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Artigo | Taís Ferreira, professora da Faced, avalia a qualidade e os desafios do modelo brasileiro de curricularização obrigatória na educação básica das práticas pedagógicas nas artes da cena
*Por: Taís Ferreira
*Foto: Flávio Dutra/JU
Quem comigo convive sabe: tenho repetido, já há algum tempo, que devemos nos orgulhar das práticas, reflexões e produções das pedagogias das artes cênicas desenvolvidas no Brasil nas últimas cinco décadas. Cumpre notar que esse movimento de “ufanar-me” daquilo que produzimos em nosso país só foi possível com a imersão em outras culturas e outros países que os programas de incentivo à pesquisa promovidos por governos anteriores propiciaram a mim. Ampliar nosso horizonte de expectativas é um exercício profícuo tanto para aprendermos com o outro como para reconhecermos naquilo que é nosso o seu valor intrínseco. Infelizmente, vemos operar na atual conjuntura, partindo do governo federal, a lógica do desmonte e da desvalorização de tudo o que concerne à educação, à cultura e à ciência: urge que revertamos esse panorama.
Mesmo aqueles que estão ligados ao campo do teatro, da dança, do circo e da performance por vezes desconhecem, mas o Brasil é um dos países com as mais ricas e instigantes experiências pedagógicas e políticas para a educação em artes da cena no mundo.
Das teatralidades tradicionais/populares e seus saberes e fazeres ao ensino formal de teatro e dança nas escolas de educação básica, passando pela formação de bailarinas/os e atrizes/atores e pelo teatro comunitário, social e político (que tem no teatrólogo Augusto Boal uma referência internacional quase sem precedentes), atuamos em diversas frentes, contextos e conjunturas, criando uma miríade de experiências com os mais diversos públicos.
Grupos de crianças, jovens, idosos, pessoas com deficiência, mulheres, pessoas em situação de cárcere, trabalhadores/as, populações indígenas, negras e periféricas, pessoas trans e comunidade LGBTQI+, imigrantes/migrantes, população em situação de rua, comunidades urbanas e rurais, movimentos sociais, entre outros, fazem teatro, circo e dança neste país com a orientação qualificada de docentes-artistas. Depois de anos de luta política do campo da arte-educação, a LDB de 1996 garantiu a formação específica de professores de Artes nas quatro linguagens artísticas (Artes Visuais, Dança, Música e Teatro), além de outras leis sobre as áreas, assim como os Parâmetros Curriculares Nacionais (1998) e a Base Nacional Comum Curricular (2018). Todos garantem a presença compulsória das Artes na educação básica brasileira.
No entanto, por que, quando olhamos para os países do hemisfério norte, nos colocamos em uma posição de subalternidade quanto à formação estética, cultural e artística de nossas crianças e jovens? Depreendo que seja porque, mesmo com políticas educacionais que garantam nossa (r)existência, não haja políticas públicas efetivas que garantam o direito às aulas de teatro e dança a todos jovens e crianças deste país.
Para nossa consternação e preocupação, há um abismo entre os projetos e sua implementação junto aos sujeitos que deveriam ser atendidos.
Contudo, mesmo que isso possa ser considerado um demérito, ainda deixamos estrangeiros literalmente boquiabertos com a formação acadêmica de licenciados/as em Teatro e Dança. “Professor de teatro com formação superior universitária? Existe uma graduação que forma professores de dança?” Muitas e muitas vezes em minhas incursões como pesquisadora no exterior (minhas experiências são restritas ao continente europeu, portanto é a esse território que me refiro aqui) respondi que “sim” a acadêmicos, artistas e pedagogas estupefatos. Esse é o verdadeiro “sonho dourado” de muitos sujeitos que trabalham com artes cênicas na Europa. Outro motivo de estupor é a presença da dança e do teatro como componentes obrigatórios dos currículos da educação básica formal: na Itália, por exemplo, as atividades de teatro e dança nas escolas regulares são sempre pontuais e limitadas a projetos específicos, geralmente extracurriculares.
Talvez o modelo adotado no Brasil, de curricularização obrigatória na educação básica das práticas pedagógicas nas artes da cena, tenha ainda, por muitas décadas, grandes desafios para sua implementação a contento. Nesse ponto, poderíamos observar experiências e modelos pedagógicos em teatro e dança alhures e nos inspirar, pois nada impede que andem lado a lado, como complementares na constituição de um campo próprio. Em países como a Itália, lócus de estudo e pesquisa que tive a oportunidade de conhecer e vivenciar ao longo de três anos, há dois modelos prioritários de ensino de teatro e dança: o partenariado (trabalho conjunto colaborativo entre escolas e grupos/coletivos ou pedagogas e artistas) e a formação pedagógica (oficinas abertas, cursos, escolas livres, festivais) em artes cênicas oferecida pelos grupos de teatro e dança em suas sedes ou ainda pelos entes públicos (teatros e centros culturais). É importante salientar que o aporte financeiro para estas práticas vem de fundos públicos nacionais e regionais.
Nós, no Brasil, contamos com ensino de excelência naquilo que tange à formação inicial de docentes-artistas, com currículos que abarcam práticas e estudos teóricos e são atravessados pela dimensão pedagógica e pelo comprometimento ético, estético e educacional.
Nossas egressas e nossos egressos atuam na educação básica regular, no ensino informal, têm presença qualificada e marcante no terceiro setor e nas atividades voltadas à comunidade e são, na maior parte das vezes, ativos na vida cultural e artística de suas cidades e regiões, sejam como artistas, sejam como mediadores culturais capacitados.
Gostaria de retomar, no fechamento deste artigo, a metáfora que lanço em seu título: nas terras férteis deste país uma pedagogia das artes cênicas múltipla, variada e diversa (muito mais próxima da variabilidade sazonal e colorida da agricultura familiar do que das monocromáticas plantações de latifúndio) cresce, floresce, frutifica e se coloca no cenário internacional como uma das mais pujantes de que temos notícia. Há que se ter vontade política (nos níveis federal, estadual e municipal) para que todes tenham efetivado o direito a essa educação em artes qualificada e crítica na nossa Terra Brasilis.