Publicado originalmente em Ocorre Diário por Tânia Martins e Luan Matheus Santana | Edição: Sarah F. Santos. Para acessar, clique aqui.
Você sabia que a Agespisa (Empresa Pública – Águas e Esgotos do Piauí) está prestes a ser entregue para a iniciativa privada? Com a venda da estatal, o governador do Piauí, Rafael Fonteles/PT, espera arrecadar, no mínimo, 1 bilhão de reais. Feita sem quase nenhum alarde ou repercussão na imprensa, a primeira audiência pública para a privatização aconteceu na última quarta-feira (10/03), em uma sala virtual e com transmissão pelo Youtube. Entidades da sociedade civil demonstraram preocupação e alertam sobre os riscos desse processo feito de modo atropelado e sem nenhum diálogo com a população piauiense.
Passados mais de 60 anos desde a criação da Agespisa, hoje a estatal conta com um capital social de R$621.910.776 (conforme último balanço publicado pela empresa, aprovado em julho do ano passado) e atende uma população de 1.628.890 pessoas, distribuídas em 155 cidades e 22 povoados piauienses. Com dívidas parceladas, a empresa ainda acumulava uma débito de mais de 200 milhões de reais.
Apesar da longa trajetória, a crise da Agespisa tem sido pauta fixa dos jornais nos últimos 10 anos. Para organizações da sociedade civil, a audiência para privatização da empresa pública responsável pelo abastecimento de água e de esgotamento sanitário dos/as piauienses, no último dia 10, expôs a forma como o governo manipulou, unilateralmente, o recurso natural mais importante do Estado, sem que a sociedade fosse comunicada, mascarando a obrigatoriedade de divulgação, para entregar a administração da água para uma empresa privada.
Apenas 13 pessoas participaram de audiência pública para privatização da água
Somente 13 pessoas participaram do evento que, apesar da relevância do tema, não contou com nenhum prefeito dos 224 municípios do Estado, nem mesmo representantes de agências envolvidas com recursos hídricos lá estiveram. “A audiência pública, realizada através do YouTube, foi mais uma encenação para legitimar um processo que negligencia totalmente os interesses e preocupações da população”, comentou o engenheiro Florentino Filho, Presidente do Sindicato dos Engenheiros do Piauí. Segundo ele, os representantes sindicais, que buscam proteger os direitos dos cidadãos, foram calados e limitados em suas intervenções.
“Não se pode considerar a legitimidade da audiência que não respeitou a consulta pública, que disponibilizou apenas 14 dias para contestação de um processo que tem nove mil páginas”, disse o sindicalista. Florentino diz ter certeza que as decisões já foram tomadas nos bastidores, “longe do escrutínio popular”. Segundo ele, o Governo está entregando ouro para uma empresa que só visa lucros já que, de imediato, de acordo com as regras do edital, vai promover um aumento real de 16,5% na tarifa de água e 80% na de esgoto.
Também consta no projeto que será a agência que regulamenta e fiscaliza a distribuição da água no Estado – AGRESPI, a responsável pela execução do saneamento básico na zona rural, com aporte de 30 milhões de reais. De acordo com o engenheiro, a proposta não foi discutida na audiência, embora faça parte da concessão.
Participação rasa e apenas pela internet
Para o engenheiro Florentino, “é inadmissível que a agência que regula e fiscaliza seja a mesma que vai executar os serviços de saneamento básico. Isso não existe, é ilegal”, assegura. O engenheiro garante que irão “à justiça questionar a ilegalidade observada na audiência pública por não cumprir seu papel. Faremos o que for possível para que a água continue sendo tratada como um bem público de todos piauienses e não como commodities”.
O mesmo sentimento foi compartilhado pela representante do Conselho de Direitos Humanos do Piauí e da Federação Piauiense de Skate – FEPISK, Carla Mata, que questionou a metodologia da audiência virtual, para debater talvez, de acordo com ela, o assunto mais importante para a população do Piauí e o futuro das próximas gerações.
Segundo a conselheira Carla, “é impossível se ler nove mil páginas do relatório que foi apresentado, quando se teve menos de uma semana para conhecer um estudo complexo como deve ser. Ou seja, ficou visível que a audiência foi meramente para cumprir formalidades que justifique juridicamente o processo”, avaliou, afirmando ainda estar decepcionada com o processo.
O Sindicato de Trabalhadores nas Indústrias Urbanas, os Urbanitários, ressaltou a necessidade do governo do Piauí realizar debates mais amplos, com o conjunto da sociedade, ouvindo todos os segmentos e que leve em consideração as propostas já apresentadas pela a categoria sobre a privatização.
Em nota o sindicato afirmou: “De forma totalmente arbitrária e atropelada, o Governador Rafael Fonteles, representado pela Secretaria de Administração, acelera a entrega dos serviços de saneamento público para a iniciativa privada, promovendo audiência através das redes sociais, onde pouquíssimas pessoas puderam se inscrever via e-mail e a participação popular via Chat do YouTube foi rasa e limitada”.
Sobre a privatização no Piauí
O Secretário de Administração do Estado, Samuel Nascimento, presidiu a audiência, disponibilizando algumas informações sobre o processo do leilão que será realizado em agosto próximo, com lance mínimo de bilhão de reais. Disse ainda que a empresa vencedora terá a obrigação de investir 10 bilhões no abastecimento em oito anos e na universalização do abastecimento no Estado e 15 anos para levar saneamento básico para todo Estado, incluindo a zona rural. Ele também informou que oito empresas já se mostraram interessadas em disputar pelo domínio da água no Piauí.
Para Ex-relator especial da ONU para Água e Saneamento, privatização de água e saneamento traz ‘sérios riscos de violação de direitos’
Pesquisador do Instituto René Rachou (Fiocruz Minas), o engenheiro Léo Heller é ex-relator especial da Organização das Nações Unidas (ONU) para Água e Saneamento e autor de publicações que discutem a água sob diversas perspectivas: saúde coletiva, políticas públicas e direitos humanos.
Nesta entrevista, o estudioso defende que a água e o saneamento são direitos fundamentais que têm sido violados em regiões vulnerabilizadas no país. Ele também aponta as contradições que se descortinam a partir da privatização do abastecimento de água e coleta de esgoto em diferentes estados brasileiros. Segundo ele, governos têm usado a falsa justificativa de universalizar o serviço mais rapidamente e captar recursos para o Estado para entregar o controle da água para investidores internacionais – atrelando esse recurso essencial a interesses do mercado.
“Não há evidências de que a universalização ocorra mais efetivamente em modelos privados do que em modelos públicos de prestação de serviços. Ao contrário, como muitas vezes as empresas privadas buscam maximizar seus lucros, há uma tendência em serem relutantes em colocar serviços em locais onde vivem populações com mais baixa capacidade de pagamento, como em zonas rurais e cidades de menor porte, mas sobretudo em vilas e favelas, onde há também complexidades urbanísticas para a implementação dos serviços”, afirma o pesquisador.