Conflito de interesses: quando a ética fica em segundo plano, o jornalismo se esvai

Publicado originalmente em ObjETHOS. Para acessar, clique aqui.

Kalianny Bezerra
Pesquisadora do objETHOS e doutoranda no PPGJor/UFSC

Na prática jornalística, as decisões são tomadas não apenas do ponto de vista da técnica, como também da ética. Embora isso pareça evidente e numerosos exemplos positivos de decisões acertadas no plano deontológico validem essa ideia, por que ainda são observados tantos casos de profissionais e organizações jornalísticas cometendo falhas éticas? 

Um exemplo recente ocorreu na semana passada, quando a então jornalista da TV Record, Renata Varandas, vazou partes de uma entrevista que havia realizado com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Trechos descontextualizados da fala do presidente foram divulgados pela corretora de investimentos BGC Liquidez, que recebeu as informações da agência especializada de análise política e financeira Capital Advice, da qual Varandas é sócia.

A entrevista foi ao ar na íntegra na noite da terça-feira (16), no Jornal da Record. No entanto, antes das 13h do mesmo dia, a BGC já havia emitido a seguinte nota: “Em entrevista à Record TV, que será veiculada hoje ao longo dia, o presidente Lula disse que é preciso convencê-lo de que será mesmo preciso cortar entre R$ 15 e 20 bilhões no relatório de 22 de julho. Disse ainda que, se precisar modificar a meta, ele não se opõe”. Após a transmissão completa pela emissora, ficou claro que o trecho foi tirado de contexto e que os valores não foram mencionados pelo presidente, e sim destacados apenas na pergunta feita pela jornalista.

No dia seguinte, a Record divulgou uma nota informando desconhecer a conexão da repórter com a Capital Advice e condenou “qualquer vazamento de informações, principalmente com recorte parcial do que é apurado em entrevistas feitas por nossas equipes”. Na quinta-feira (18), outra nota foi publicada informando que Renata Varandas, que estava na emissora desde 2007 e ocupava o cargo de chefe de redação em Brasília, havia sido desligada da equipe de jornalismo da empresa. Até a publicação deste texto, ela ainda não havia se pronunciado sobre o caso.

O caso ilustra claramente um conflito de interesse: a jornalista usou as informações apuradas durante a entrevista para benefício pessoal. Esse tipo de falta ética pode ocorrer quando interesses ou relacionamentos pessoais interferem nos deveres ou responsabilidades profissionais do jornalista, levando, segundo Marc-François Bernier, professor de jornalismo da Universidade de Ottawa, a ganhos financeiros, defesas ideológicas ou fortalecimento de determinados relacionamentos. 

Mesmo não abordando todos os aspectos e nuances dessa questão, o Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros destaca no capítulo 2, artigo 7º, inciso VI, que os profissionais não podem “realizar cobertura jornalística para o meio de comunicação em que trabalha sobre organizações públicas, privadas ou não-governamentais, da qual seja assessor, empregado, prestador de serviço ou proprietário, nem utilizar o referido veículo para defender os interesses dessas instituições ou de autoridades a elas relacionadas”. Ainda assim, o caso da jornalista não é isolado e tampouco representa o único tipo de conflito de interesses numa organização jornalística. 

De olhos fechados

A demissão de Renata Varandas parece uma medida robusta e necessária, levando em consideração sua conduta antiética e a quebra de confiança com o veículo midiático e seus públicos. Entretanto, é importante também questionar quando as próprias empresas de comunicação parecem negligenciar conflitos de interesses. É fundamental que os profissionais evitem esse tipo de comportamento, mas e quando as próprias emissoras borram tais barreiras éticas?

A própria TV Record parece enviar uma mensagem aos seus profissionais de que conflito de interesses são irrelevantes quando ela própria dilui as barreiras que deveriam existir entre a emissora, partidos políticos e igreja. De propriedade de Edir Macedo, líder da Igreja Universal do Reino de Deus, a empresa amenizou o tom de coberturas jornalísticas críticas ao governo Bolsonaro ou até mesmo ampliou discursos em favor ao ex-presidente, por exemplo. 

Também fica difícil saber quais são os direcionamentos para esse tipo de situação, já que numa busca pelo site da emissora não é possível encontrar princípios editoriais que devem guiar a conduta de seus profissionais. Embora isso não signifique necessariamente que a emissora não tenha diretrizes para a prática dos jornalistas, a ausência de informações acessíveis sobre esses princípios aponta para a necessidade de fortalecer seu comprometimento com padrões éticos sólidos.  

Outro exemplo que ilustra como os interesses financeiros de veículos midiáticos podem se sobrepor aos do público de ter acesso à informação relevante e de qualidade aconteceu em 23 de maio de 2020. O telejornal SBT Brasil, da emissora de radiodifusão SBT, por ordem de Sílvio Santos, teve sua exibição cancelada após reclamações do Governo Federal sobre a cobertura que estava realizando da pandemia de Covid-19. No lugar do telejornal, outro programa foi exibido sem que qualquer explicação fosse dada ao público. O caso foi debatido pela professora Silvia Meirelles, em texto publicado no objETHOS, no qual ela assinala a clara evidência de que a empresa priorizava os benefícios de uma relação próxima com o governo Bolsonaro em detrimento de sua responsabilidade jornalística. 

Regras necessárias

Uma relação de confiança entre organizações de notícias e seus públicos também depende da garantia de que o conteúdo divulgado foi construído a partir de princípios éticos como verdade, independência e pluralidade. Conflitos de interesses podem comprometer essa relação; nesse sentido, o primeiro passo a ser dado para evitar o problema é estar atento, identificar e combater potenciais conflitos. Se ainda assim eles surgirem, seja devido aos proprietários, atividades comerciais que conflitam com o conteúdo editorial, ou com as atividades dos jornalistas, o mínimo que se espera é eles sejam reconhecidos, comunicados e corrigidos. 

Deveria, mas não se trata de uma iniciativa simples. Políticas organizacionais podem ajudar a mitigar comportamentos antiéticos; mas, mesmo com regras bem definidas, outros aspectos precisam acompanhar a atuação jornalística: a honestidade e o compromisso com o público. Esses são dois valores fundamentais para garantir uma prática jornalística ética e reduzir falhas deontológicas.

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