Publicado originalmente em Coletivo Bereia por Rafaely Camilo, Daniel Reis e Helen Teixeira. Para acessar, clique aqui.
Durante o mês de maio, diversas iniciativas aderem à campanha do “Maio Laranja“, de conscientização e combate ao abuso e à exploração sexual infantil no Brasil. Neste maio de 2024, polêmicas em torno da temática do abuso infantil praticado por líderes religiosos ganharam destaque nas mídias digitais, e provocaram indignação e questionamentos sobre a verdadeira extensão desse problema.
No início do mês, viralizou nas redes o caso do pastor da Igreja Batista da Lagoinha, Lucinho Barreto. Um vídeo gravado durante um culto, com a presença exclusiva de homens, mostra uma fala do pastor, com a afirmação de que ele já deu um beijo na boca da filha criança, quando ela “estava distraída”. Além disso, Barreto disse que a tratou por “mulherão” e “ai se eu te pego” e afirmou: “Quando eu encontrar seu namorado, eu vou falar assim: você é o segundo, eu já beijei”.
Imagem: reprodução/G1
Após a repercussão deste primeiro vídeo com o pastor Lucinho Barreto, um outro, gravado há 11 anos, voltou a circular nas mídias sociais. Nas imagens, o pastor da Igreja Batista da Lagoinha diz que beija a boca do próprio filho para “prevenir que ele queira beijar outros homens”: “Você é gay? Então vai ser gay, sabe com quem? Comigo. Nós dois somos homens, vou beijar sua boca”. Lucinho Barreto afirma, no mesmo vídeo, que o filho não foi posto no mundo “para ser cobaia do capeta”, em referência à possibilidade de o filho ser gay. “Eu e meu filhinho David, de 8 anos, a gente beija na boca até hoje. Esse menino vai querer beijar na boca de quem, se ele já beijou?”
Imagem: reprodução/IstoÉ
Embora esses vídeos tenham gerado grande polêmica e comentários de revolta nas mídias digitais, chamam a atenção as risadas do público no local da gravação, que parece reagir normal e positivamente a essas falas do pastor. Tais posturas apontam para dois problemas graves: a falta de segurança das crianças dentro das próprias famílias, e a normalização de uma cultura de abuso dentro de ambientes religiosos.
Casos de abusos infantis por líderes religiosos não são incomuns. A visibilidade crescente desses casos pode ser atribuída, em parte, ao aumento da conscientização pública e das denúncias, e ao poder das redes sociais em disseminar informações rapidamente. Apenas nos últimos meses, foram noticiados casos da prisão e/ou condenação de pastores que abusaram sexualmente de crianças e adolescentes em Minas Gerais, Amazonas, Mato Grosso, Santa Catarina e Tocantins. Os casos se assemelham em alguns aspectos: esses líderes religiosos se aproveitaram de situações de vulnerabilidade das vítimas e de sua posição de poder religioso.
A partir destas constatações, os questionamentos que orientaram esta checagem do Bereia foram: por que em alguns casos, como esses noticiados, os abusos são entendidos como crimes, e repudiados, e em outros, como do pastor Lucinho Barreto, são normalizados e recebidos pelo público das igrejas até com um tom de humor? Quais mentalidades e práticas os contextos religiosos, neste caso especificamente evangélicos, devem abandonar ou abraçar para que as igrejas sejam e promovam ambientes seguros para as crianças e adolescentes?
Abuso infantil no Brasil: 76,5% dos casos acontecem em casa
O anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022 produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) apresenta dados alarmantes sobre o abuso infantil no país: ao contrário do que expõem algumas obras de ficção, a maioria dos estupros e casos de abuso sexual é cometida por pessoas próximas à família, geralmente no momento em que a mãe não está presente.
De 2020 para 2021, observa-se um aumento no número de registros de estupro, que passou de 14.744 para 14.921. Já no que tange ao estupro de vulnerável, este número sobe de 43.427 para 45.994, sendo que, destes, 35.735, ou seja, 61,3%, foram cometidos contra meninas menores de 13 anos (um total de 35.735 vítimas).
As meninas são maioria nesta estatística, mas os meninos também são vítimas. No primeiro caso, o número de registros aumenta conforme a menina cresce, já no caso dos meninos, o número de registros aumenta até os seis anos (com pico entre quatro e seis) e depois começa um processo de queda.
Quanto à característica de quem comete este tipo de crime, continua a mesma: homem (95,4%) e conhecido da vítima (82,5%), sendo que 40,8% eram pais ou padrastos; 37,2% irmãos, primos ou outro parente; 8,7% avós. e 76,5% dos estupros acontecem dentro de casa.
Esses dados revelam que pais e padrastos constituem uma parte significativa dos abusadores e indicam que a própria família é, sim, um ambiente em que essas violências ocorrem.
Além disso, embora não haja dados específicos de pesquisa sobre os abusos ocorridos dentro de igrejas, em contextos eclesiásticos ou por pessoas de autoridade religiosa, é importante destacar a informação de que, na maior parte dos casos, o abusador é um conhecido da vítima e que frequenta sua casa. Quando se trata de pastores ou líderes religiosos, muitas famílias tendem a baixar a guarda devido ao lastro de confiança depositado nas figuras que se apresentam como mensageiros de Deus e do sagrado. Entretanto, muitos abusadores se aproveitam justamente dessa confiança para realizar os crimes.
