Vigilância e violência: quando o uniforme se torna protagonista

Publicado originalmente em Jornal da UFRGS. Para acessar, clique aqui.

Artigo | Giordana Battilana, bacharela em Ciências Jurídicas e Sociais, discute a implementação de câmeras corporais nos uniformes da Brigada Militar e aponta que, embora a solução possa frear abusos, são necessárias reformas mais profundas na cultura institucional e nas práticas policiais

*Por Giordana Battilana
*Ilustração:  Dantara Stamado Ordovás/ Programa de Extensão Histórias e Práticas Artísticas, DAV-IA/UFRGS

Após cerca de dois anos desde o lançamento do edital de contratação do serviço e a implementação do projeto, em 2024 o Rio Grande do Sul atingiu um marco significativo na segurança pública: a implementação das câmeras corporais nos uniformes da Brigada Militar. A medida, amplamente aguardada, traz consigo expectativas e questionamentos. Seria esta a solução definitiva para a violência policial ou apenas mais uma peça tecnológica numa engrenagem complexa? 

Historicamente, a violência policial no Rio Grande do Sul sempre encontrou espaço nas páginas dos jornais. Com mortes decorrentes de intervenções policiais e relatos de abusos, o cenário é problemático. A questão da responsabilidade, no entanto, acaba sendo muitas vezes nebulosa, conforme dados expostos pelo Núcleo de Direitos Humanos (NUDDH) da Defensoria do Estado do Rio Grande do Sul, 

Segundo o 3.º Boletim Especial da Violência Policial, publicado em 2023 pelo NUDDH, os dados coletados pelo Núcleo apontam 1.293 casos. “A partir disso, foram instaurados 218 expedientes administrativos para acompanhamento da apuração dos fatos e providências. Dos 185 casos que envolviam policiais militares, a Brigada Militar tem 63 expedientes ainda em apuração, bem como arquivou 102 casos por entender a ausência de indícios de crime militar ou transgressão disciplinar. Em quatro casos, foi constatada a presença de indícios de crime militar ou transgressão disciplinar, e em 10 casos não houve resposta aos ofícios enviados pela Defensoria Pública”, aponta o documento.

Nesses julgamentos, a culpa tem se tornado uma entidade abstrata, na maioria das vezes sem penalizações. Flutua entre o erro do policial e a resistência do civil. Com a incorporação das câmeras, surge a expectativa de que esse problema seja, finalmente, resolvido ou amenizado.

Alguns acreditam que a medida irá de fato resolver o problema crônico da violência e letalidade policial; outros argumentam que as gravações irão tolher a liberdade. O ponto de discórdia, aqui, é a eficácia das câmeras como ferramenta de controle. A presença de um cinegrafista silencioso no uniforme do policial mudará o comportamento de quem, há tanto tempo, trabalha com a expectativa de que seu poder jamais seja questionado? Em princípio, a vigilância constante parece funcionar como um freio moral, amenizando a resistência de civis à atuação policial e incentivando o respeito aos direitos individuais em abordagens e ações vindas da Brigada Militar. 

Entretanto, não podemos nos enganar: as câmeras corporais não são uma solução mágica para um problema estrutural. O histórico de violência policial no Brasil, e particularmente no Rio Grande do Sul, tem raízes profundas. Como mencionado, os dados revelam que no primeiro semestre de 2021 foram registrados mais de mil processos envolvendo agressões físicas e abusos de autoridade praticados pela corporação da Brigada Militar. As estatísticas são alarmantes e indicam que há muito o que ser feito além da simples introdução de uma tecnologia de monitoramento. 

Em São Paulo, onde as câmeras corporais já fazem parte da rotina policial há algum tempo, os dados indicam a diminuição no uso da força e a queda nas denúncias de abusos, assim como indicam a tendência nacional dos estados cujo uso das câmeras já foi implementado. No entanto, ainda não se pode afirmar que o problema da violência policial esteja resolvido.

A questão central é que a tecnologia, por mais útil que seja, não substitui o essencial: a reforma na formação, na cultura institucional e nas práticas de policiamento. 

A analogia com um filme não é gratuita: a câmera, por natureza, imortaliza cada ação. Assim, a partir de agora, cada abordagem será gravada, cada palavra será ouvida e cada gesto será analisado. Não há mais a privacidade do passado, em que o policial contava apenas com seus próprios instintos e o treinamento como guias. Agora ele tem um público invisível, pronto para assistir e julgar seus atos. 

A esperança é que essa nova fase transforme o policiamento ostensivo no estado, trazendo mais confiança à população e, com isso, melhorando as relações entre polícia e sociedade. As câmeras, por si só, não são capazes de resolver um problema complexo. São, no entanto, um passo importante em direção a uma maior transparência e controle. E se servirem para que policiais e cidadãos ajam com um pouco mais de cuidado, já terão cumprido parte de sua missão. O resto, como sempre, dependerá do esforço coletivo entre corporação e sociedade civil por um futuro de respeito íntegro e mútuo.


Giordana Battilana é bacharela em Ciências Jurídicas e Sociais pela UFRGS e pós-graduanda em Direito Penal e Direito Processual Penal. Seu trabalho de conclusão de curso na graduação, intitulado “Tem sempre alguém de olho no vigia: o uso das câmeras corporais enquanto política de enfrentamento à violência policial na Brigada Militar”, foi orientado por Ana Paula Motta Costa.

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