Publicado originalmente em ObjETHOS por Vinícius Augusto Bressan Ferreira. Para acessar, clique aqui.
As patentes das vacinas da Covid-19 voltaram a receber atenção da imprensa brasileira no mês passado, graças a uma série de eventos inter-relacionados. Por exemplo, declarações dadas na Comissão da Covid-19 do Senado no dia 8, uma carta, do dia 13, defendendo a suspensão temporária de barreiras assinada por 243 organizações civis, e, no dia 22, uma nova carta, desta vez assinada por 49 parlamentares do Brasil, apoiando a proposta de suspensão de patentes feita pelos governos da Índia e da África do Sul na OMC, ano passado.
A questão central nessa cobertura jornalística é, obviamente, o debate sobre se as patentes ligadas a essas vacinas devem ou não ser quebradas. Esse é um debate no qual eu, particularmente, tenho uma posição definida de apoio à quebra das patentes, entretanto o objetivo desse texto não é discutir os méritos dessa posição. A ideia aqui é questionar o que me parece uma limitação de visão da imprensa nacional “de referência” ao tratar desses instrumentos legais que garantem a algumas empresas farmacêuticas o monopólio sobre a produção das vacinas.
Um exemplo claro dessa limitação pode ser visto na matéria da CNN Brasil, 5 pontos para entender a quebra de patentes das vacinas contra a Covid-19, assinada por Camila Neumam. O subtítulo “Falta de tecnologia é entrave” começa assim:
“A falta de capacidade técnico-produtiva e logística brasileira na produção de vacinas e insumos para Covid-19 é vista como impeditivo para a quebra de patentes das vacinas no país. Atualmente, o Brasil importa 90% dos insumos farmacêuticos que utiliza; 80% dos equipamentos e sensores, como os ventiladores, e 60% dos equipamentos de proteção individual, segundo dados da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
Para a imunologista Cristina Bonorino, membro do comitê científico da Sociedade Brasileira de Imunologia (SBI), além da carência de estrutura física e logística, falta ao Brasil expertise na produção de insumos de biotecnologia, elaborados, em sua grande maioria, na China, o que invalidaria a produção em massa de vacinas em curto prazo no país.”
O texto segue, apresentando argumentos relacionados a essa ideia de que a quebra de patentes não ajudaria – pelo menos não a curto prazo – a aumentar o acesso do Brasil às vacinas. A validade desses argumentos é uma discussão para outro dia, o que quero destacar dessa vez é que todos eles parecem partir do seguinte ponto “o que aconteceria se o Brasil, de forma independente e solitária, quebrasse a patente das vacinas”. É uma lógica que parece não se conectar ao âmbito global da discussão, afinal se essa quebra de patentes acontecesse ela provavelmente não seria feita apenas aqui, mas em escala mundial.
Veja bem, não se trata de que a matéria da CNN Brasil ignore o fato de que essa é uma discussão internacional, ela menciona o pedido feito por Índia e África do Sul na OMC, em 2020, para suspensão temporária de direitos de patente sobre as vacinas. O problema é que em nenhum momento o texto se atenta para as consequências desse fato nos argumentos que estão sendo apresentados. Ainda que se considere legítima a ideia de que, independente da quebra de patentes, o Brasil não conseguiria aumentar consideravelmente sua produção de vacinas, nosso país não seria afetado pelo aumento da oferta de vacinas causado pelos países que têm a estrutura necessária para fazer esse aumento de produção? Isso não tornaria mais fácil para o Brasil comprar vacinas? Esses questionamentos simplesmente não são abordados.
Alguns podem concluir que essa limitação da discussão é intencional, afinal a CNN Brasil é um veículo que frequentemente se posiciona como zeloso defensor de interesses empresariais. Teria essa empresa de mídia escolhido limitar a discussão proposta na matéria para evitar contrapontos a essas ideias de antiquebra de patentes? Não sou otimista a ponto de descartar essa hipótese, mas acho que tem algo menos intencional aí. Embora eu considere a publicação da CNN um dos exemplos mais claros dessa questão, acho que podemos enxergar o mesmo efeito em matérias de outros veículos, inclusive nas que tratam positivamente a ideia da quebra de patentes.
A coluna do Jamil Chade no UOL é um dos espaços da “grande imprensa” que têm acompanhado mais de perto a discussão sobre as patentes das vacinas da Covid-19. Ainda assim, no texto Quebra de patente: 240 organizações contestam ideias do Brasil sobre vacina, cujo conteúdo pode ser considerado positivo em relação a quebra de vacinas, a visão ainda parece ser focada em questões intranacionais, como:
“Os acordos também determinam o preço pelo qual as vacinas são vendidas. Os modelos, segundo as entidades, são insustentáveis, já que não permitem direitos legais aos laboratórios em países pobres para produzir ou abastecer um mercado de forma independente.”
Em nenhum momento da matéria é pautada a questão dos possíveis efeitos de um aumento da oferta de vacinas no mercado global que, a meu ver, facilitaria o acesso a elas mesmo para os países que eventualmente não tenham condições de produzi-las. Não estou querendo diminuir a importância da questão do abastecimento independente de vacinas de cada país, mas parece que esse ponto acaba roubando todo o holofote, deixando outro que também é muito importante, esquecido.
Mas se não se trata, necessariamente, de uma intenção deliberada de favorecer um posicionamento pró ou anti quebra das patentes, por que isso acontece? Talvez as próprias fontes não estejam mencionando o assunto? A matéria do Metrópoles Entenda a discussão internacional sobre quebra da patente das vacinas, por exemplo, se baseia muito na fala de fontes. Mas mesmo que esse seja o caso, ainda seria importante que os repórteres questionassem as fontes sobre esse aspecto da discussão. Aliás, considerando a relevância do tema, acho até improvável que os especialistas da área não estejam pensando nisso, então meu palpite é que simplesmente o roteiro de perguntas dos jornalistas não esteja incluindo o tópico.
É como diz o velho chavão, fazer jornalismo é sobre fazer as perguntas certas. Uma hipótese é que seja simplesmente o viés inconsciente de jornalistas que estão focados na cobertura nacional (nenhuma das matérias mencionadas é de uma “editoria” internacional). Talvez, por conta disso, acabam pensando sobre os fatos de uma forma “Brasilcêntrica” que não dá tanta atenção para os aspectos mundiais da pauta, mesmo quando ela é extremamente internacional. Seja qual for a razão, que eu certamente não me proponho a descobrir aqui, acredito que isso esteja prejudicando a qualidade da cobertura jornalística que se propõe a informar sobre a questão da quebra de patentes das vacinas. Para que a imprensa ofereça à população brasileira uma visão mais completa de um assunto como esse, acredito que é preciso abstrair um pouco do “nosso próprio umbigo” e olhar para a pauta de uma forma realmente global. Sem isso, vamos estar sempre oferecendo uma visão incompleta do assunto, inclusive sobre os tópicos que afetam diretamente o Brasil.