Publicado originalmente em Coletivo Bereia por Thaila Vitória e Pedro Vasconcellos. Para acessar, clique aqui.
O site Pleno.News publicou, em 2 de maio, matéria sobre a nova resolução do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), que supostamente proibiria o evangelismo nos presídios brasileiros, alegando o veto ao proselitismo religioso, ou seja, a prática de conversão ou persuasão religiosa ou de crença.
A matéria citada destaca que o evangelismo passou a ser proibido dentro das penitenciárias do país e declara que nenhum detento poderá ser obrigado a aderir a determinada linha religiosa como requisito para transferência, admissão ou permanência na cadeia. O texto do site descontextualiza o que afirma o documento oficial de que não se trata de uma resolução do governo Lula (PT), e sim do CNPCP.
Fonte: Reprodução/Pleno.News
Parte dos parlamentares evangélicos no Congresso Nacional reagiu negativamente ao documento e acusou o governo de perseguição religiosa e de afrontar a liberdade das igrejas. O deputado federal Helio Lopes (PL-RJ) reproduziu em seu perfil no X uma imagem remetendo à matéria de Pleno.News. Já o deputado Messias Donato (PP-ES), também no X, publicou texto classificando a Resolução como indício de perseguição religiosa.
Imagem: reprodução do Instagram
Imagem: reprodução do X (Twitter)
O influenciador Guilherme Kilter também repercutiu a resolução como proibição de evangelismo nos presídios por parte do Governo Lula. O site Gospel Prime foi outro veículo que publicou matéria com conteúdo semelhante.
Imagem: reprodução do Instagram
Imagem: reprodução/Gospel Prime
O que diz a nova Resolução
A Resolução nº. 34, de 24 de abril de 2024, citada pela matéria do Pleno.News, e postada nas mídias digitais, estabelece as diretrizes e normas para a assistência religiosa nos estabelecimentos prisionais do país, levando em conta a liberdade religiosa e a laicidade do Estado. Sem caráter de lei, tem como objetivo respeitar a diversidade de crenças e a liberdade de escolha dos detentos, e não indica nenhuma proibição direta ao evangelismo.
O Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) é um órgão colegiado formado por juristas, acadêmicos e representantes da sociedade civil criado em 1980 e com atribuições previstas pelo artigo 64 da Lei de Execução Penal – LEP (Lei nº 7.210, 11 de julho de 1984). Embora ele esteja atrelado ao Ministério da Justiça, a atribuição de responsabilidade pela discussão e eventual publicação de resoluções pelo chefe do Poder Executivo não procede. Isso ocorre porque a composição e a definição legal do Conselho impedem a interferência do governo federal nas decisões, conforme foi determinado desde a sua implantação.
Ainda assim, o Ministério da Justiça emitiu nota esclarecendo que a Resolução nº35 visa a garantir a laicidade do Estado e proteger os direitos dos presos, evitando abusos e manipulações. No entanto, líderes evangélicos alegam que ela dificulta o trabalho de ressocialização e recuperação dos detentos por meio da fé.
Resolução não proíbe evangelização
A Resolução reafirma as cláusulas pétreas da Constituição Federal de 1988, que em seu artigo 5º, inciso VI, dispõe sobre a inviolabilidade da “liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”. O artigo 19, inciso I, também reforça a separação do Estado e da religião. Vale lembrar ainda que a resolução estabelece que os agentes religiosos devem ser credenciados e seguir normas de conduta e segurança.
O documento do CNPCP não proíbe a evangelização nos presídios, e afirma que “será assegurado o direito de professar qualquer religião ou crença, bem como, o exercício da liberdade de consciência aos ateus e agnósticos e adeptos de filosofias não religiosas”. Além disso, “será garantido à pessoa privada de liberdade o direito de mudar de religião, consciência ou filosofia a qualquer tempo, sem prejuízo da sua situação de privação de liberdade”.
É importante reforçar que a Resolução tem o objetivo de garantir todas as práticas religiosas, sem a interferência do Estado, e a autorização para entrada, em estabelecimentos penais, de materiais de cunho religioso para estudo e aperfeiçoamento. De acordo com o documento, a religião não pode ser forçada a ninguém, e nem a participação em cultos deve ser objeto de punição ou benesse. Além disso, oferece a fiéis de outras crenças a garantia do seu direito de culto.
O presidente do CNPCP, Douglas de Melo, destacou que, ao contrário do que está sendo propagado e divulgado, a resolução não representa perseguição religiosa e reitera seu compromisso com a Constituição Federal e com diretrizes internacionais relativas ao tema. “Aliás, pelo contrário, pois ao longo dos debates realizados no processo de construção do documento, o CNPCP sempre se mostrou atento à necessidade de evidenciar a importância das garantias de liberdade de consciência e de crença e de livre exercício, em igualdade de condições, dos cultos religiosos. Nós reprovamos qualquer tipo de comportamento que coloque esse direito em risco”, declarou.
