Publicado originalmente em O Estado do Piauí por Diego Iglesias. Para acessar, clique aqui.
Apesar da vanguarda com a primeira travesti eleita para cargo político, Piauí segue sem representação de pessoas trans no legislativo
No mês de fevereiro, a política no país deu um passo importante para a representatividade de pessoas LGBTQIA+ com a nomeação da deputada Erika Hilton (PSOL-SP) como nova líder na Câmara. A parlamentar será a primeira transexual a liderar uma bancada no Congresso Nacional, fato que animou entidades ligadas aos direitos humanos com a possibilidade de ampliação de debates, principalmente acerca da violência, tendo em vista o aumento dos assassinatos de pessoas trans no ano passado no país, que já figura no topo dos que mais matam. O Piauí está na vanguarda com a primeira pessoa trans eleita a um cargo político no país, em 1992, uma referência para todo o país até hoje. No entanto ficou apenas nisso, já que tanto a assembleia legislativa como a câmara ou senado nunca tiveram representantes trans piauienses.
A última eleição trouxe uma surpresa boa para a representação com cinco mulheres trans e travestis eleitas para a Câmara dos Deputados e as Assembleias Legislativas. Dentre elas, Erika Hilton (PSOL-SP) e Duda Salabert (PDT-MG), as primeiras deputadas federais transgênero da história do Congresso Nacional. Por todo país, muitas também conseguiram espaço como em Sergipe, que teve a Linda Brasil (PSOL) como a primeira mulher trans para a Assembleia Legislativa, o Rio de Janeiro que teve Dani Balbi (PCdoB) como a pioneira trans para o cargo de deputada estadual.
Apesar do recorde de 2022 que abriu espaço otimista para a comunidade, os números ainda são tímidos, mas em evolução, pelo menos na quantidade de pessoas que tentam uma vaga no legislativo. De acordo com uma pesquisa da Antra – Associação Nacional de Travestis e Transexuais-, de 2018 para 2022, houve um aumento de 47% no número de candidaturas. Segundo os dados, foram registradas cerca de 78 candidaturas trans pelo Brasil, sendo 69 (88%) travestis e mulheres trans e 52 em 2018, 5 (7%) homens trans, enquanto em 2018 foram apenas 1, e 4 (5%) não binárias.
Os números podem ser ainda maiores tendo em vista que a metodologia da pesquisa esbarra na estrutura do TSE- Tribunal Superior Eleitoral- que não traz marcadores identitários autodeclarados dos candidatos, o que faz ela ser marcada por uma busca manual de marcador de identidade de gênero a partir das redes sociais ou em um processo de heteroidentificação, segundo a Antra. Nela, por exemplo, traz que o Piauí teve apenas uma candidata LGBTQIA+, quando na verdade houveram mais.
Entre as eleitas no país, a que mais vem se destacando é a deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP), a primeira transexual eleita deputada e 9ª deputada mais bem votada na história de São Paulo, que frequentemente se manifesta de forma aguerrida contra ataques e pautas provocadas pela extrema direita, além de defender temas à favor de LGBTQIA+ e pessoas com vulnerabilidade social.
A professora Duda Salabert (PDT-MG) também é outra que vem incomodando a ala conservadora do congresso na defesa de pautas que defendam as minorias. Ela foi a primeira deputada federal transexual eleita por Minas Gerais, a terceira deputada federal mais votada em Minas e a 29ª mais votada do país.
O Piauí na vanguarda
Em diversas publicações na internet ou pesquisas acadêmicas relacionadas à representatividade trans na política, sem dúvidas uma das mais lembradas é a piauiense Katia Tapety, que já recebeu um documentário sobre a sua trajetória e nas eleições de 2022 foi símbolo de democracia e comemoração dos 30 anos da primeira mulher trans eleita no país.
Nascida em Colônia do Piauí, a 388 km de Teresina, Katia sofreu o preconceito de ser uma mulher “diferente” num povoado que estava em processo de desmembramento da cidade de Oeiras, o que ocorreu em 1992. Vinda de família simples, se dedicava à roça e a trabalhos sociais com a mãe, algo que lhe rendeu notoriedade e respeito na sua cidade, refletindo uma cobrança para a entrada na vida política. Sendo chamada de “Vereadora do Povo”, foi eleita em 1992 pelo PFL, vindo a se tornar a primeira travesti a ocupar um cargo público no Brasil, sendo ainda a mais votada na época, se mantendo no poder nos anos de 1996 e 2000. Em 2004, já no PPS, foi eleita vice-prefeita na chapa de Lúcia de Moura Sá.
