atribuições de demarcação territorial tem sido instrumentalizado pelo Governo Federal para tentar conciliar o inconciliável e adiar a concretização de um direito inegociável: os interesses radicalmente antagônicos de fazendeiros e povos originários. Ao fechar os olhos para a reintegração de posse e insistir que um diálogo está sendo travado com os fazendeiros, o Governo Federal, na figura de seus ministérios, aceita rifar os direitos originários ao mercado cumprindo o papel subordinado aos interesses do grande capital financeiro internacional.
A política de apaziguamento das lutas já foi percebida pelos indígenas que resistem e se recusam a abandonar seus territórios secularmente usurpados. A poucos dias de execução do despejo e de um iminente massacre, o povo Guarani Kaiowá mantém a sua resistência e mostra que a única reconciliação possível se encontra na demarcação das terras indígenas!
1 – Há estudos que indicam a presença de “agromilícias” na região, a exemplo do que acontece com as milícias armadas no Rio de Janeiro que mataram Marielle Franco. Para mais informações ver o Trabalho de Conclusão de Curso de Graduação em direito de Stefany Santana: O latifúndio das milícias: a atuação de agromilícias contra o povo indígena Guarani e Kaiowá no estado de Mato Grosso do Sul (2022).
2 – O Leilão da Resistência foi iniciado nas campanhas que levaram posteriormente à eleição do governo Bolsonaro e foi promovido pela Associação dos Criadores de Mato Grosso do Sul (Acrissul), com apoio e presença de parlamentares vinculados à bancada ruralista no Congresso Nacional. Riedel, enquanto ruralista, empresário e governador, foi presidente do Sindicato de Maracaju, vice-presidente na Federação da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso do Sul e diretor da Confederação Nacional da Agricultura (CNA).
*Gabriela Guillén – cientista social e educadora da Escola Nacional Florestan Fernandes
**Judite Stronzake – cientista social e da natureza e militante do MST
***Karina Pinhão – pesquisadora do Observatório da Kuñangue Aty Guasu (OKA)
****Katiuscia Galhera – cientista política, pesquisadora da Ajupi-OKA, mãe e militante da MMM
*****As opiniões contidas neste artigo não necessariamente refletem as do Brasil de Fato.
Edição: Thalita Pires