Publicado originalmente em Coletivo Bereia por Juliana Dias, V. Martini e Lara Aquino. Para acessar, clique aqui.
No último sábado, 5 de junho,o portal gospel Pleno News publicou notícia com o título “UNICEF sugere que pornografia pode ser positiva para crianças”. Nos últimos dias, a informação foi replicada por sites como ContraFatos, AcessePolítica, O Nortão e Gospel Prime. O conteúdo também circulou pelo aplicativo de mensagens WhatsApp em grupos religiosos.
A notícia foi replicada por políticos, como os deputados federais Marco Feliciano e Bia Kicis:
A informação foi desmentida pelo próprio Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) em nota pública no site e em suas mídias sociais.
O Unicef explicou que o relatório “Ferramentas de garantia da era digital e direitos das crianças online em todo o mundo” discute como melhorar a proteção das crianças na internet e apresenta os numerosos riscos e danos associados ao acesso das crianças à pornografia e a outros conteúdos nocivos online. “A posição do UNICEF é clara: nenhuma criança deve ser exposta a conteúdo nocivo, online ou offline”, informa o comunicado.
Em virtude dessa desinformação em relação aos resultados do estudo, o Unicef o retirou do ar para revisão e ajustes necessários.
O relatório mencionado na matéria do Pleno News só se encontra disponível no momento no site do Centro da Família e Direitos Humanos (C-Fam, no original em inglês), que serviu de fonte para o portal gospel. No entanto, ao contrário do que diz a C-Fam e a notícia do Pleno News, o estudo não menciona qualquer “direito humano ao consumo de pornografia”, nem implica que o consumo de pornografia possa ser benéfico para crianças.O estudo – que estava disponível somente em inglês – não chegou a ser publicado no site do UNICEF no Brasil.
O estudo original
Em seu subcapítulo sobre “Quais os riscos que ferramentas de restrição de idade ajudam a mitigar, e quais as evidências que corroboram esses riscos”, o Unicef apresenta um intertítulo denominado “Pornografia”, páginas 35 à 39. Neste trecho, o estudo afirma que:
“Há vários riscos e males que foram associados à exposição de crianças a pornografia, mas não há consenso em que grau a pornografia é prejudicial a crianças. Proeminentes críticos apontam que as pesquisas mostram como o acesso à pornografia, em tenra idade, é associado a uma saúde mental empobrecida, sexismo e objetificação, agressão sexual e outros males. A evidência sugere que algumas crianças aparentam ser prejudicadas pela exposição a pornografia por algum tempo, mas a natureza do dano e sua duração variam de caso a caso”.
Trecho de Estudo do Unicef
Pelo menos seis estudos são citados para corroborar a posição do órgão, citados em revistas científicas revisadas por pares e bem classificadas em termos de credibilidade. O trecho que é mal interpretado pelos portais, diz respeito a uma pesquisa, realizada pelo grupo European Union Kids Online, em que se avaliava as reações emocionais de crianças a pornografia. Em nenhum momento o estudo ratifica que a pornografia é boa ou ruim, mas avaliava como as crianças se sentiam ao ter contato com ela. Dessas, o maior número foi de indiferente, seguido por crianças que se sentiam mal, e por fim, crianças que alegavam ter se sentido mais alegres. Dessas, 39% eram espanholas.
Mais à frente o relatório diz: “Como discutido acima, a evidência é inconsistente, e não há consenso quanto a natureza ou extensão do mal causado pelo consumo de pornografia por crianças”. “Natureza”, em um estudo científico, se refere a perguntar “o que é afetado”. Determinar se é um mal para a psicologia, a neurofisiologia, os órgãos sexuais, comportamental, é definir sua natureza. A “extensão” é definida pelo tempo de duração – se são problemas causados por toda a vida ou que podem ser remediados. Em nenhum dos casos se propôs que a pornografia não causasse mal às crianças.
O Unicef
O Fundo das Nações Unidas para a Infância, do inglês United Nations Children’s Fund (UNICEF), foi criado em 11 de dezembro de 1946, em Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU), como meio de fornecer assistência às crianças no período pós-Segunda Guerra Mundial da Europa, no Oriente Médio e na China. Tornou-se órgão permanente em 1953 e atua defendendo e protegendo os direitos das crianças e adolescentes de todo o mundo.
“O bem-estar das crianças de hoje está inseparavelmente ligado à paz do mundo de amanhã.”
