Publicado originalmente em Coletivo Bereia por Camila Duarte e Rafaely Camilo. Para acessar, clique aqui.
O site gospel Pleno.News noticiou, em 12 de outubro passado, que, em 2024, as empresas estatais acumulam um “rombo” de R$7,2 bilhões – o maior déficit da série histórica, registrada pelo Banco Central desde 2002. A publicação, intitulada “Déficit histórico: Estatais têm rombo de R$7,2 bilhões, em 2024”, cita o canal de TV CNN Brasil como fonte da informação, e destaca que tais perdas podem aumentar o endividamento do país por levar o Executivo a cobrir esses custos.
A notícia da CNN Brasil referida, de 10 de outubro, destaca que o “rombo” de R$7,2 bilhões é o maior em 22 anos e é composto pelas contas negativas de estatais federais e estaduais, que acumulariam, respectivamente, R$3,3 bilhões e R$3,8 bilhões. A matéria explica, ainda, que os dados sobre o déficit foram divulgados por um relatório de estatísticas do Banco Central, e este resultado se dá quando os gastos superam o fluxo de entrada no caixa das empresas. Outros veículos como O Globo e Infomoney divulgaram o mesmo conteúdo.
Imagem: reprodução/Pleno.News
A notícia publicada pelo Pleno.News tem os mesmos poucos dados em quatro parágrafos, como a matéria da CNN, e não oferece elementos informativos complementares para o público religioso, que é alvo deste veículo, e não compreende as implicações de tais questões econômicas. Bereia checou.
Cenário complexo exige cautela
Bereia apurou que os resultados negativos das empresas estatais no acumulado de 2024 estão longe de ser uma novidade: a lei que estabelece as regras do orçamento deste ano definiu que o déficit poderia chegar a R$ 7,3 bilhões. Desse modo, a informação divulgada pelo Banco Central mostra que as perdas das estatais estão muito próximas do limite estabelecido pelo governo, o que pode despertar um sinal de alerta quando um contexto maior não é considerado.
A última edição do Relatório de Avaliação de Receitas e Despesas Primárias (documento que acompanha o cumprimento das metas fiscais do Executivo), publicada em 23 de setembro passado, projeta que os investimentos do Novo PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) devem equilibrar as contas das estatais e mudar o cenário que, num primeiro momento, pode parecer catastrófico.
O orçamento de 2024, aprovado pelo Congresso no ano anterior, prevê que R$ 5 bilhões do PAC sejam abatidos das contas das estatais, fazendo com que, segundo as expectativas do governo, o déficit fique em R$ 4 bilhões e a meta fiscal seja alcançada. Além disso, outros fatores podem influenciar no resultado individual das empresas e transformar o prejuízo em lucro, como foi visto em 2023.
Em novembro do último ano, o jornal O Globo publicou uma lista de estatais deficitárias que poderiam precisar de socorro do Tesouro Nacional para não fechar o ano no vermelho. De acordo com a matéria, a empresa Hemobrás, que desenvolve e produz medicamentos hemoderivados, amargaria um prejuízo de R$ 352,86 milhões em 2023, dado que não se confirmou: a estatal registrou lucro recorde de R$ 326,5 milhões.
A Dataprev, empresa que fornece tecnologia de dados para o funcionamento de programas sociais, superou uma estimativa de déficit de R$ 198,29 milhões e alcançou o maior lucro de sua história: R$ 598,6 milhões. Essas diferenças entre o que foi estimado e o que de fato se concretizou mostram que o assunto é complexo e demanda atenção e cautela por parte da imprensa.
Em entrevista ao Bereia, o mestre em Teoria Econômica pela Universidade Estadual de Maringá (UEM) Presley Vasconcellos aponta para fatores que podem explicar casos como os da Dataprev e Hemobrás:
“A diferença entre o déficit previsto em novembro de 2023 e o lucro de algumas estatais no fechamento do ano pode ser explicada por uma combinação de previsões conservadoras, melhora no desempenho operacional, recuperação econômica, reconhecimento tardio de receitas, e políticas de gestão de dívidas e custos. Além disso, o contexto macroeconômico mais favorável no final do ano, com controle de inflação e eventuais ganhos extraordinários, pode ter contribuído para reverter a expectativa de déficit em resultados positivos.”
