Publicado originalmente em Jornal da UFRGS. Para acessar, clique aqui.
Sociobiodiversidade | Iniciativas e movimentos buscam auxiliar na construção de um sistema alimentar que respeite diferentes culturas e modos de vida e promova acesso a uma alimentação mais saudável e sustentável
*Foto: Slow Food Brasil
A relação das pessoas com os alimentos vai além do simples ato de comer: ela reflete um complexo sistema de interações sociais, culturais, econômicas e ambientais. Em um mundo onde a produção de alimentos processados se tornou a norma, a desconexão entre o consumidor e a origem dos alimentos se intensifica, trazendo à tona questões cruciais sobre saúde, sustentabilidade e sociobiodiversidade. Especialistas em agronomia, sociologia rural, antropologia alimentar e integrantes do movimento Slow Food Brasil destacam a necessidade de valorizar a biodiversidade local e promover uma alimentação mais consciente e saudável.
Cada refeição que fazemos não é apenas uma questão de nutrição, mas a expressão de valores que podem impactar a sociedade e o planeta. Ao optar por alimentos locais e sustentáveis, podemos estimular a saúde individual, apoiar pequenos agricultores, ajudar a preservar os ecossistemas naturais e evitar a degradação ambiental. Essa perspectiva é amplamente discutida por especialistas e ativistas, que argumentam que a alimentação sustentável deve ser vista como uma forma de resistência e de sobrevivência futura diante da crise climática.
Um dos movimentos que coloca esse assunto em pauta é o Slow Food, criado em 1986, na Itália. Com o lema “Alimento Bom, Limpo e Justo para Todos”, o movimento tem o objetivo de romper com a padronização dos alimentos e promover a valorização da boa comida, o prazer à mesa e um ritmo de vida mais lento, oposto à cultura acelerada, saboreando cada refeição de forma consciente e significativa. A iniciativa ganhou força e, em 1989, tornou-se internacional, contando atualmente com mais de 100 mil membros em cerca de 150 países, incluindo o Brasil.
O Slow Food Brasil atua com foco em questões específicas do cenário nacional. Atualmente, está envolvido na gestão e execução de três projetos no país. Um deles, em parceria com o governo do Ceará, trabalha na educação patrimonial da cultura alimentar com o olhar sobre o território, considerando seus aspectos físicos, de biodiversidade e das pessoas e suas culturas. Esse projeto também inclui a formação em comunicação popular, com o objetivo de promover a autonomia de comunidades indígenas e quilombolas e grupos de jovens agricultores.
A filosofia do movimento Slow Food dialoga com o contexto de cada território. “As comunidades tradicionais, os povos originários, ainda são os agrupamentos que mantêm essas relações em diversos níveis, de uma forma mais próxima entre a lida diária com a agricultura e a natureza, com o jeito de manejar os alimentos”, explica Ligia Meneguello, bióloga e coordenadora de Conteúdos e Programas do Slow Food Brasil.
Atualmente, uma das principais iniciativas da associação junto aos povos originários é vinculada ao Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) na região Norte, a fim de escoar a produção para as escolas. Segundo Ligia, a ideia é construir caminhos para facilitar o acesso burocrático, organizar documentações e fazer treinamentos para que essas comunidades possam acessar políticas governamentais, a fim de oferecer alimentos que elas produzem. É comum que escolas de zonas rurais recebam alimentos enlatados de outros lugares, desalinhados com a cultura local.
“O acesso através do fornecimento da alimentação escolar pela própria comunidade acaba sendo um caminho não só de geração de renda local, mas também de manutenção da cultura, fechando o ciclo em que essa comunidade pode produzir seu alimento e fornecer para escola, e as crianças continuam comendo esse alimento que eles produzem, que suas famílias produzem localmente”
Ligia Meneguello
“Trazer os territórios” é um trabalho de patrimônio alimentar. No Ceará, o movimento compõe o olhar sobre o território com a confluência entre diversos aspectos, como o físico, o biodiverso, as pessoas e suas culturas ali colocadas. O projeto é uma parceria com o governo estadual e também trabalha formação em comunicação popular. “É uma das frentes de educação trazer a comunicação como um caminho importante para autonomia destas comunidades”, acrescenta a coordenadora.
