Publicado originalmente em Coletivo Bereia por Magali Cunha. Para acessar, clique aqui.
A notícia de que o ex-deputado e presidente da Câmara Federal Eduardo Cunha (sem partido) participou de culto celebrativo das Assembleias de Deus no Rio de Janeiro e foi vaiado por boa parte dos presentes, viralizou nas redes na noite do último sábado, 29 de junho.
Imagem: reprodução de perfil no Twitter
Imagem: reprodução de perfil no Instagram
Depois de uma gravação do momento ter sido publicada nas mídias sociais, com ampla repercussão, o caso verídico foi amplamente noticiado pela imprensa. Bereia verificou que a notícia foi veiculada por UOL, O Globo , Metrópoles, Terra, Fórum, ICL, entre outros sites de notícias Brasil afora. Mídias religiosas também repercutiram, como o Pleno News.
Imagem: reprodução do site O Globo
O conteúdo do noticiário e as legendas de postagens mídias sociais causaram confusão no público evangélico e no que conhece bem o contexto do segmento, por conta da referência ao evento, realizado no ginásio do Maracanãzinho, no sábado, 29 de junho. As menções se referiam, em geral, a “uma celebração do centenário da Assembleia de Deus no país”, o que foi repetido por boa parte dos veículos da imprensa. Comentários nas redes se repetiram: “ué, centenário da Assembleia de Deus de novo?”
De fato, a maioria dos veículos de imprensa e dos usuários de mídias sociais, que viralizaram o vídeo, errou. O centenário das Assembleias de Deus no Brasil foi celebrado há 13 anos, em 2011, para lembrar o estabelecimento da maior expressão dos pentecostalismos do país, em Belém (Pará), em 1911. O evento do Maracanãzinho, neste 29 de junho, foi uma celebração de uma data regional: os cem anos da chegada dos missionários das Assembleias de Deus ao Estado do Rio de Janeiro, em 1924.
As exceções na cobertura do noticiário foram do UOL e do Metrópoles, que registraram, corretamente, que o evento foi relativo ao “centenário das igrejas da Assembleia de Deus no estado do Rio”.
O evento
Imagem: Divulgação
O ano de 2024 foi incluído no calendário cívico estadual, como o Ano do Centenário das Assembleias de Deus no Estado do Rio de Janeiro, por meio da Lei nº 10.302/2024, aprovada pela Assembleia Legislativa, em 26 de março passado. O Projeto de Lei teve a autoria dos deputados Otoni De Paula Pai, Tia Ju, Rodrigo Bacellar, Fábio Silva, Rosenverg Reis, Samuel Malafaia, Val Ceasa, Dionísio Lins, Andrezinho Ceciliano, Vítor Júnior e Danniel Librelon (vários ligados à denominação evangélica).
O culto de 29 de junho fez parte de uma série de eventos celebrativos no mês que marca o centenário, promovidos por um grupo de convenções da Assembleia de Deus do Estado do Rio de Janeiro. As celebrações incluíram batismos e inauguração da Catedral do Centenário, na cidade de Niterói. O culto do Maracanãzinho foi o encerramento, com o apoio das diferentes convenções nacionais da Igreja.
Imagem: Instagram
Outro erro na imprensa
Bereia verificou ainda que não houve erro apenas ao erro em relação à classificação da data celebrada no culto do Maracanãzinho. Há equívoco, também, na menção à “Igreja Assembleia de Deus”, como uma única denominação evangélica, como se os participantes do culto no famoso ginásio da capital do estado fossem todos vinculados a uma única igreja. O título do evento, como divulgado e aprovado em Lei Estadual, já diz: Centenário das Assembleias de Deus no Estado dod Rio.
As Assembleias de Deus são o guarda-chuva eclesiástico de uma gama de grupos unidos em torno da memória da fundação em Belém, 1911, que lhes é comum, mas separados por diferentes cisões políticas internas que geraram muitas transformações.
De acordo com a estudiosa dos pentecostalismos no Brasil professora doutora Marina Correa, há “múltiplas ASSEMBLEIAS de Deus (no plural), diversos ministérios, mega templos independentes, pastores presidentes, convenções nacionais e centenas de convenções estaduais. A estrutura eclesiástica envolve estatutos internos, assembleias ordinárias e extraordinárias, eleições, representando uma organização intrincada com hierarquia, poder, cisões, sucessões e uma significativa dinâmica política, tanto interna quanto externa”.
