As denúncias jornalísticas sobre as big techs e a importância de trabalhar essa pauta de interesse público

Publicado originalmente em ObjETHOS. Para acessar, clique aqui.

Sílvia Meirelles Leite
Professora da UFPEL e pesquisadora do objETHOS

Em junho, a Aos Fatos denunciou a Meta por recolher dados dos usuários para treinar a sua inteligência artificial. A denúncia subsidiou a determinação da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) para que a Meta suspendesse a coleta de dados de publicações de brasileiros para treinar modelos de inteligência artificial. Esse tipo de iniciativa no jornalismo evidencia a importância das organizações jornalísticas investigarem e denunciarem os abusos das big techs. No cenário atual, no qual essas empresas coletam um grande volume de dados sobre as nossas atividades, controlam o que vamos acessar e tentam influenciar como devemos pensar e o que devemos consumir, esse tipo de pauta destaca-se por ser de interesse público. 

Iniciativas que enfocam denúncias sobre big techs têm se destacado no jornalismo independente. Além da Aos Fatos, que  investe em reportagens e análises sobre as atividades dessas empresas, também destaca-se o trabalho da Núcleo Jornalismo, que cobre o impacto das redes sociais e da inteligência artificial na vida das pessoas. O Núcleo denunciou, na semana passada, que o X também ativou a opção de usar dados de usuários para treinar seu modelo de inteligência artificial sem avisar os usuários. Na notícia, o Núcleo orienta os seus leitores como desabilitar esse recurso e impedir o compartilhamento dos dados com a IA da plataforma. Ações irregulares de outras empresas, como TikTok, Amazon, Apple, Google e Telegram, também foram denunciadas por essas organizações jornalísticas. 

No Brasil, as denúncias sobre as big techs são baseadas na Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), em vigor desde setembro de 2020. A LGPD atenta para o tratamento de dados pessoais e tem “o objetivo de proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural”. Entretanto, grande parte da população não conhece os seus direitos sobre os seus dados. Também não consegue dimensionar o quanto está comprometendo sua liberdade e sua privacidade ao clicar no “Concordo” para o aviso sobre “Permitir cookies” ou ao clicar em “Aceito” para os termos de privacidade de plataformas como Instagram, TikTok ou Youtube. Por isso, a atuação jornalística no que concerne aos abusos das big techs é tão importante. Um internauta sem orientação dificilmente realizaria todas as etapas indicadas pela Aos Fatos e pelo Núcleo para impedir que a Meta e o X usem os seus dados para treinar a inteligência artificial.

Mesmo que no Brasil exista uma legislação própria para a proteção dos dados da população, as organizações jornalísticas têm um papel essencial na divulgação dos direitos assegurados por lei e na fiscalização do cumprimento desses diretos. Na queda de braço entre os usuários e as big techs, os usuários geralmente perdem para as empresas, por isso é imprescindível o suporte de instituições preocupadas com a democracia e atentas às violações das grandes empresas de tecnologia. Na semana passada, a Agência Pública divulgou uma reportagem sobre a denúncia do Ministério Público Federal (MPF) acerca da política de privacidade imposta pelo WhatsApp em 2021. A reportagem destaca que o WhatsApp compartilha os dados coletados dos usuários brasileiros com outras empresas do Grupo Meta, como o Instagram e o Facebook. Em 2021, os brasileiros tiveram que aceitar essa regra, caso contrário, não poderiam utilizar o aplicativo. O que aconteceu em 2021 foi coação! Isso foi acentuado por estarmos em um período pandêmico, quando muitas pessoas dependiam do WhatsApp para trabalhar e se comunicar com os seus entes mais próximos. Cenário semelhante ao do Brasil, que multou a Meta por abusos nos termos de privacidade do WhatsApp, também foi observado na Nigéria.

Além da LGPD, outras propostas de leis tem sido debatidas para proteger os usuários brasileiros. Em 2023, quando a sociedade brasileira começou a se organizar para reivindicar a regulação das big techs, a Google contratou o ex-presidente Michel Temer para atuar na Câmara dos Deputados e no Senado Federal como consultor para a PL 2.630, mais conhecida como PL das Fake News. Que fique claro: a Google contratou o Temer para fazer lobby! Nesse período, enquanto a Google publicou com destaque um “editorial” argumentando que a PL poderia piorar a internet, organizações jornalísticas trabalharam para mostrar a necessidade de regular empresas com tanto poder de controle da informação. A PL da Fake News não avançou no congresso.

O mesmo acontece com a PL que visa regulamentar a IA no país. No início de julho, a votação da PL 2.338, que dispõe sobre o uso da inteligência artificial no Brasil, foi adiada mais uma vez , o que foi acompanhado por uma campanha de desinformação sobre a PL e sobre a relevância de regular a IA em ano eleitoral. A pressão das big techs contra a regulação das empresas também pode ser observada em outros países, como o Canadá, onde Facebook e Meta deixaram de publicar conteúdos de sites jornalísticos e a Google deixou de listar esses sites nas buscas dos usuários, conforme destacou a Agência Pública.

Ao pautar as big techs, as organizações jornalísticas precisam ter claro que estão pautando empresas que atualmente detêm um poder difícil de mensurar. Essas empresas sabem o poder de persuasão  que tem e usam seus recursos de seleção e distribuição de informações para a manutenção desse poder. Como o Núcleo Jornalismo denunciou, desde 2019, a Google é investigada pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) por raspagem irregular. Ou seja, a Google explora métodos de automação para puxar informações dos sites jornalísticos na tela da busca e, com essa ação, diminui o tráfico nos sites jornalísticos. A apuração do Cade, que já dura quatro anos, foi prorrogada, mais uma vez, em janeiro de 2024. É preocupante como o exercício do próprio jornalismo depende dessas empresas! É difícil identificar uma organização jornalística desconectada das big techs, que não utilize recursos de SEO para rankeamento no Google ou que não tenha um perfil no Instagram, no X, no TikTok ou no Youtube. Será que o jornalismo precisa investir tanto tempo e esforço para tentar engajar suas pautas e aumentar a audiência nessas plataformas? Essa problematização se apresenta como um dilema jornalístico desse período histórico plataformizado. 

Independente da resposta apresentada pelas organizações jornalísticas para esse dilema, as denúncias sobre os abusos das big techs se configuram como uma pauta importante para a sociedade e que afeta significativamente a vida das pessoas. É uma pauta atual e de interesse público, que precisa ser trazida pelo jornalismo para o debate público. E, quem sabe assim, a regulação das big techs e da inteligência artificial seja tratada pelo poder legislativo com o cuidado e o respeito que a sociedade merece.

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