Neuroantropologia: unindo biologia e cultura

Publicado originalmente em Jornal da UFRGS. Para acessar, clique aqui.

Artigo | Luís Eduardo Magro de Queiroz observa que a interação entre neurociência e antropologia aprofunda o entendimento teórico e tem implicações práticas na saúde mental, na educação e no desenvolvimento humano

*Por: Luís Eduardo Magro de Queiroz
*Ilustração: Thaís Marques Fernandes/ Programa de Extensão Histórias e Práticas Artísticas, DAV-IA/UFRGS

Nos últimos anos, a interação entre neurociência e antropologia tem expandido nossa compreensão da mente e do conhecimento. Vários estudos em neuroantropologia têm demonstrado que o cérebro humano é moldado por práticas culturais e, ao mesmo tempo, influencia essas práticas. Daniel H. Lende e Greg Downey, no livro The Encultured Brain: An Introduction to Neuroanthropology (2012), explicam como atividades culturais como música ou linguagem podem levar a mudanças significativas no cérebro, demonstrando adaptação biológica a estímulos culturais.

A neuroantropologia revela como elementos culturais podem influenciar a estrutura e a função cerebral. Práticas culturais específicas podem moldar a forma como percebemos o mundo e interagimos com ele. Richard J. Davidson e Antoine Lutz, em seu estudo Long-term meditators self-induce high-amplitude gamma synchrony during mental practice (2004), mostram que a prática constante de meditação, comum em algumas culturas orientais, está associada a mudanças estruturais no cérebro que afetam a atenção e a regulação emocional. Esses exemplos ilustram como as práticas culturais podem ter impactos biológicos profundos, confirmando a interdependência entre cérebro e cultura.

Casos emblemáticos na neurociência, como os de Phineas Gage e do paciente H.M., demonstram a interdependência entre estruturas cerebrais e funções mentais como personalidade e memória. Gage, que sofreu uma lesão no lobo frontal, teve sua personalidade drasticamente alterada, enquanto H.M., após a remoção de partes de seu cérebro para tratar epilepsia, perdeu a capacidade de formar novas memórias. Esses exemplos, amplamente conhecidos na literatura científica, ilustram como danos cerebrais podem alterar comportamentos e a identidade pessoal, sustentando a visão de que a mente é um produto das atividades cerebrais.

A neurociência tem demonstrado que a nossa percepção do mundo é mediada por estruturas cognitivas; não podemos acessar a realidade em si diretamente, mas apenas através de nossas percepções, moldadas pelo cérebro, de forma muito similar ao que propôs o filósofo alemão Immanuel Kant, em seu livro A Crítica da Razão Pura. Estudos sobre a plasticidade cerebral, como os de Juan F. Domínguez Duque e colegas em Neuroanthropology: A Humanistic Science for the Study of the Culture–Brain Nexus (2010), demonstram que nossas experiências remodelam continuamente o cérebro, corroborando a ideia de que nossa compreensão do mundo é uma construção interna em resposta ao ambiente sociocultural em que estamos imersos.

Além da meditação, outras atividades culturais, como a dança e a música, não só promovem a coesão social, mas também influenciam o desenvolvimento de habilidades motoras e cognitivas, demonstrando a profunda interconexão entre cultura e biologia.

No livro The Arts and the Brain: Plasticity, Embodiment, and the Unifying Creative Process, Michael H. Thaut e Gerald C. McIntosh discutem como a prática musical regular pode levar a mudanças na estrutura e na função cerebral. Eles destacam que a música pode reforçar redes neurais e capacidades cognitivas, moldando áreas do cérebro associadas à empatia e ao pensamento crítico. Essas práticas culturais são essenciais para a convivência em sociedades complexas, evidenciando como elementos culturais específicos podem impactar profundamente a neuroplasticidade e o desenvolvimento cerebral.

A perspectiva integrativa da neuroantropologia também pode ampliar nosso entendimento sobre a educação e o desenvolvimento humano. A compreensão de que o aprendizado não é apenas um processo individual, mas também cultural, pode levar a estratégias educacionais que valorizem a diversidade cultural e promovam um ambiente de aprendizado mais inclusivo.

As descobertas da neuroantropologia sobre como o cérebro aprende e se adapta podem informar práticas pedagógicas que reconhecem a importância do contexto cultural no desenvolvimento cognitivo e emocional dos estudantes. Esse entendimento dialoga com as teorias de Lev Vygotsky, que descreveu o papel fundamental do contexto sociocultural no desenvolvimento cognitivo. Vygotsky defendeu que o aprendizado é mediado por interações sociais e ferramentas culturais, conceitos que a neuroantropologia reforça ao demonstrar como essas interações e práticas culturais influenciam a estrutura e a função cerebral, promovendo uma abordagem educacional que integra a biologia do cérebro com a riqueza do ambiente cultural.

O diálogo entre neurociência e antropologia, portanto, não só aprofunda nosso entendimento teórico, mas também tem implicações práticas. Ao integrar essas perspectivas, podemos abordar de maneira mais completa e eficaz os desafios complexos que enfrentamos, desde a saúde mental e a educação até o desenvolvimento humano em geral. Essa colaboração interdisciplinar promove um conhecimento holístico e mais aprofundado, capaz de mais bem capturar a riqueza da experiência humana e orientar o desenvolvimento de uma sociedade mais informada e compassiva.

Explorando a interdependência entre cérebro e cultura, as descobertas da neuroantropologia reforçam a necessidade de uma abordagem multidisciplinar para compreender a complexidade dos fenômenos humanos. Essa integração amplia a compreensão sobre os limites e as possibilidades do conhecimento humano. Ao alinhar neurociência e antropologia, avançamos para uma ciência mais unificada e abrangente, capaz de descrever melhor a totalidade da experiência humana e natural. Essa abordagem holística enriquece nosso entendimento da mente e do comportamento humano, promovendo uma visão mais coesa e integrada do conhecimento científico, refletindo a complexidade e a interconectividade do mundo em que vivemos.


Luís Eduardo Magro de Queiroz é mestrando do Programa de Pós-graduação em Neurociências da UFRGS.

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