Outra frente de trabalho do Slow Food Brasil são projetos em parceria com o Governo do Estado de São Paulo, como a feira de troca de sementes e mudas tradicionais das comunidades quilombolas do Vale do Ribeira, em colaboração com o Instituto de Solidariedade Para Programas de Alimentação (ISA). Esses projetos visam fortalecer o sistema agrícola tradicional quilombola e promover a autonomia das comunidades. Além disso, o movimento participa da defesa de direitos humanos na alimentação, soberania alimentar e biodiversidade.
“Enquanto movimento, estamos sempre focados nos sistemas alimentares que a gente chama de bom, limpo e justo, ou seja, sustentáveis. O sistema produtivo do jeito que está hoje tem uma importância muito grande para a crise climática que estamos vivendo. Acreditamos que os princípios da agroecologia, de uma agricultura alinhada com as estações e os fluxos ecológicos, respeitando a cultura e o território, têm condições de ser muito produtiva”, afirma Ligia.
Meneguello cita como exemplo a situação que o Rio Grande do Sul enfrentou durante a enchente de maio de 2024, quando as estradas ficaram interditadas e algumas cidades, sem condições de receber alimentos, incluindo Porto Alegre. Segundo ela, é uma situação que poderia ter sido evitada através do consumo da agricultura hiperlocal, sem a dependência dos grandes fornecedores de alimentos; nossa própria educação alimentar poderia ser diferente e menos dependente, ao consumir produtos sazonais, em vez de exigir o fornecimento de tudo ao longo do ano todo.
“São as comunidades que sabem manejar a terra e praticam uma agricultura que não precisa de muitos insumos, alinhada com os fluxos naturais, que vão continuar produzindo comida no mundo. Quando o negócio apertar, não é a agricultura de precisão, esta que põe o cerrado abaixo e precisa de montes de insumos para produzir um pouquinho de soja, não é esse modelo que vai alimentar as pessoas”
Ligia Meneguello
É por isso que a “educação do gosto” é uma das frentes principais de atuação do movimento no Brasil, muito articulado em torno de oficinas, em geral realizadas em escolas de ensino fundamental ou feiras. Algumas dessas iniciativas resultaram no livro Caracol de Práticas Educativas, um apanhado de oficinas com famílias, crianças e idosos que possibilita visualizar esse lugar de formação sobre como se comportar diante do alimento e o papel de cada pessoa sobre os sistemas alimentares.
O caracol é o símbolo do movimento Slow Food porque representa a resistência contra a velocidade e superficialidade da alimentação moderna. Implica desacelerar e valorizar a comida de maneira consciente e sustentável, resgatando tradições alimentares e o respeito ao que a natureza pode oferecer, em um relacionamento mais profundo e significativo entre refeição e ambiente. “Nunca foi sobre comer devagar, mas sobre o que é a cadeia produtiva, sobre o local de onde vem o alimento, sobre valores culturais e respeito aos processos, sobre o convívio à mesa, o conversar”, destaca.
Para Ligia, esse processo de reflexão está no início, pois o caminho é longo. Ela acredita que, se antes a indústria era sinônimo de modernidade, hoje há mais abertura para as pessoas pensarem a alimentação em termos políticos. “Mas o ponto de virada ainda é conscientizar as pessoas a comprarem alimentos bons ao invés do que está facilmente disponível. Isso ainda é uma grande dificuldade.”
A importância dos pequenos atos
Quem trouxe o Slow Food para a Serra gaúcha foi Ivane Fávero, ex-secretária de Turismo de Garibaldi (RS) e mestre em Turismo pela Universidade de Caxias do Sul (UCS). Criado em 2015, o Convívio Slow Food Primeira Colônia (hoje chamado de Guardiões do Sabor Primeira Colônia Italiana) foi referência tanto para o movimento no Brasil quanto para o internacional com suas atividades educacionais e eventos. Além disso, deu origem a atrações turísticas e gastronômicas na região, como a Via Orgânica e o Garibaldi Gastrô, e também agregou diversos produtores de vinhos da região. O Convívio também resgatou receitas originárias da colonização italiana que haviam se perdido no tempo e produtos que não eram valorizados, como o limão-cravo.
“Temos a tendência de consumir sempre os mesmos alimentos, repetir as mesmas receitas e limitamos o nosso paladar. Essa cultura alimentar levou à dependência de toda a grande indústria do alimento. O resultado é a diminuição da saúde, obesidade, diabetes, etc. Por isso, um dos projetos que fizemos foi a Educação para o Gosto nas escolas, para ensinar as crianças. Se a gente não as educar desde cedo, será muito difícil se libertar depois desse vício de paladar por produtos industrializados. Mas isso passa também por toda uma consciência da sociedade”, afirma a turismóloga.