A realidade prisional e das capelanias
Bereia ouviu Samuel Lourenço Filho, egresso do sistema prisional e que se converteu ao Cristianismo durante cumprimento de pena. Hoje formado em Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ele expressou sua incompreensão sobre a alegada perseguição a evangélicos nos presídios. A seu ver, “não há nada na resolução que crie margem para o uso do termo”. Também desconhece “há pelo menos uns 18 anos, alguma medida que aponte para algum traço de perseguição.”.
Sobre o documento do Conselho, Lourenço Filho, esclareceu que se trata simplesmente de uma recomendação. “Se todas as recomendações do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) fossem seguidas à risca, o cenário prisional seria mais humano e menos populoso. Portanto, não se deve interpretar a resolução de forma tão extremada”, destacou, afirmando “foi mal interpretada em sua tentativa de aparar arestas”.
Lourenço Filho afirmou que “quem atua na ponta, na capelania prisional, sabe muito bem que não há perseguição de governo, gestor penitenciário, policial penal, preso ou qualquer outro. A igreja na cadeia é extremamente livre”. Ele enfatizou que não cabe na recomendação a questão do dízimo: “Como dizem por aí, ‘se tem placa, tem história’. Mas eu desconheço qualquer atividade religiosa que subtrai valores da população prisional; ao contrário, ela ajuda e ajuda muito. A igreja é extremamente importante no âmbito da assistência religiosa e material”.
Outro ponto citado foi a importância do papel da igreja no sistema prisional, como “organismo vital no apoio religioso e material”. Ele abordou as críticas sobre o uso do tempo e conversão na prisão, considerando-as desajustes. “Os presos evangélicos organizam-se rapidamente para manter seus espaços de culto e criar um ambiente próprio. É uma questão de respeito mútuo, e a separação por crenças é comum. Se os evangélicos não tivessem seu espaço, a dinâmica prisional, que é complexa, não reconheceria o preso convertido como ‘pastor’. A separação contribui para a conversão, a mudança e a manutenção de uma rotina pacífica”, explicou ao Bereia.
Lourenço Filho reconheceu a prática comum do dízimo entre os próprios detentos, usada para manter e melhorar a vida na prisão. “Já participamos de coletas de dinheiro na cela, em forma de dízimos e ofertas. Isso é parte da nossa dinâmica para conservação e manutenção do ambiente prisional,” explicou. Ele também destaca o uso compartilhado de espaços como capelas ecumênicas. “As igrejas, especialmente as evangélicas, que realizam cultos diários, contribuem com materiais para a construção e manutenção desses locais, que são frequentemente cuidados pelos próprios presos”, explica Lourenço Filho.
Para concluir a entrevista ao Bereia, Lourenço Filho ressalta que a principal questão não é a imposição de crenças, mas a falta de políticas inclusivas para outras atividades religiosas. “Se violões são permitidos nos cultos, por que não atabaques em outras cerimônias? Isso reflete uma falha da administração, não do governo”, argumenta. Para ele, a igreja continua sendo a principal provedora de assistência religiosa nos presídios, um papel frequentemente mal interpretado, visto que a prisão é um espaço público. Ele critica a eficácia da recente recomendação, considerando-a parte de uma controvérsia desnecessária contra o governo. “Quem realmente visita as prisões não se preocupa com essas recomendações e sim com o bem-estar dos detentos”.
Liberdade de culto para todas as religiões
Bereia entrevistou também Erivelto Melchiades da Silva, pesquisador da área de Direitos e Sistema de Justiça, egresso do sistema prisional e defensor dos direitos religiosos. Segundo ele, a liberdade de culto é restrita em sua maioria aos evangélicos, e o que acompanha com sua visão e experiência “é uma ‘certa’ perseguição a outras denominações religiosas, principalmente as de religiões de matriz africana e, se esta resolução for cumprida a risca, favorece a liberdade de culto e crença de quem está privado do seu direito de ir e vir”.
Silva recorda que, durante sua estadia no sistema carcerário, o “proselitismo religioso” em realidade operava de forma agressiva e opressiva contra as outras religiões. As de matriz africana eram as mais combatidas, “demonizando, desrespeitando e oprimindo os adeptos, através dos cultos e trabalhos evangelísticos realizados nas galerias das unidades prisionais, além da não permissão a utilização do templo religioso por parte de outras denominações a não ser as evangélicas”, conclui o pesquisador Erivelto Melchiades da Silva ao Bereia.