Henry Labouisse, diretor executivo do UNICEF de 1965 a 1979
O Unicef está presente no Brasil desde 1950 e a atuou diretamente “na aprovação do artigo 227 da Constituição Federal e na elaboração do Estatuto da Criança e do Adolescente; do movimento pelo acesso universal à educação; dos programas de enfrentamento ao trabalho infantil; entre outros grandes avanços para a garantia dos direitos de meninas e meninos brasileiros”, segundo seu site.
Em 7 de junho passado o Unicef declarou publicamente que a notícia do Pleno News que circulava pelos canais de WhatApp brasileiros é fake. O Unicef afirma na nota pública que “nenhuma criança deve ser exposta a conteúdo pornográfico nem a qualquer outro conteúdo nocivo online e offline”. Após as interpretações incorretas e a dissipação das fake news,o orgnaismo afirmou que retirou do ar o estudo para que ajustes fossem feitos e o artigo revisado.
O Unicef declara ainda estar alarmado com a quantidade de conteúdos pornográficos disponíveis para crianças e reforça como a atitude é prejudicial para o desenvolvimento infantil. A nota pública indica também que o organismo trabalha para promover a segurança online das crianças e que incentiva governos, indústria de tecnologia, escolas, pais e comunidades a que façam tudo ao seu alcance para proteger as crianças de todos os conteúdos prejudiciais. No Brasil, o Unicefatuana proteção de meninas e meninos contra as diferentes formas de violência.
É possível saber mais sobre a atuação do Unicef no Brasil em unicef.org/brazil/protecao
Pleno News não se retrata e ainda usa desmentido da UNICEF
Em 8 de junho, o Pleno News publicou a notícia de que o Unicef retirou o estudo do ar depois da controversa interpretação errônea e ter gerado repercussão negativa. O portal afirmou também que, embora o órgão tenha classificado as notícias como fake news, decidiu retirar o estudo para revisão mantendo o tom de suspeita sobre o conteúdo.
Mais uma vez o deputado Marco Feliciano repercutiu a desinformação dizendo que a retirada do relatório do site do Unicef foi uma “vitória”:
Diversas agências de checagem e veículos de comunicação realizaram a verificação sobre este caso que se alastrou pelas mídias sociais e classificaram a alegação em favor da pornografia no estudo como enganoso e falso, como Boatos.org, Estadão Verifica e o Portal R7 da Rede Record.
Bereia entrou em contato com o secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos Maurício Cunha para uma declaração sobre como o órgão está atuando na superação desta desinformação contra o Unicef, parceiro do governo federal. O secretário indicou que Bereia deveria entrar em contato com a assessoria de imprensa do ministério, o que foi feito. Até o fechamento dessa verificação não houve retorno. Tão longo se consiga o posicionamento governamental esta matéria será atualizada.
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Com base na apuração, o Coletivo Bereia conclui ser enganosa a notícia do Pleno News de que o UNICEF sugere que pornografia pode ser positiva para crianças. Apesar do estudo tratar do tema, as conclusões tiradas dele por meio de interpretações incorretas,e divulgadas de forma a comprometer a reputação do organismo, são tratadas de forma imprecisa. Pleno News age na linha dos veículos e grupos que disseminam desinformação para provocar pânico moral com temas sobre sexualidade e sobre a educação de crianças, gerando, assim, engajamento em suas matérias.
Bereia alerta leitores e leitoras que uma das formas de se avaliar se um conteúdo é falso ou enganoso é identificar matérias de cunho bizarro ou ausentes de sentido. No caso da publicação do Pleno News, pode-se avaliar como bizarro que um organismo da ONU, historicamente respeitado pelo trabalho dedefesa dos direitos das crianças e adolescentes, em várias frentes em todo o mundo, como o Unicef, com atuação no Brasil há 70 anos, seja acusado de sugerir que “pornografia seja positiva para crianças”. Uma afirmação fora de sentido como esta deve gerar desconfiança no primeiro acesso, a veracidade deve ser imediatamente buscada e os promotores da calúnia devem ser denunciados.
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Foto de capa: Pixabay/Reprodução
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Referências
Unicef, https://www.unicef.org/brazil/comunicados-de-imprensa/e-fake-noticia-que-circula-no-whatsapp-e-em-sites-sobre-unicef-e-pornografia Acesso em 08 de junho de 2021
C-Fam, https://c-fam.org/friday_fax/unicef-report-says-pornography-not-always-harmful-to-children/ Acesso em 08 de junho de 2021
EU Kids Online, https://www.lse.ac.uk/media-and-communications/assets/documents/research/eu-kids-online/reports/EU-Kids-Online-2020-10Feb2020.pdf Acesso em 08 de junho de 2021
Unicef, https://www.unicef.org/brazil/sobre-o-unicef Acesso em 08 de junho de 2021