Publicado originalmente em EMERGE/UFF por Akemi Nitahara. Para acessar, clique aqui.
Akemi Nitahara, doutoranda do PPGMC/UFF e integrante do Emerge. Jornalista da EBC
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro 1948, traz um artigo sobre comunicação, embora o termo não apareça de forma explícita: “Artigo 19: Todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão; esse direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras”.
O Artigo 19 é tão importante para o campo da liberdade de expressão e democratização das comunicações que deu nome a uma organização autointitulada de direitos humanos “com a missão de defender e promover o direito à liberdade de expressão e de acesso à informação em todo o mundo”. Ou seja, a comunicação pode ser considerada, sim, um direito humano. E como tal, diante dos grandes conglomerados midiáticos e monopólios discursivos que vivemos, em especial no Brasil, fazer a sociedade como um todo entender que se comunicar, não apenas como receptor de informações, é um direito básico, ainda soa como utopia.
Retomando um pouco a história, o tema foi amplamente discutido no âmbito da própria ONU, por meio da Unesco, na década de 1970, com a ideia da Nova Ordem Mundial da Informação e Comunicação (Nomic), fomentada pelos países não-alinhados na Guerra Fria, em busca de novas estratégias de circulação das informações entre os países do então chamado primeiro mundo e os em desenvolvimento. A discussão foi sintetizada no relatório Um Mundo e Muitas Vozes, resultado da comissão liderada por Sean MacBride para investigar o assunto (Unesco, 1983).
A discussão se contrapunha à doutrina estadunidense do Livre Fluxo da Informação, uma política privada elevada a interesse nacional e internacional, surgida no fim da II Guerra Mundial. A doutrina foi utilizada para o reforço ideológico da chamada liberdade de expressão e de pensamento contra o comunismo e encampada pela mídia hegemônica, sendo concretizada como uma enorme desigualdade dos fluxos comunicacionais, sempre na direção norte-sul global.
Tal fluxo foi questionado pelo Relatório MacBride, que postulou a comunicação como um direito humano de mão dupla. Ou seja, o direito à comunicação não se traduz apenas no direito de receber informação, mas também no de comunicar e se fazer ouvir. Outro ponto importante do relatório é a formação de consciência crítica nas populações, com iniciativas de literacia mediática, para democratizar os processos de comunicação.
Esse debate norteia as tentativas de implementação da comunicação pública na América Latina e, apesar dos resultados restritos desde a publicação, o Relatório MacBride funciona, até hoje, mais de 40 anos depois, como um guia prescritivo para transformar as atitudes em relação à comunicação, nos níveis macro e micro.
Na prática, vemos que, em muitos casos, as desigualdades impossibilitam a participação nos processos comunicacionais por razões econômicas, sociais, culturais, raciais e geográficas. Na comunicação pública, mesmo que longe desse ideal de democratizar o acesso a esses processos, é pressuposto que as vozes diversas estejam ao menos representadas de alguma forma.
A comunicação pública é o modelo de referência midiática em muitos países, tendo funcionado, inclusive, como monopólio em diversos lugares, como a própria BBC, modelo paradigmático de sistema público. Toby Mendel (2011) destaca que a principal justificativa para a existência das emissoras de serviço público é “servir às necessidades e aos interesses de informação do público” (Mendel, 2011, p. vii), sendo um componente vital dos sistemas nacionais de radiodifusão, com potencial de “proporcionar complementação efetiva aos serviços comerciais” e satisfazer “as necessidades de informação e os interesses aos quais o mercado não chega a responder” (Idem, p. 3).
No Brasil, a Empresa Brasil de Comunicação (EBC) foi criada pela Lei 11.652/2008 para cumprir essa função, de ser uma empresa que responda aos interesses da sociedade por conteúdos e cumpra a missão de dar espaço de fala para grupos minoritários e invisibilizados, que têm seu direito humano à informação desrespeitado.
A comunicação pública está prevista no artigo 223 da Constituição Federal de 1988 e levou 30 anos para que o país começasse a pensar na sua implementação. Dessa forma, a TV Brasil, as rádios Nacional e MEC, a Agência Brasil e a Radioagência Nacional são serviços noticiosos, de entretenimento, integração regional e promoção da cultura nacional pagos com o dinheiro dos impostos de todos os brasileiros. Portanto, é à sociedade que a empresa deve responder e atender as necessidades de comunicação.
Isso deveria ocorrer por meio de uma participação social efetiva. Porém, desde 2016 a EBC não conta com um mecanismo institucionalizado no qual a sociedade possa participar das formulações editoriais da empresa, mesmo que por meio de representantes. A lei de 2008 instituiu um Conselho Curador que cumpria esse papel, com 22 integrantes, sendo 15 deles indicados pela sociedade civil, em suas diversidades e abrangência regional obrigatórias.
O colegiado tinha a função de zelar pelo cumprimento dos objetivos da comunicação pública previstos na lei, como a promoção do acesso à informação por meio da pluralidade de fontes de produção e distribuição do conteúdo; a produção e programação com finalidades educativas, artísticas, culturais, científicas e informativas; e a promoção da cultura nacional, estímulo à produção regional e à produção independente. Bem como levar para dentro da EBC os anseios da sociedade, ou seja, dialogar com a empresa sobre que tipo de conteúdo deveria ser veiculado.
Destituído pela Medida Provisória 744/2016, sem o Conselho Curador a EBC passou por um período de forte aparelhamento e uso para comunicação governamental, além de censura, denunciada por trabalhadores, sociedade civil e membros do Conselho cassado, que se uniram na Frente em Defesa da EBC e da Comunicação Pública.
A tramitação da MP no Congresso Nacional criou um Comitê Editorial e de Programação para restaurar a participação social na EBC, porém, além de ter funções meramente figurativas, o comitê nunca foi instalado. Com a mudança de governo ocorrida em 2023 e após muita cobrança da Frente, a Secretaria de Comunicação da Presidência da República (Secom), à qual a EBC está (infelizmente) vinculada, criou no final do ano um grupo de trabalho para discutir a questão e propor formas para retomar a participação social na empresa.
Ainda não há resultados práticos desse GT, portanto, continuamos aguardando que a EBC volte a cumprir sua missão e os objetivos constantes no artigo 3º da lei, em seu inciso III: “fomentar a construção da cidadania, a consolidação da democracia e a participação na sociedade, garantindo o direito à informação, à livre expressão do pensamento, à criação e à comunicação”.
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