As queimadas são um problema mais-que-humano

Publicado originalmente em Jornal da UFRGS. Para acessar, clique aqui.

Artigo | O historiador Leandro Ferreira Souza aborda os eventos decorrentes do fogo na Amazônia a partir de uma crítica ao antropocentrismo

*Por Leandro Ferreira Souza
*Ilustração: Erika Nunes/ Programa de Extensão Histórias e Práticas Artísticas, DAV-IA/UFRGS

Os meses de agosto e setembro de 2024 ficarão registrados por fogo e fumaça na história brasileira. São as consequências das queimadas na região amazônica, que emitiram, somente em setembro, 65 milhões de toneladas de carbono na atmosfera – muito acima dos 31 milhões entre junho e agosto. Embora sejam eventos comuns em determinadas épocas do ano, principalmente aquelas de seca e calor, quando a origem das chamas pode ser natural, as investigações e prisões de suspeitos realizadas são indícios de que tais focos podem ter sido iniciados propositalmente pela ação humana. Nesse sentido, pesquisas indicam que mais de 80% dos focos de incêndio florestais no mundo são originados por ações humanas, e estes são mais prejudiciais ao ambiente que os de origem natural.

Com um aumento de 132% e uma área atingida 38% maior em comparação ao mesmo período do ano passado, as queimadas na Amazônia geraram uma massa de fumaça que atingiu o sul e o sudeste do Brasil rapidamente – e em um volume jamais visto –, bem como, inclusive, o sul do continente africano e parte da Argentina. Além de poluentes, essas fumaças são compostas por partículas finas e tóxicas cujos efeitos à saúde humana são alarmantes, podendo causar problemas pulmonares e cardiorrespiratórios. 

Essas queimadas, que ingressam no hall de grandes catástrofes climáticas que estão acontecendo no Brasil nos últimos meses, se sobressaem quando comparadas aos mesmos períodos em outros anos. Estão, também, profundamente atreladas às mudanças climáticas e às discussões do Antropoceno, isto é, à Era do impacto humano no Planeta.

Debate-se muito sobre quais são as consequências humanas desses focos de incêndios – cito: perda de safras e insumos, aumento de preço dos produtos para o consumidor final, riscos à saúde, baixa qualidade do ar, etc. –, bem como as responsabilidades políticas e sociais desses ocorridos.

Quando chamados a pensar nos efeitos mais-que-humanos, entretanto, nos preocupamos com as perdas não humanas ainda em uma perspectiva antropocêntrica. Para além das perdas que influenciam diretamente a nossa vida, urge, porém, a necessidade de atentarmos para os reflexos nas camadas indiretas e dissociáveis dos hábitos e costumes humanos.

De certa forma, alguns impactos ficam circunscritos ao espaço mais-que-humano (principalmente aqueles que não afetam o nosso modo de viver tão drasticamente), como é o caso de espécies nativas e selvagens em risco de extinção e biomas destruídos que poderiam voltar a se desenvolver outrora – ou ainda que, na lógica produtivista e falaciosa do neoliberalismo, voltarão a crescer, florescer e fluir, o que nem sempre acontece ou que acontece após um período muito extenso.

Recentemente, um vídeo circulou nas redes sociais mostrando um paredão de 150 metros de altura em chamas, em Chapada dos Guimarães/MT; no vídeo, em meio aos focos de fogo e fumaça, chama a atenção espécies de araras que sobrevoam e fogem do local enquanto “gritam”. Em outro relato, um macaco-de-cheiro foi reanimado por bombeiros após sofrer um choque e uma parada cardiorrespiratória enquanto fugia de um incêndio, em Manaus/AM. Há, ainda, as inúmeras fotos e vídeos que mostram restos de troncos de árvore e vegetação carbonizados ou marcados por queimaduras.

Não é novidade que os biomas em chamas ameaçam diversas espécies, como as araras-azuis, macacos e bugios, assim como as paisagens e a ecologia desses espaços, o que mostra que, além de uma ameaça à saúde humana, o problema das queimadas é, também, mais-que-humano. 

Em incêndios de grandes proporções e alta intensidade, entre os resultados diretos e os indiretos, de curto e longo prazos, estão efeitos que poderão ser sentidos por muitas gerações desses ecossistemas, como o ar, as florestas e os rios prejudicados e danificados. Isso resultará em uma perda da diversidade, fuga de espécies de seus habitats e grande influência nas vidas não humanas desses espaços. Seres participantes e dependentes de um ciclo planetário, nós, entretanto, não estamos alheios a esses efeitos.

Enquanto para os humanos e, principalmente, para a racionalidade capitalista, essas vidas são compreendidas como produtos e como mão de obra substituível, o profundo desequilíbrio antropogênico dessas áreas ameaça o futuro do planeta e da existência humana.

Os/As cientistas naturais nos dizem que, na natureza, todas as vidas têm um papel, equilibrando o funcionamento da cadeia que mantém a biosfera viva, como um “efeito dominó”. Dentro do equilíbrio natural, nós podemos, ao negligenciar a existência mais-que-humana, ser a peça que derruba todas as subsequentes. Os empreendimentos humanos vinculados ao modo de produção capitalista não podem ser confundidos com um egoísmo antropocêntrico e vaidoso. A negação da dependência humana de outros ecossistemas faz parte tão somente da produção cultural que enxerga o Homo sapiens como biologicamente superior a todos os outros seres mais-que-humanos.

Como diz o líder indígena Ailton Krenak em “O amanhã não está à venda”, precisamos abandonar o antropocentrismo ao passo que há outras vidas além das humanas sendo destruídas por nossas ações. É necessário construir uma crítica contundente ao excepcionalismo humano para perceber os incêndios na Amazônia e tantos outros desastres naturais como problemas humanos com decorrências essencialmente mais-que-humanas.


Leandro Ferreira Souza é historiador e mestrando do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, membro do Laboratório de estudos sobre os Usos Políticos do Passado (LUPPA/UFRGS). 

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