O sentimento de posse e o poder religioso
O abuso infantil é um tema de extrema gravidade, e quando os envolvidos são líderes religiosos, ganha uma dimensão ainda mais desafiadora. A confiança depositada em figuras religiosas torna esses casos particularmente chocantes e prejudiciais, pois afetam não apenas as vítimas diretas, mas também a comunidade religiosa como um todo.
A teóloga e pedagoga Valéria Vilhena, fundadora da iniciativa Evangélicas pela Igualdade de Gênero (EIG), ouvida por Bereia, destaca que os espaços religiosos são alguns dos principais perpetuadores de lógicas que facilitam esse tipo de abuso. Para a pesquisadora, a representação masculina, poderosa, hierárquica de Deus, presente no Cristianismo, contribui para a percepção de autoridade irrestrita e inquestionável dos homens e para o silenciamento das vítimas.
De acordo com Valéria Vilhena, “o maior problema das meninas e das mulheres são as violências, e essas violências são perpetradas também pelos homens religiosos, que se dizem de Deus, e perpetuadas por uma interpretação teológica em que se mantém uma hierarquização e desigualdade baseada no sexismo, tendo esse tipo de Deus [autoritário] no topo”.
Ainda segundo a teóloga, “no patriarcado misógino que se sustenta também nas igrejas, os homens se sentem com poder de dono perante as mulheres. Esse poder adquire novas camadas quando o homem em questão, além de líder religioso, também é o pai das vítimas”.
Bereia ouviu também a professora e pesquisadora em Ciências da Religião Sandra Duarte, sobre o caso do pastor Lucinho Barreto. Ela questiona: “Não seria importante perguntar sobre a relação direta entre paternidade e sentimento de posse? Isso é uma questão de gênero”, isto é, independe de ele ser um pastor.
Porém, para a pesquisadora, que atua principalmente com os temas relacionados à Sociologia, Religião, Gênero e Política, também é importante perguntar sobre a relação de dominação que se institui a partir da percepção do líder religioso como porta-voz do sagrado. Também questiona como ele se utiliza disso para abusar de suas vítimas, inclusive utilizando-se de argumentos religiosos para legitimar essa prática. Quando é líder religioso e pai, as condições legitimadoras são ainda mais fortes, o que muitas vezes impede que a criança perceba que está sendo vítima de abuso.
Um dos efeitos decorrentes dessas práticas é o silêncio sobre o abuso sofrido. De acordo com Sandra Duarte, muitas pessoas se dão conta de que foram abusadas na infância somente quando já adultas. Parecia “normal” o pai/pastor fazer o que fazia, afinal, ele é pai e pastor, duas condições que, culturalmente, aprendemos a respeitar como propiciadoras de cuidado e proteção.
Mesmo em situações em que a vítima reconhece a violência sofrida e faz alguma denúncia, ela pode enfrentar silenciamento e até culpabilização.
Culpabilização da vítima
Outro caso que viralizou e gerou polêmica neste mês de maio foi o do pastor da igreja Tabernáculo da Fé, de Goiânia (GO), Jonas Felício Pimentel. Em um vídeo que circulou nas mídias digitais, o líder religioso afirmou que, em algumas situações, a criança também é culpada e tem participação nos abusos cometidos contra ela, porque “deu lugar”.
Imagem: reprodução/G1
No contexto religioso, seguindo o senso comum que circula socialmente, é comum a ideia de que as vítimas têm uma parcela de culpa nos crimes de abuso, que provocaram de alguma forma os abusadores, ou ainda que têm a responsabilidade de “consertar” ou “ajudar” aqueles que cometeram esse crime contra elas. Essa lógica é percebida não apenas nos casos de abuso sexual infantil, mas também em casos de violência doméstica, como destaca Valéria Vilhena, em sua pesquisa “Pela voz das mulheres”.
A pesquisadora demonstra que, o contexto religioso, em muitos casos, propaga doutrinas que valorizam as mulheres especificamente por sua capacidade de cuidar e se sacrificar pelos outros. Ela observou, tanto em práticas pastorais quanto em discursos das próprias mulheres, uma tendência de a mulher se perceber com uma parcela de culpa, ou enfatizar apenas o seu próprio sacrifício como algo virtuoso.
Essa responsabilização das vítimas também aparece quando, após uma denúncia de um abuso dentro do contexto da igreja, a liderança da comunidade religiosa prefere acobertar o caso e considera a denúncia pública como um ataque à reputação ou à imagem do abusador. Quando o abusador em questão é algum líder religioso, que de alguma forma representa a instituição, é ainda mais comum que sua liderança tente “resolver internamente”, sem expor o abusador ou envolver o poder público para as devidas consequências.
Essa é uma realidade principalmente em casos de abusos mais “sutis”, que não são caracterizados como estupro, propriamente e, são entendidos na igreja como, no máximo, apenas um deslize ou “pecado” do abusador e não vistos como crime.
