Publicado originalmente em Jornal da UFRGS por Ana Gonzalez. Para acessar, clique aqui.
Direito | Apesar de a legislação trabalhista não prever condutas para casos de eventos climáticos extremos, demissão ou desconto de salário por faltas motivadas pelas cheias podem ser vistos como ilegais
*Foto: Flávio Dutra/JU
As enchentes que afetam ao menos 447 municípios do Rio Grande do Sul já atingiram diretamente mais de 2,1 milhões de pessoas. Além dos 147 mortos, 127 desaparecidos e 806 feridos, as cheias causaram bloqueios de rodovias, desabastecimento de água e quedas de energia elétrica. Em meio às condições extremas, muitos trabalhadores afetados pelas fortes chuvas encontram-se impedidos de realizar suas funções ou até de acessar seus locais de trabalho, e a preocupação com a seguridade de seus empregos se soma a angústias relacionadas às incontáveis perdas materiais e emocionais.
Segundo o professor do Programa de Pós-graduação em Direito da UFRGS Rodrigo Coimbra, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) não prevê condutas específicas para casos de calamidade pública e condições climáticas. Em vez disso, a CLT prevê acomodações por motivos de força maior, que a lei caracteriza como “todo acontecimento inevitável, em relação à vontade do empregador, e para a realização do qual este não concorreu, direta ou indiretamente.”
No entanto, Rodrigo destaca a importância de verificar a existência de Acordo Coletivo de Trabalho (ACT) ou Convenção Coletiva de Trabalho (CCT) que preveem situações causadas por eventos climáticos extremos. Apesar de incomum, também é possível que exista alguma resolução do tipo em contratos individuais de trabalho.
Caso não haja qualquer tipo de acordo, entretanto, para o advogado as faltas comprovadamente causadas pelas enchentes são uma situação excepcional, e é necessário o uso do bom senso por parte de empregadores e empregados.
“O mais razoável é considerar a falta justificada por motivo de força maior, não descontando os dias do salário do empregado”
Rodrigo Coimbra
A juíza do trabalho da Quarta Região e professora de Direito da UFRGS Valdete Severo ressalta, ainda, que a demissão por faltas causadas pelas enchentes pode ser vista como ilegal. “A falta nesse caso é justificada por motivo de conhecimento público”, aponta. “Uma despedida de alguém que mora ou convive com quem mora em área alagada é ato ilícito, porque compromete a possibilidade de sobrevivência do trabalhador.” A docente ainda enfatiza que descontos no salário por conta dessas faltas também não são apropriados. “Isso configuraria retenção dolosa da remuneração, conduta tipificada como crime”, observa.
Outros mecanismos legais
Existem também medidas que podem ser tomadas pelas empresas em situações emergenciais. A lei 14.437/2022, desenvolvida durante a pandemia de covid-19, visa a criação de medidas trabalhistas alternativas para o enfrentamento de consequências sociais e econômicas de estado de calamidade pública, e pode ser aplicada em caso de eventos climáticos extremos. A lei prevê a adoção de medidas trabalhistas alternativas, como o teletrabalho, a antecipação de férias individuais ou concessão de férias coletivas e o uso de banco de horas por até 90 dias e com possibilidade de prorrogação.
A Defesa Civil de Canoas, uma das cidades mais afetadas pelas enchentes com mais de 180 mil habitantes atingidos, passou a disponibilizar, de forma on-line, a emissão de atestados para trabalhadores impedidos de exercer suas funções por conta das cheias. Para Valdete, a exigência desse atestado por empresas, no entanto, é danosa ao estado democrático de direito.
“Trata-se de fato público, a maior catástrofe climática já enfrentada por aqui. Permitir desconto ou despedida numa situação como essa subverte completamente a ordem jurídica”
Valdete Severo
O que o trabalhador pode fazer caso se sinta lesado?
Caso o trabalhador se sinta prejudicado por alguma decisão tomada pelo empregador em decorrência das enchentes, Rodrigo também aponta outros mecanismos legais de amparo. “O empregado pode informar seu sindicato, o Ministério do Trabalho e Emprego ou ajuizar uma ação perante a Justiça do Trabalho”, explica. Além disso, através do Serviço de Assistência Jurídica (SAJU), que conta com grupos temáticos voltados ao direito trabalhista, a UFRGS oferece serviços jurídicos gratuitos para trabalhadores que não podem arcar com advogado.