As muitas “convenções” e os distintos “ministérios” que carregam o nome “Assembleia de Deus” representam uma dinâmica religiosa que exige uma atenta compreensão. Marina Correa explica, em um didático Glossário sobre temas religiosos no espaço público, editado pelo Instituto de Estudos da Religião (ISER):
A dinâmica de múltiplos ministérios independentes, os que não estão ligados a nenhuma convenção, reflete as complexidades das relações e tensões internas, evidenciando como a busca pela unidade pode, paradoxalmente, gerar maior fragmentação e diversidade no cenário religioso.
Dentro do contexto das ADs, essas igrejas e ministérios participam ativamente do processo de interação por meio de suas redes de igrejas, seguindo uma estrutura interna própria. Essa estrutura é dominante e elitizada por seus organizadores, que compartilham ideias, organizam o trabalho entre seus subordinados e regulam essas atividades. Nesse cenário, observamos uma adaptação constante aos discursos, exemplificados pelos diversos pastores presidentes. Por exemplo, o pastor Silas Malafaia [do Ministério Vitória em Cristo] segue uma abordagem política, Samuel Ferreira da AD Brás mantém um viés semelhante ao de Malafaia, enquanto o pastor-presidente das ADs (AM) foca principalmente no discurso pastoral. Essa diversidade de abordagens contribui para a complexidade e dinâmica das ADs.
No evento do Maracanãzinho, deste 29 de junho, estavam representadas as três convenções nacionais das Assembleias de Deus, a Convenção Geral (CGADB, ligada ao chamado Ministério da Missão (Belém), a de Madureira (CONAMAD, nascida no Rio, resultante da primeira grande cisão nacional) e a Nacional (CADB), recentemente formada, depois de conflitos políticos internos.
Marina Correa explica: “todos [os ministérios] têm convenções estaduais/nacionais distintas, mas com a mesma sigla AD, coexistem atualmente com uma variedade de ministérios independentes também AD. Cada um desses ministérios opera com seu próprio estatuto e administração, conduzindo suas próprias convenções tanto em âmbito nacional quanto estadual”.
O caso Eduardo Cunha
Não foi a primeira vez, em que Eduardo Cunha recebeu vaias em eventos, tanto quando ainda era o presidente da Câmara Federal quanto depois de ter perdido os espaços políticos de poder que conquistou.
Imagem: Site revista Exame, 5 mai 2016
O ex-deputado do PMDB (hoje MDB), membro do Ministério Assembleia de Deus Madureira no Rio, após uma passagem pela Igreja Sara a Nossa Terra), tem um histórico controverso. Depois de alcançar o poder máximo da Câmara Federal, a Presidência, em 2015, e de articular o impeachment da presidente da República Dilma Rousseff, em 2016, ele foi cassado, naquele ano, sob acusações de corrupção. Preso preventivamente, foi condenado, um ano depois, em 2017, tendo cumprido prisão domiciliar. O processo que o condenou foi anulado pelo Supremo Tribunal Federal, em 2023, que aceitou o argumento da defesa sobre erro de condução – havia sido julgado na esfera eleitoral e não federal.
Eduardo Cunha candidatou-se a deputado federal nas últimas eleições, em 2022, pelo PTB, por meio de articulações com o então presidente do partido Roberto Jefferson. Não alcançou votos suficientes mas conseguiu a eleição da filha Danielle Cunha (União-RJ), como deputada federal. Por meio dela, o ex-deputado passou a circular novamente pela Câmara Federal e, segundo avaliações de políticos da Casa, voltar a exercer influência.
Eduardo Cunha anunciou que será candidato novamente, em 2026, por uma vaga na Câmara. Como o culto do Maracanãzinho teve forte conotação política, isto pode explicar o destaque que foi dado ao ex-deputado com a concessão da palavra a ele no palco.
Imagem: extrato da transmissão ao vivo do culto – Youtube TV CPAD
No evento, foi concedida a palavra para candidatos que serão apoiados pela igreja nas eleições municipais, a começar do destacado dirigente do culto, um vereador do PSD da cidade fluminense de Volta Redonda, em busca de reeleição. Além dos discursos de deputados federais vinculados às Assembleias de Deus, entre outros com cargos, o candidato à Prefeitura do Rio de Janeiro, deputado federal Delegado Ramagem (PL) foi chamado ao palco para falar e apresentar a saudação do ex-presidente Jair Bolsonaro, que se expressou por meio de vídeo do telefone celular do parlamentar.