Vasconcellos explica, ainda, que as estatísticas fiscais são construídas a partir dos dados de fluxo de caixa das empresas, e fatores relacionados à gestão financeira, políticas públicas e contexto econômico podem ajudar a explicar os resultados negativos das estatais. Além disso, é importante considerar que cada empresa tem as suas particularidades, visto a diversidade de setores em que atuam.
A situação das estatais brasileiras
As estatais federais brasileiras compõem um conjunto diverso, no qual podem ser encontradas empresas de porte global, como a Petrobras, até empresas que atuam regionalmente, como a central de abastecimento CeasaMinas. Como característica comum, elas foram criadas com o objetivo de atender ao interesse público.
Em julho deste ano, o Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI) publicou o Relatório Agregado das Empresas Estatais Federais, que organiza e consolida os principais dados contábeis, econômicos, e operacionais respectivos à atuação das empresas controladas pela União em 2023.
Alguns pontos do balanço foram destacados, como a riqueza produzida pelas estatais no ano anterior – registrada como seu Valor Adicionado Bruto – contabilizando R$ 627,1 bilhões, o que equivale a 5,75% de todo o Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro.
Em conjunto, o lucro líquido que as estatais apresentaram foi de R$ 197,9 bilhões. De acordo com o Relatório, no ano de 2023, as empresas federais pagaram R$ 128,1 bilhões em dividendos e Juros sobre Capital Próprio (JCP) a seus acionistas. A União recebeu R$ 49,4 bilhões em pagamentos nessa modalidade.
Ao final de 2023, as estatais geraram mais de 400 mil empregos, com atuação em praticamente todo o território nacional, e contavam com ativos que, somados, chegavam à casa dos R$ 6 trilhões.
Imagem: reprodução/Relatório Agregado das Empresas Estatais Federais (MGI)
Além da lógica do lucro
As estatais geram, por definição, valor à sociedade brasileira e operam em diversas frentes de atuação que, embora importantes para o desenvolvimento do país, ultrapassam a lógica estritamente mercadológica, baseada na geração de lucro. Como exemplo, temos o acesso universal a atendimento médico gratuito e a prestação de serviços financeiros em agências dos Correios.
Combinado ao seu papel de prestação de serviços públicos fundamentais e de estímulo ao desenvolvimento do país, é possível também verificar, quantitativamente, a importância das estatais na economia brasileira.
Para compreender a dinâmica de funcionamento das estatais, foi elaborada a Demonstração de Valor Adicionado, que é um demonstrativo contábil – obrigatório para todas as sociedades por ações desde 2007 – que indica o quanto uma empresa gera de riqueza e como a distribui na sociedade. Esse demonstrativo ajuda a compreender a atividade das estatais e como elas contribuem para o crescimento da nação.
Imagem: gráfico elaborado pelo Bereia com base no Relatório Agregado das Empresas Estatais Federais 2024
Abordagem rasa pode gerar equívocos
Diante de cenários complexos, como é o caso da economia e da gestão pública, abordagens rasas que não contextualizam os dados devidamente podem gerar no público uma percepção de que empresas estatais são ineficientes e altamente deficitárias, ou que o governo em questão é corrupto ou não faz uma boa gestão da coisa pública.
Sobre a abordagem da imprensa a respeito das estatísticas fiscais do Banco Central, Presley Vasconcellos comenta que, apesar da análise técnica estar correta, falta clareza para apontar a natureza dos déficits, que podem ser entendidos pelo leitor como uma “falência” das empresas.
“A abordagem se torna tendenciosa para indicar o “rombo”, enquanto que na verdade estamos falando de um déficit em que pode, em muitos casos, ser justificado por aumento do investimento para ampliação da atuação. Há uma enorme diferença na tratativa nesse cenário. Há um sensacionalismo em associar gasto a desperdício, enquanto que investimento é um ato necessário, em diversos casos.”