Com o seu feito na década de 90, chegou a conceder entrevista no programa do Jô Soares, o que lhe rendeu ainda mais notoriedade em todo o país, sendo um símbolo de representatividade e de que pessoas trans podem ocupar qualquer espaço. Posteriormente, surgiu como tema central do documentário Katia, de Karla Holanda, lançado em 2012 e que trata de sua trajetória.
Lutas e glórias
Katia teve sua história de vida marcada pelos estigmas sociais e violências. Por se ver sempre como Katia, era escondida em casa pelo pai e só passou a ter mais liberdade após o seu falecimento, o que é reforçado numa das primeiras frases ditas por ela no seu documentário: “meu pai sempre foi muito direto ao dizer que todo homossexual devia mesmo era morrer”. Esse tipo de preconceito é o que milhares de pessoas trans passam por todo o mundo e foi algo que a fez buscar grupos de representação, como o de Jovanna Baby, que liderava movimentos organizados de travestis e transexuais no Brasil e chegou a morar na cidade de Picos, localizada próxima a Colônia do Piauí.
Jovanna nasceu na Bahia e cresceu em Vitória, no Espirito Santo, onde no final da década de 70 sentiu na pele a opressão do Estado por ser travesti, o que a levou a liderar grupos organizados e alianças com Katia, que foi fundamental para a ampliação das lideranças. Hoje ela dirige o Fórum Nacional de Travestis e Transexuais Negras e Negros, que desde 2014 alia discussões sobre identidade de gênero à questão racial.
Segundo Jovanna, as formas de opressão vêm se reformulando com o passar dos anos a começar por uma lei criada no governo de Getúlio Vargas, o artigo 59 do Código Penal, a chamada Lei da Vadiagem, que na verdade era um mecanismo contra a prostituição e racista disfarçado de lei contra a ociosidade de pessoas aptas a trabalhar. Por conta disso, ela chegou a ser presa em 1979. “Ela vinha com essa cortina de limpeza étnica e moral nas ruas e perseguia, na verdade, todas as pessoas que não tinham ocupação, mas quem era autuado, infelizmente, eram só as travestis. E hoje, esse artigo se expandiu para várias outras formas de perseguição. Hoje nós não temos direito ao uso do banheiro, nós não temos direito à educação, nós não temos direito à saúde, nós não temos direito a mercado de trabalho, ou seja, o artigo 59 ele se ampliou para várias outras vertentes para segregar e assassinar esses corpos e corpas”, lamenta.
Essa mudança no cenário entre as décadas é vista até mesmo nas bandeiras de candidatas que pleiteiam ou ocupam um cargo no legislativo, que hoje fazem uma militância mais incisiva. Segundo Jovanna, não é possível comparar Katia Tapety com Erika Hilton ou Duda Salabert, por exemplo, pois elas participaram de momentos políticos diferentes no qual o debate tem um outro formato e até mesmo a sociedade. “Não é uma diferença que seja pejorativa, mas é porque Kátia Tapety não foi eleita com condições e nem atuação LGBTQIA+. Ela foi eleita pela sua atuação enquanto promotora de serviços sociais no seu município. Foi eleita por uma sociedade que praticamente nem tinha LGBTQIA+. Não que a Erika não faça, pois ela faz muito, mas para a população de LGBTQIA+ também. O diferencial total é que Erika foi eleita por uma consciência LGBTQIA+, uma consciência de mudança e de resiliência e resistência. E Kátia foi eleita pelo trabalho social, pela sociedade da sua cidade”, destaca Baby.
Bandeiras coloridas e bandeiras de todas as cores
Independente da forma de atuação e da bandeira, o Piauí parou com Katia a sua representatividade no que se trata de pessoas trans, tendo em vista que várias tentaram candidatura e não obtiveram sucesso, seja com propostas diretas para população de LGBTQIA+ ou não.
A atriz Safira Bengel, natural do Piauí mas com trabalhos reconhecidos no exterior, desde 2009 tentava um cargo no legislativo, sendo que na sua última tentativa tinha como sigla o PDT. Ela afirma que pelos seus 50 anos de carreira artística e ativismo sociopolítico, entende que a luta deve ser por um coletivo independente de gênero. “A pessoa não pode ter bandeira específica, mas sim a bandeira da sociedade porque é mais conveniente ao sistema. Assim a sociedade nos enxerga, enxerga que não vamos defender somente o amarelo, aquele especifico ali. Eu sou mulher, mas a sociedade diz que eu sou travesti. Eu sou uma pessoa que me coloquei a disposição da sociedade para lutar pelo coletivo”, explica.