Quando se fala de um alimento justo, a primeira ideia que ocorre é sobre o valor do produto. Afinal, o alimento orgânico tem o preço maior. Ivane mostra outro ponto de vista: “Depende da perspectiva, porque você vai economizar em saúde ao longo da vida; então, ele acaba sendo barato. A conscientização também leva a trabalhar o zero desperdício, o aproveitamento total do alimento”. Na filosofia do Slow Food, “justiça” leva em consideração toda a cadeia produtiva; a “limpeza”, o fato de ser livre de agrotóxicos e técnicas de cultivo prejudiciais; a “bondade” se refere à preservação da natureza intrínseca do alimento.
Essa escolha (do que é bom, limpo e justo) é um ato civilizatório e político, tal qual se vê nas ações contra outros sistemas de produção e consumo, como o boicote a marcas. “As pessoas se rebelam e protestam quando descobrem que um produto emprega mão de obra infantil ou escrava, mas consomem centenas de outros que têm a mesma lógica. É uma batalha difícil”, aponta Ivane. O Slow Food trabalha também o conceito “Alimento Quilômetro Zero”, que promove a ideia de se consumir quase tudo dentro de um raio de 1 km para evitar a poluição do transporte de alimentos por CO2. Ações que partem da iniciativa micro para o macro, nas palavras da gestora de Turismo.
“No mundo que estamos vivendo, do aquecimento global, podemos contribuir para diminuir a poluição no transporte de alimentos. Se queremos um mundo melhor, podemos começar pelo nosso lugar. Não adianta querer salvar o mundo das guerras mundiais que estão acontecendo. Mas se você comprar toda semana um produto orgânico de pequenos produtores, poderá mudar a vida dessa pessoa ou família que, por sua vez, poderá seguir vivendo na terra, sem precisar vendê-la para condomínios residenciais de luxo que transformam o local e a paisagem. No final, é toda uma cadeia de influências para o bem ou para o mal.”
A força “invisível” das mulheres na agricultura familiar
Em 2023, o Brasil atingiu a posição de maior exportador de alimentos industrializados do planeta, com aumento de 11,4% na quantidade vendida para 190 países, segundo a Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (ABIA). Do total produzido, 73% é consumido internamente e 23%, exportado, principalmente suco de laranja e açúcar.
O acesso aos alimentos, contudo, ainda é um problema neste que é conhecido como o “celeiro do mundo”, apesar de avanços nos últimos anos. Dados do governo federal indicam que o número de pessoas enfrentando insegurança alimentar e nutricional grave no Brasil caiu de 33,1 milhões em 2022 (15,5% da população) para 8,7 milhões em 2023 (4,1%), representando uma redução de 11,4%. Embora a conscientização sobre a importância de uma alimentação saudável e a compra de alimentos nutritivos estejam em ascensão, as transformações de hábitos alimentares envolvem diversos aspectos que levam tempo para se consolidar.
Para a engenheira agrônoma e professora do Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Rural (PGDR) da UFRGS Flávia Charão-Marques, a questão da alimentação traz diversos dilemas e interfaces. “Se a nossa agricultura é capaz de produzir muito, por outro lado há pessoas em insegurança alimentar e nutricional, além da epidemia de obesidade. Hoje, há a ampliação de certos mercados que exigem produtos sem resíduos de agrotóxicos e em condições que mantêm a sua qualidade. Algumas pessoas, porém, vão comer saudável, enquanto outras vão comer o que sobrar”, reflete.
O tema da alimentação abarca também assuntos de sociobiodiversidade e antropologia, envolvendo territorialidade e cultura, como a produção de quilombolas, passando ainda por estudos de gênero dentro do contexto rural.
O PGDR, por exemplo, trabalhou com comunidades quilombolas em Goiás e no Pará em 2023, além de uma horta comunitária no Quilombo dos Alpes, que fica em área urbana de Porto Alegre. “Uma das coisas que percebemos é que a produção, quando voltada ao autoconsumo, é muito associada à ação das mulheres tanto em lares urbanos quanto rurais. Elas são responsáveis pelo abastecimento, pelo cuidado da família, da saúde e pelo meio ambiente, com a própria forma de produção”, afirma.