Lula e perseguição aos cristãos: antiga estratégia de pânico moral
Desde a redemocratização do país em 1989, circulam especulações de que o PT fecharia igrejas, principalmente evangélicas, ao chegar ao Executivo. Esses rumores acompanharam as candidaturas de Luiz Inácio Lula da Silva (1989, 1994, 1998, 2002, 2006, 2018 e 2022), Dilma Rousseff (2010 e 2014) e Fernando Haddad (2018). Mesmo com Lula (PT) e Dilma (PT) eleitos e reeleitos, esses boatos nunca cessaram, sendo exponencialmente escalonados com o uso político-partidário das mídias digitais.
Na última eleição, circularam de vídeos e publicações fora de contexto que insinuavam perseguição aos evangélicos, destruição das instituições da família tradicional heteronormativa e o fechamento de templos. Isso foi amplamente utilizado para alimentar e monetizar as páginas de opositores, líderes religiosos e empresários nas mídias digitais.
Veículos de imprensa e portais de notícias se tornaram vetores de respaldo e apuração, possibilitando que tais tipos de manipulações dos fatos alcançassem diversos públicos. O caráter apelativo e distorcido da realidade, incitando ódio, rancor e medo, tem sido bem explorado por setores religiosos, especialmente os ligados à extrema-direita brasileira.
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Bereia conclui que a matéria publicada pelo Pleno.News sobre resolução Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) proibindo a evangelização em presídios é enganosa. Ao contrário do que é afirmado pelo site e por políticos evangélicos e influenciadores, a decisão do Conselho não veta a evangelização, apenas reafirma a liberdade religiosa e a diversidade de cultos aos detentos do sistema penitenciário, já garantidas pela Constituição de 1988. Também é incorreto atribuir a Resolução como ato da Presidência da República. O título distorce o conteúdo da matéria e apresenta fatos fora do contexto com o objetivo de causar comoção, se tornar mais atrativo para ser amplamente compartilhado, e confundir o leitor.
Referências de checagem:
BRASIL. Resolução no 34, de 24 de abril de 2024. Estabelece diretrizes para a assistência religiosa no sistema prisional. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2024. Disponível em: https://www.in.gov.br/web/dou/-/resolucao-n-34-de-24-de-abril-de-2024-556521006. Acesso em: 6 maio 2024.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2023]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 7 maio 2024.
BRASIL DE FATO. Lula vai fechar igrejas? Conheça as principais mentiras contra o candidato petista. Brasil de Fato, 1º de outubro de 2022. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2022/10/01/lula-vai-fechar-igrejas-conheca-as-principais-mentiras-contra-o-candidato-petista. Acesso em: 6 maio 2024.
CPAD NEWS. Resolução do governo proíbe conversão religiosa em presídios. CPAD News, [s. l.], 2024. Disponível em: https://www.cpadnews.com.br/resolucao-do-governo-proibe-conversao-religiosa-em-presidios/. Acesso em: 6 maio 2024.
GOV.BR. Resolução de Conselho de política penitenciária garante liberdade religiosa em presídios. Disponível em: https://www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/noticias/resolucao-de-conselho-de-politica-penitenciaria-garante-liberdade-religiosa-em-presidios. Acesso em: 7 maio 2024.
G1. É #FAKE mensagem que diz que Lula declarou que irá fechar igrejas em 2023. Disponível em: https://g1.globo.com/fato-ou-fake/eleicoes/noticia/2022/10/07/e-fake-mensagem-que-diz-que-lula-declarou-que-ira-fechar-igrejas-em-2023.ghtml. Acesso em: 6 maio 2024.
O GLOBO. Bancada evangélica se revolta com resolução do governo Lula que proíbe proselitismo religioso em presídios. Disponível em: https://oglobo.globo.com/politica/noticia/2024/05/04/bancada-evangelica-se-revolta-com-resolucao-do-governo-lula-que-proibe-proselitismo-religioso-em-presidios.ghtml. Acesso em: 10 maio 2024.
POLITIZE. Liberdade religiosa: o que é e como funciona no Brasil. Politize, [s.d.]. Disponível em: https://www.politize.com.br/artigo-quinto/liberdade-religiosa/#:~:text=O%20artigo%205%C2%BA%2C%20em%20seu,culto%20e%20a%20suas%20liturgias. Acesso em: 7 maio 2024.
VEJA. Governo cria regras para liberdade de culto e apoio espiritual em presídio. Veja, [s. l.], 2024. Disponível em: https://veja.abril.com.br/coluna/maquiavel/governo-cria-regras-para-liberdade-de-culto-e-apoio-espiritual-em-presidio. Acesso em: 6 maio 2024.
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Foto de capa: Ron Loach/Pexels