A imprensa que cobriu o evento também não ofereceu informações sobre o porque da presença de Eduardo Cunha no evento do Maracanãzinho. O Metrópoles chegou a afirmar que Cunha havia ajudado a “arrecadar recursos para custear o evento”, mas nenhum deles informou sobre a confessionalidade evangélica do político, nem sobre a vinculação do ex-deputado como membro de um dos ministérios das Assembleias de Deus (Madureira).
***
Bereia identifica erros na cobertura de boa parte do noticiário da imprensa brasileira sobre a vaia a Eduardo Cunha em culto celebrativo do Centenário das Assembleias de Deus no Estado Rio de Janeiro. A maioria dos veículos errou ao informar sobre o evento, no qual ocorreu expressão de vaias ao ex-deputado Eduardo Cunha, realizado no Maracanãzinho, em 29 de junho passado. A maior parte das mídias reproduziu conteúdo viralizado nas mídias digitais e registrou, equivocadamente, que o evento dizia respeito ao Centenário da “Igreja Assembleia de Deus no Brasil”.
Bereia identificou, além dos erros em relação à classificação da data celebrada e da referência a uma única (inexistente) Igreja Assembleia de Deus, a lacuna na informação do significado da presença de Eduardo Cunha e de outros políticos no evento.
É possível avaliar que tal erro seja resultante de desconhecimento do contexto evangélico por parte de jornalistas ao lado da prática comum de repetição de conteúdos que viralizam nas mídias, sem as devidas checagem e apuração, como apontam pesquisadores do tema.
Referências:
UOL, https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2024/06/30/eduardo-cunha-e-vaiado-durante-culto-da-assembleia-de-deus-no-rio-veja.htm. Acesso em 1 jul 2024
O Globo, https://oglobo.globo.com/politica/noticia/2024/06/30/eduardo-cunha-e-vaiado-em-evento-evangelico-e-rebate-gesto-da-plateia-infiltracao-de-grupos-politicos.ghtml Acesso em 1 jul 2024
Metrópoles, https://www.metropoles.com/colunas/igor-gadelha/eduardo-cunha-vaiado-culto-rio Acesso em 1 jul 2024
Terra, https://www.terra.com.br/noticias/brasil/politica/videos/eduardo-cunha-e-vaiado-durante-culto-no-rj-ex-deputado-fala-em-infiltracao-de-grupos-politicos,4f43ef9900f3f031eb8793158d50feab4vmfseaz.html Acesso em 1 jul 2024
Fórum, https://revistaforum.com.br/politica/2024/7/1/video-eduardo-cunha-alvo-de-vaia-estrondosa-em-evento-da-assembleia-de-deus-no-rio-161377.html Acesso em 1 jul 2024
ICL, https://iclnoticias.com.br/eduardo-cunha-e-vaiado-por-evangelicos/ Acesso em 1 jul 2024
Pleno News, https://pleno.news/brasil/politica-nacional/eduardo-cunha-e-vaiado-em-evento-da-assembleia-de-deus.html Acesso em 1 jul 2024
Religião e Poder (Pentecostalismos, Glossário), https://religiaoepoder.org.br/artigo/pentecostalismos-no-brasil/ Acesso em 1 jul 2024
https://religiaoepoder.org.br/artigo/assembleias-de-deus-suas-convencoes-e-ministerios Acesso em 1 jul 2024
ALERJ, https://leisestaduais.com.br/rj/lei-ordinaria-n-10302-2024-rio-de-janeiro-declara-o-ano-de-2024-como-o-ano-do-centenario-das-assembleias-de-deus-no-estado-do-rio-de-janeiro?origin=instituicao Acesso em 1 jul 2024
Folha de S. Paulo, https://www1.folha.uol.com.br/colunas/painelsa/2024/03/governo-ve-digital-de-eduardo-cunha-em-projeto-de-falencias-e-cogita-barrar-votacao.shtml Acesso em 2 jul 2024
CNN, Eduardo Cunha anunciou que será candidato novamente, em 2026 Acesso em 2 jul 2024
Jornalismo Contemporâneo: figurações, impasses e perspectivas (livro), https://repositorio.ufba.br/bitstream/ri/1586/1/Jornalismo contemporaneo.pdf Acesso em 2 jul 2024
***
Foto de capa: Wikimedia Commons