“Fizemos várias pesquisas ao redor de Pelotas e na região do Taquari. Quando chegamos nos lugares para falar sobre comida, em geral ficamos na cozinha e a conversa acaba sendo com as mulheres”
Flávia Charão-Marques
A força do feminino na produção também espelha os desafios da mulher na sociedade, como a sobrecarga de trabalho, comum entre as mulheres rurais: “Elas atuam na produção, nas atividades da casa, em cozinhar, cultivar a sua horta e o seu pomar para autoconsumo, o cultivar. É um trabalho muitas vezes invisível”.
Diversificar e produzir alimentos regionais
Ao longo do tempo, especialmente no século XX, nossos hábitos alimentares mudaram devido à industrialização, urbanização e formação de complexos agroindustriais. A alimentação passou a ser tratada como uma mercadoria, sujeita às dinâmicas do mercado global, como os preços das commodities. Isso resultou em uma diminuição da autonomia nas nossas escolhas alimentares, com opções cada vez mais limitadas. O nível de renda e o acesso a supermercados não melhoram a acessibilidade; tampouco nossa educação alimentar, geralmente aprendida na escola, tem promovido escolhas conscientes: o desejo e o conveniente são mais sedutores.
O Guia Alimentar para a População Brasileira, publicado pelo Ministério da Saúde, afirma que a autonomia para fazer escolhas alimentares saudáveis depende de diversos fatores físicos, econômicos, políticos, culturais e sociais. Viver em áreas com acesso a feiras e mercados que vendem frutas e verduras de qualidade facilita escolhas saudáveis; já a intensa publicidade de alimentos não saudáveis dificulta boas escolhas.
“Nas cidades, as pessoas não necessariamente têm mais acesso à diversidade, a mais um tipo de beterraba, de cenoura ou arroz. Em geral, comemos um ou dois tipos de feijão. Como a nossa alimentação se tornou uma mercadoria, como um produto do capitalismo, é cada vez menos diversificada e saudável. Falta oferta. Não é uma questão só de acesso, mas de alimentos diversificados e de qualidade”, diz Daniela Oliveira, docente do Câmpus Litoral Norte da UFRGS.
Do século XX para cá, a alimentação deixa os lares e as refeições fora de casa se tornam o padrão vigente no ambiente urbano. “O aumento da distância entre o local de moradia e o de trabalho e a profissionalização das mulheres refletiram diretamente na mudança dos hábitos alimentares”, atesta a professora do Câmpus Litoral Norte Jaqueline Haas. “Com a chegada dos fast-food, temos a opção de uma refeição completa em 15 segundos, os produtos são os mesmos em toda a parte, ultraprocessados e baseados em ingredientes baratos, como amidos modificados, açúcares, óleos e gorduras, extremamente atraentes para o paladar e aos olhos pelos realçadores de sabor, corantes, adoçantes”, completa.
Em outras palavras, a partir das necessidades do mercado de trabalho, a alimentação se desenraiza e perde sua conexão com sua base natural. “A procedência geográfica dos alimentos e a cultura alimentar das pessoas deixam de ser importantes. A alimentação torna-se produto de consumo de massa, empregando-se modernas técnicas de marketing. Aliado a tudo, ocorre a modernização nos domicílios, com a larga utilização dos micro-ondas, tornando fácil e cômodo o uso de alimentos congelados”, afirma Jaqueline, que desenvolve estudos na área de sociologia rural.
Assim, as escolhas alimentícias se tornam padronizadas, cercadas pela pouca oferta. Daniela Oliveira cita um exemplo insólito. “A cidade onde moro (Antônio Prado), na Serra Gaúcha, é produtora de pêssego e outras frutas de caroço. Mas às vezes é mais caro comprar pêssego e ameixa aqui do que nos mercados de Porto Alegre”, compara. Isso ocorre porque a produção da região segue direto para venda para outras grandes capitais brasileiras.
“Você tem uma região rica em determinados produtos e, ao mesmo tempo, não há oferta desses mesmos produtos”
Daniela Oliveira
Com a crise climática, a escassez de água e outros fenômenos extremos no planeta, a mudança na alimentação humana será impositiva. Na opinião de Daniela, seremos forçados a voltar a comer aquilo que o ambiente tem condições de oferecer. “Acho difícil a gente continuar comendo alface, porque é uma planta difícil de produzir; precisa de água e tem problema com calor; qualquer umidade apodrece a muda. Também será muito difícil continuar a comer maçãs no Rio Grande do Sul, pois aquelas temperaturas frias para sua agricultura não existem mais”, prevê.