Safira, que já chegou a ser presa na época da Ditadura Militar devido seu ativismo cultural diz que sua trajetória política foi se inserindo em agrupamentos femininos, sendo a primeira do Brasil a participar de núcleo das mulheres e a primeira e integrar cotas femininas nas eleições. Além disso, foi uma das fundadoras do Partido da Mulher Brasileira no Piauí. E é nesse viés que vinha tentando um lugar no legislativo e na política, onde ela afirma que não tem, e não necessita, um lado definido. “Sempre tivemos o preconceito, mas temos que buscar soluções para quebrar as barreiras e essa é a minha forma de pensar”, frisa. “Eu nunca tive lado, nem direita, nem esquerda, nem meio. Eu sou pela ação! Palavras iludem e atitudes se comprovam, então sou pela ação. Para mim, o melhor governo é aquele que menos governa e age mais. Para mim é a política afirmativa, a necessidade da população, isso é fazer política, independente de sigla que eu estivesse, o meu trabalho sempre foi a população, o bem-estar social”, complementa.
Devido esse cenário Safira diz que hoje cansou da política e está se dedicando a uma nova etapa na sua carreira, agora como escritora e com o lançamento de uma biografia que conta sua história, inclusive na política, escrita por ela e pelo escritor piauiense Eneas Barros. A obra será pela editora Nova Aliança e a previsão de estreia é em maio.
Educação e consciência política contra a violência
Apesar do cenário recente com uma pequena evolução na representatividade, existe uma necessidade urgente de discussões e promoções de políticas para LGBTQIA+. Ainda mais porque nos últimos 13 anos o Brasil liderou a lista de países que mais mata pessoas trans e travestis no mundo.
Segundo a 7ª edição do Dossiê: Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023, também elaborado pela Antra, somente em 2023, foram registradas 155 mortes de pessoas trans no Brasil, sendo 145 casos de assassinatos e outros dez de suicídio provocados pela violência e microviolências relacionadas à invisibilidade trans. O número representa um aumento de 10,7%, em relação a 2022, quando houve 131 casos.
Para a ativista Jovanna Baby, os números refletem um problema relacionado à educação, além das políticas públicas. “A educação precisa ser inclusiva. A educação precisa trazer todas as discussões da sociedade brasileira. Porque inclusive nós somos o país que mais mata no trânsito no mundo e nós não temos uma disciplina de educação para o trânsito. O Brasil é o país que mais mata pessoas LGBT no mundo, em especial as trans, e nós não temos uma disciplina que se estude as diferenças humanas, entendeu? E é o que é preciso ter. Ninguém vai virar LGBT por estudar sobre LGBT. Nós não viramos indígenas e estudamos sobre indígenas desde a cartilha, desde o primário. A gente estuda sobre indígenas e nunca viramos indígenas, porque não se vira. Então, o que precisa melhorar é a educação. A educação é o que vai fazer mudar a vida de todas as pessoas discriminadas e deixadas à margem”, explica.
Além disso, ela destaca que é importante ainda a realização de eventos que promovam as discussões para que o debate possa romper as bolhas acadêmicas e da esfera política, atingindo principalmente pessoas mais vulneráveis que podem se fortalecer e se sentir acolhidas. Um exemplo é o Encontro Nacional de Travestis e Transexuais Negras e Negros, o primeiro encontro de parlamentares transnegras, que irá acontecer em Teresina entre os dias 11 e 14 de abril e deverá contar com a presença da deputada Erika Hilton, Duda Salabert, entre outras lideranças.
O evento, segundo Jovanna, tem uma importância muito grande devido o embranquecimento do movimento LGBTQIA+ no Brasil, o que acaba por criar alguns conflitos na luta. “[O movimento] não tem oportunizado aos corpos trans pretos o direito de estar na frente da sua própria luta, e há um embranquecimento da luta, há um patriarcado que embranqueceu a luta e apagou esses corpos pretos, e nós sabemos que mais de 78% dos corpos trans no Brasil são de pessoas trans pretas e pretos, inclusive quem criou todo esse movimento que impacta o Brasil hoje no mundo, o movimento trans, foram corpos trans pretos e pretas. Então nós precisamos empretecer a luta e, por isso, a gente a gente realiza esses congressos anuais. E Teresina é a nona capital, é o Piauí é o nono estado a sediar esse evento que já tem uma história linda e que transforma a vida, que educa e leva informação para a sociedade de forma em geral”, explica.