Publicado originalmente em Jornal da UFRGS. Para acessar, clique aqui.
Privacidade | Especialistas alertam que imagens e vídeos de crianças e adolescentes devem ser publicados com cuidado nas redes sociais
*Foto: Antônio Cruz/Agência Brasil
Em junho deste ano, um relatório da Human Rights Watch (HRW) encontrou 170 imagens pessoais de crianças de ao menos 10 estados do Brasil no modelo de linguagem LAION-5B, utilizado para treinar ferramentas de inteligência artificial. O uso das imagens era feito sem o conhecimento ou a autorização das crianças e de suas famílias, e a maioria delas foi publicada por pais, familiares ou pelos próprios menores em redes sociais. O relatório alerta, ainda, que o número encontrado pela HRW pode ser muito inferior à quantidade real de imagens de crianças brasileiras na plataforma.
A descoberta chama atenção para uma situação cada vez mais comum na internet: a exposição de menores de idade por pais ou familiares em perfis de redes sociais. Imagens e memórias que antes ficavam relegadas aos álbuns de família, como a introdução alimentar ou o primeiro dia de aula, hoje são publicadas para uma massa amorfa e muitas vezes anônima de seguidores. Apelidada de “sharenting”, que combina os termos “share” (compartilhar) e “parenting” (cuidado parental), a prática pode apresentar riscos à privacidade e à integridade de crianças e adolescentes, quer os responsáveis tenham dezenas ou milhões de seguidores.
Quais são os possíveis malefícios?
Com o uso cada vez mais frequente e acessível de ferramentas de manipulação de imagens e inteligência artificial, a maior preocupação que permeia o debate sobre o compartilhamento de fotos e vídeos de crianças e adolescentes em redes sociais é a segurança acerca da preservação da imagem dos menores de idade. Para o professor do Instituto de Informática da UFRGS Claudio Jung, na era da exposição virtual, ficar vulnerável à manipulação de imagens pessoais se torna cada vez mais inevitável, e o foco deve ser colocado na punição dos responsáveis. “A única maneira de prevenir é não ter nenhuma foto sua pública, o que é muito difícil”, explica. “A grande questão deve ser a prevenção. As pessoas têm que saber que não se pode manipular imagens dessa forma, ponto final.”
No caso de vídeos, os perigos podem se tornar ainda maiores. A partir de um trecho de áudio da voz de alguém, já é possível simular discursos completos por meio dessas ferramentas. “Se eu tiver acesso a alguns trechos da voz de alguém, eu consigo mapear essa voz, e vai ser muito difícil provar que não foi aquela pessoa que fez ou falou aquilo”, exemplifica Claudio.
A maioria das ferramentas de inteligência artificial, no entanto, especialmente as mais acessíveis e gratuitas, possui recursos que bloqueiam a criação de imagens e vídeos explícitos ou que envolvam práticas criminosas. Mesmo assim, o professor alerta que é preciso manter a cautela. “Vários desses programas têm uma base científica comum, têm repositório na internet que alguma pessoa com conhecimento básico pode treinar um modelo, tirar os filtros e conseguir criar esse tipo de coisa.”
Além disso, existe uma preocupação acerca do direito à privacidade e à integridade de crianças e adolescentes. Mesmo que essa não seja a intenção, o compartilhamento de momentos privados da vida pode causar constrangimento e até mesmo levar ao bullying no ambiente escolar. Segundo a psicóloga e professora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) Laura Quadros, é preciso que haja um discernimento de quais momentos podem e devem ser compartilhados nas redes sociais. “Dependendo do que for postado, quando essa criança for adulta, ela pode ficar conhecida como aquela criança que fez xixi no peniquinho”, explica.
Ela ainda acredita que o “sharenting” pode refletir uma lacuna no conhecimento acerca dos impactos das redes sociais tanto em crianças quanto em adultos. “A gente ainda não tem estudos longitudinais pra saber exatamente os efeitos, mas qualquer lugar de alta exposição sem um critério se torna um lugar perigoso.”