A agrônoma acrescenta que a produção de maçã foi se deslocando para o entorno de Lages (SC), hoje a única localidade que produz a fruta no Brasil. Justamente por isso, o produto encareceu. Ou seja, plantar beterrabas, cenouras e alfaces o ano todo para agradar o gosto do mundo inteiro, modificando os agrossistemas para produzir a qualquer custo, “está fadado ao fim”. No entendimento de Daniela, se as práticas alimentares e de agricultura continuarem como estão, “teremos cada vez mais problemas nos sistemas alimentares e pessoas com fome”.
Outro caso parecido é o do arroz. A impressionante produção dos arrozais da Metade Sul do Rio Grande do Sul, sinônimo de paisagem gaúcha junto com o gado e subsidiada por políticas públicas por cerca de 50 anos, agora praticamente acabou. “Hoje, esses lugares foram drenados e são voltados à produção de soja. Não é à toa que o preço do arroz está tão caro. Muitas das áreas de arroz foram tomadas, como em Osório. Sem dúvida, teremos que repensar essas práticas, focar na necessidade de diversificar e produzir alimentos locais e regionais”, afirma a pesquisadora.
A transformação passa pela educação
Como modificar esse cenário que se entrelaça em diversas camadas da sociedade? No entendimento de Flávia Charão-Marques, a solução passa pela universidade, que pode desempenhar um papel crucial no desenvolvimento de tecnologias adaptativas e na regeneração de ambientes para garantir a produção de alimentos sustentáveis. A agroecologia, aponta, “tem eficácia comprovada em práticas como a economia de água e o uso de bioinsumos para melhorar o solo e a saúde das plantas. Além disso, métodos como a agrofloresta e a agricultura vertical podem ajudar na proteção do solo e na retenção de água”.
No entanto, as transformações requerem mais que avanços tecnológicos e investimentos em educação alimentar, ciência e tecnologia. Também é fundamental apoiar os agricultores que desejem fazer a transição para práticas agroecológicas, garantindo que as ideias se concretizem em ações efetivas. Em outra ponta, envolve a adoção de práticas culinárias e de cultivo mais conscientes.
Essas e outras preocupações levaram à criação do curso de especialização em Gastronomia Cultural pela Faculdade de Ciências Econômicas da UFRGS, em parceria com a Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) e outras instituições. Com o tema “do campo à mesa”, a pós-graduação promove reflexões sobre a interconexão entre gastronomia e agricultura, abordando a relação entre pessoas e alimentos, segurança alimentar e nutricional, sociobiodiversidade, cultura, saúde, bem-estar e desenvolvimento territorial. A iniciativa contempla também a cultura alimentar de populações e povos tradicionais, como os quilombolas.
Professora do departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS, Gabriela Coelho explica que o diferencial dessa especialização é o foco nos alimentos provenientes do ambiente da Mata Atlântica e do Pampa. “A pós-graduação busca formar profissionais com ampla capacidade de atuar sobre as crises atuais por meio da promoção de sistemas alimentares sustentáveis, baseados na promoção da sociobiodiversidade brasileira a partir da gastronomia, do empreendedorismo e da ação social e pública, na promoção do patrimônio alimentar, na conservação da biodiversidade e do direito humano à alimentação adequada”, enumera.
Durante a especialização, os alunos poderão se aprofundar na relação intrínseca entre a diversidade biológica brasileira e culturas que convivem em lugares que, de geração a geração, moldam, manejam paisagens e espécies. A sociobiodiversidade é o carro-chefe do curso, por reconhecer o patrimônio biológico e cultural e a relação entre conhecimentos, práticas, receitas, utensílios e técnicas culinárias. A culinária doméstica, feita em casa todos os dias; as plantas alimentícias não convencionais; o pescado da pesca artesanal e o conceito de sociobiocotidiano preparam o estudante para atuar em relação aos sistemas alimentares sustentáveis.
“Hoje a complementação da saúde vem da indústria farmacêutica. Os desafios passam pela conscientização e valorização da alimentação como um processo de saúde e outras distintas dimensões, como a comensalidade, a regionalidade, o sentimento de pertença e de identidade regional, porque tudo isso vai se perdendo dentro do nosso modo de vida voltado à produtividade”, conclui Gabriela.