A influenciadora e escritora evangélica Fernanda Witwytzky abordou esses casos em uma publicação recente em sua conta no Instagram. O texto alerta:
“Se acontecer com você, alguém próximo, ou com seu filho um caso de abuso sexual, e você for parte de uma IGREJA, o primeiro lugar que você deve ir é a uma DELEGACIA, não ao conselho da igreja. Isto é um CRIME e precisa ser respondido perante os homens. O conselho de uma igreja pode de alguma forma apoiar a família que sofreu o abuso? Pode. Mas você deve ir à DELEGACIA primeiro. Existem igrejas que disciplinam o abusador, afastam ele do ministério e NÃO LEVAM ISSO PARA A POLÍCIA. É como dar aval ao abusador para fazer novamente. Afinal, a igreja está acobertando. Além de MUITO triste, isso é CRIME!” (ênfases da autora).
Essa publicação contou com comentários de diversas seguidoras da influenciadora evangélica que relataram casos pessoais de abusos em igrejas.
Dessa forma, os casos relatados pelo Bereia apontam para a importância do debate acerca do tema abuso infantil. Dentre as múltiplas violências sofridas por crianças e mulheres na sociedade em geral, os espaços religiosos têm sido vistos como um lugar onde a violência, seja de natureza física ou simbólica, está presente.
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Bereia confirma, portanto, ser verdadeira a percepção do aumento no número de casos de abuso de crianças em ambientes religiosos.
Além disso, reforça a importância de denúncias, acolhimento das vítimas e de se criar um ambiente seguro, com estruturas de prevenção para que casos de abuso sexual infantil não aconteçam dentro das igrejas, de suas programações e das famílias que a frequentam.
Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes é crime! Denuncie. Disque 100.
Referências de checagem:
https://maiolaranja.org.br/ Acesso em: 4 JUN 2024
https://g1.globo.com/mg/minas-gerais/noticia/2024/05/08/pastor-e-preso-suspeito-de-estuprar-adolescentes-durante-acolhimento-psicologico-tocava-no-corpo-e-sussurrava-no-ouvido-diz-policia.ghtml Acesso em: 4 JUN 2024
https://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2024/05/16/homens-sao-presos-por-abuso-sexual-de-criancas-em-manaus.ghtml Acesso em: 4 JUN 2024
https://www.pjc.mt.gov.br/-/pastor-%C3%A9-preso-pela-pol%C3%ADcia-civil-em-juara-por-estupro-de-vulner%C3%A1vel%C2%A0 Acesso em: 4 JUN 2024
https://globoplay.globo.com/v/12252393/ Acesso em: 4 JUN 2024
https://www.tjto.jus.br/comunicacao/noticias/pastor-e-condenado-a-9-anos-de-prisao-acusado-de-estuprar-menino-de-12-anos-dentro-da-casa-pastoral Acesso em: 4 JUN 2024
https://www.instagram.com/p/C7XZaOnB2we/?img_index=1 Acesso em: 4 JUN 2024
https://www.fg2010.wwc2017.eventos.dype.com.br/resources/anais/1280156603_ARQUIVO_ValeriaCristinaVilhena.pdf Acesso em: 4 JUN 2024
https://www.terra.com.br/noticias/brasil/pastor-diz-que-criancas-tem-culpa-de-serem-abusadas-e-gera-revolta-na-web-veja-video,f50aa319f147a7f3a14ad31c91e6c8826nao2nc6.html Acesso em: 4 JUN 2024
https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2024/05/02/veja-quem-e-o-pastor-que-diz-que-criancas-abusadas-tambem-sao-culpadas-pelo-crime.ghtml Acesso em: 27 MAI 2024
https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2022/07/14-anuario-2022-violencia-sexual-infantil-os-dados-estao-aqui-para-quem-quiser-ver.pdf Acesso em: 27 MAI 2024
https://www.childhood.org.br/pesquisa-mapear/ Acesso em: 27 MAI 2024
https://www.unodc.org/documents/lpo-brazil//Topics_TIP/Publicacoes/TiP_PT.pdf Acesso em: 27 MAI 2024
https://www.mulhersegura.org/preciso-de-ajuda/ligue-180-central-de-atendimento-a-mulher Acesso em: 27 MAI 2024
https://www.gov.br/pt-br/servicos/denunciar-violacao-de-direitos-humanos Acesso em: 27 MAI 2024
https://www.gov.br/mdh/pt-br/ondh Acesso em: 27 MAI 2024
https://www.facabonito.org/ Acesso em: 27 MAI 2024
https://atendelibras.mdh.gov.br/acesso Acesso em: 27 MAI 2024
https://www.gov.br/mdh/pt-br/campanha/direitoshumanosparatodos/telegram Acesso em: 27 MAI 2024
https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2024/05/06/pastor-que-disse-beijar-filha-ja-afirmou-ter-beijado-a-boca-do-filho.htm Acesso em: 27 MAI 2024https://www.metropoles.com/colunas/fabia-oliveira/video-pastor-lucinho-assume-tambem-ter-beijado-a-boca-do-filho Acesso em: 27 MAI 2024
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Foto de capa: Pixabay