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Bereia classifica a publicação do Pleno.News como imprecisa. A matéria se baseia em dados da emissora de TV CNN, que, por sua vez, lançou mão de estatísticas publicadas pelo Banco Central. Como Bereia verificou, os dados são verdadeiros, porém, carecem da devida contextualização e explicações sobre as causas, as implicações e as consequentes ações do Estado diante de tal situação.
A produção de conteúdo desta forma, caracteriza a informação imprecisa, que desinforma, neste caso, por dois fatores: 1) a ausência de elementos que expliquem devidamente o tema ao público que não o domina, o que gera conclusões e avaliações equivocadas sobre o que é divulgado; 2) o título sensacionalista com o termo “rombo” que estimula avaliações críticas à gestão do Estado relacionadas a corrupção e incompetência.
Bereia alerta leitores e leitoras a não consumirem notícias que tratem de temas complexos, como os relacionados a economia, em poucos parágrafos, sem apuração de dados e avaliações de especialistas que contextualizem o que se quer informar.
Referências de checagem:
CNN Brasil
https://www.cnnbrasil.com.br/economia/macroeconomia/estatais-tem-rombo-de-r-72-bi-em-2024-o-maior-em-22-anos/ Acesso em 14 OUT 24
https://www.cnnbrasil.com.br/economia/macroeconomia/estatais-devem-fechar-o-ano-com-rombo-de-quase-r-6-bilhoes-tesouro-pode-ter-que-bancar-deficit/ Acesso em 14 OUT 24
Banco Central do Brasil. https://www.bcb.gov.br/estatisticas/estatisticasfiscais Acesso em 14 OUT 24
Poder 360. https://www.poder360.com.br/economia/estatais-federais-devem-ter-prejuizo-de-r-56-bilhoes-em-2023/ Acesso em 14 OUT 24
YouTube. https://youtu.be/7DbR69zRQyY?si=zg247vVAu31AOCJs Acesso em 14 OUT 24
G1. https://g1.globo.com/economia/noticia/2019/06/07/governo-federal-tem-atualmente-134-estatais-veja-lista.ghtm Acesso em 14 OUT 24
Senado Federal. https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/535500/RAF11_DEZ2017_pt08.pdf Acesso em 14 OUT 24
Terra Investimentos. https://blog.terrainvestimentos.com.br/estatais-quais-sao-as-empresas-controladas-pelo-governo-disponiveis-na-bolsa/ Acesso em 14 OUT 24
Biblioteca Digital. https://bibliotecadigital.economia.gov.br/handle/777/162 Acesso em 14 OUT 24
O Globo.
oglobo.globo.com/economia/noticia/2023/11/17/rombo-das-estatais-veja-a-lista-de-empresas-publicas-que-precisam-do-tesouro-para-fechar-as-contas.ghtml Acesso em 14 OUT 24
https://oglobo.globo.com/economia/noticia/2023/08/08/governo-quer-descontar-r-5-bi-do-novo-pac-da-meta-de-resultado-das-estatais.ghtml Acesso em 17 OUT 2024
Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos. Relatório Agregado das Empresas Estatais Federais. https://www.gov.br/gestao/pt-br/central-de-conteudo/relatorios-das-estatais/relatorio_empresas_estatais_federais_2024.pdf Acesso em OUT
Telesintese. https://telesintese.com.br/lucro-da-dataprev-cresce-142-e-alcanca-r-5986-milhoes-em-2023/ Acesso em 17 OUT 24
UOL Notícias. https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2024/01/16/hemobras-tem-em-2023-lucro-recorde-de-r-3265-milhoes-7294-maior-que-em-2022.htm#:~:text=A%20Hemobrás%20 Acesso em 17 OUT 24
Infomoney. https://www.infomoney.com.br/politica/com-rombo-de-r-72-bilhoes-em-2024-estatais-acumulam-pior-deficit-em-22-anos/ Acesso em 18 OUT 24
Foto de capa: Kevin Schneider / Pixabay