Legislação ainda é pouco específica
A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) define a exigência da autorização dos pais ou responsáveis para o compartilhamento de imagens de crianças menores de 12 anos nas redes sociais. Mesmo assim, a legislação acerca da exposição de menores de idade na internet ainda é incipiente no Brasil. A professora da disciplina de Direito da Criança e do Adolescente da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Josiane Veronese, no entanto, acredita que a Constituição Federal, a LGPD e o Estatuto da Criança e do Adolescente abordam o escopo da situação na falta de leis mais específicas ao ambiente online. “A Constituição fala que nenhuma criança poderá ser submetida a constrangimento e a situações vexatórias”, aponta.
A situação legislativa se agrava quando se trata dos influenciadores mirins: crianças e adolescentes que angariam dezenas de milhares de seguidores em redes sociais, ganhando fama e dinheiro com suas imagens no ambiente online, tudo com autorização e estímulo dos pais. “O influenciador mirim não é muito diferente da questão do trabalho infantil do mundo real”, observa Josiane.
“As consequências disso vão ser crianças que não viveram a sua infância e adolescência”
Josiane Veronese
Para Laura, os efeitos da fama na internet e a transformação das publicações em um trabalho podem ser prejudiciais à saúde mental de crianças e adolescentes. “No momento em que essa criança percebe que o trabalho dela ajuda no sustento da família, surge o medo de decepcionar os pais”, aponta. Com isso, torna-se mais difícil que a criança manifeste seu desejo de parar de ser exposta. “Os riscos e os danos são muito altos.”
Tema atrai atenção nas redes sociais
Desde a descoberta de sua gravidez, a influenciadora Samantha Lucena mudou seu nicho de conteúdo nas redes sociais. Atualmente com mais de 230 mil seguidores somados no TikTok e no Instagram, a criadora de conteúdo deixou de lado os vídeos sobre beleza e maquiagem para se dedicar à criação de conteúdo sobre seu dia a dia como mãe, tema que faz sucesso nas redes sociais. A hashtag #MaternidadeReal conta com mais de 11 milhões de postagens apenas no Instagram – no TikTok, são quase um milhão de vídeos com o termo.
“Acabei atraindo um público mais de maternidade, e acabou que a parte de beleza e maquiagem foi cada vez mais diluindo”, conta. “O meu conteúdo foi se concentrando em maternidade, que é mais ou menos o que acontece quando as mulheres se tornam mães.”
Apesar de publicar vídeos que mostram a imagem da filha, Sophia, de um ano e sete meses, parte do conteúdo de Samantha também aborda a exposição desnecessária e irresponsável de crianças na internet, principalmente para monetização. A influenciadora conta que toma cuidado na seleção dos momentos da filha que compartilha nas redes. “A gente não sabe como vai ser no futuro pra essas crianças crescerem com coisas constrangedoras na internet”, reflete. Outra preocupação para a família é quanto à segurança da criança. “Ela ainda não vai pra escola, mas quando for tem que ter o cuidado de não mostrar o uniforme, não postar localização em tempo real nem fotos sem roupa”, exemplifica.
Apesar dos perigos que observa e tenta prevenir, Samantha também destaca o lado positivo do compartilhamento desse tipo de conteúdo. “Existe uma troca de experiências e de dicas que não seria possível sem essa comunidade”, aponta. “Eu ajudo outras mães do mesmo jeito que eu fui ajudada.”
A psicóloga Laura também destaca alguns pontos positivos. “Torna possível compartilhar momentos com pessoas que estão longe, compartilhar momentos de alegria, como uma festa de aniversário”, exemplifica. “Mas sempre lembrando de tomar os cuidados pra não expor a criança ao ridículo.”
Quais cuidados podem ser tomados?
Ao compartilhar imagens de crianças e adolescentes nas redes sociais, é necessário que algumas precauções sejam tomadas para proteger a privacidade e a integridade dos menores de idade. Preferencialmente, as fotos e os vídeos só devem ser visíveis para familiares e amigos próximos. Não incluir informações pessoais e identificáveis, como o nome completo, data de nascimento ou escola, também é importante. Situações que podem ser consideradas vergonhosas, como fotos no banho ou em outros momentos privados, não devem ser compartilhadas. Se possível, também é recomendado que o rosto da criança não seja mostrado nas fotos compartilhadas.