O caso do idoso levado morto ao banco e os limites éticos do SEO no jornalismo

Publicado originalmente em ObjETHOS. Para acessar, clique aqui.

Lívia de Souza Vieira
Professora da UFBA  e pesquisadora associada do objETHOS

O jornalismo tem especificidades que fazem desta instituição social uma produtora de conteúdos singular: ineditismo, interesse público, atualidade, periodicidade. Isso faz com que o material jornalístico, muitas vezes, não possua histórico de busca na internet. Ora, se algo novo aconteceu, ninguém escreveu sobre isso antes. Essa é uma característica muito importante, pois o jornalismo tem o poder de dar nome às coisas. A “tragédia de Brumadinho” é assim conhecida porque os veículos jornalísticos, ao longo da cobertura, assim nomearam esse acontecimento. Uma busca no Google provavelmente incluiria essa expressão e teria como resultado uma vasta quantidade de material jornalístico. Assim, o jornalismo tem a prerrogativa de influenciar a maneira pela qual o leitor busca, as palavras-chave que ele digita no buscador.

A agência do conteúdo jornalístico faz com que veículos tenham que, ao mesmo tempo, observar o comportamento de busca da audiência e tomar a frente no direcionamento desse comportamento. Trata-se de uma complexidade na aplicação das técnicas de SEO, já que, como muitos fatos não existiam antes, não adianta “dar um Google”. É a partir da maneira como o jornalismo vai dar nome aos fatos que eles vão passar a existir no Google. O caso que vamos aprofundar neste artigo mostra que muitas organizações jornalísticas ainda não se deram conta disso e se comportam como empresas de marketing de conteúdo, ao invés de agentes ativos no processo de SEO, nomeando, informando, aprofundando e contextualizando. O Google sabe disso. Não à toa põe dinheiro e diz que valoriza tanto o conteúdo jornalístico. Não porque a empresa é boazinha, mas porque o jornalismo dá o que os clientes do Google precisam para existir em sociedade. Um jornalismo de qualidade transfere qualidade para o próprio buscador.

Mas tem um “mas”. A autoridade do jornalismo na internet convive com o conteúdo que a audiência produz e que circula, principalmente, nas redes sociais. Ou seja, o mesmo leitor que busca tem a capacidade de criar e também de ressignificar o próprio material jornalístico. Foi o que aconteceu com o que ficou conhecido como “caso Tio Paulo”. No último dia 16, Érika Vieira Nunes levou o tio Paulo Roberto Braga, de 68 anos, em uma cadeira de rodas para tentar sacar um empréstimo de R$ 17 mil em uma agência bancária de Bangu, no Rio de Janeiro. Os funcionários do banco suspeitaram do que o Samu constatou assim que foi chamado: o homem estava morto. Érika acabou sendo presa.

Vejamos como alguns veículos jornalísticos nomearam esse acontecimento em seus títulos, no dia do ocorrido (16/4), e foram bem ranqueados no Google:

G1: Mulher leva morto em cadeira de rodas para sacar empréstimo de R$ 17 mil e pede a ele: ‘Assina
CNN: Mulher leva morto em cadeira de rodas ao banco e tenta sacar empréstimo de R$ 17 mil no RJ
Metrópoles: Mulher leva cadáver para sacar R$ 17 mil em banco, no Rio. Vídeo
R7: Mulher é detida ao levar morto para tentar sacar R$ 17 mil em agência bancária no Rio

A repercussão do caso foi enorme, pois há ingredientes factuais para isso. Poderíamos dizer que se trata de um acontecimento inusitado, trágico, que desperta emoções nas pessoas e que, exatamente por isso, gera engajamento nas redes sociais. Somente este post do G1 no Instagram teve mais de 275 mil curtidas e 30 mil comentários. “Só acredito vendo, eu vendo: NÃO ACREDITO NISSO!”; “E quando dizem que devemos ter medo dos vivos e não dos mortos …. É sobre isso… Meu Deus…”; “Parece filme de terror! As pessoas estão perdendo a sua humanidade!”. Essa breve seleção de comentários mostra um sentimento de surpresa dos leitores e até uma certa incredulidade.

A repercussão foi aumentando e ganhou alcance internacional. Esta matéria do Núcleo mostra que, no dia seguinte ao fato, o caso estava entre os mais lidos do jornal inglês The Guardian. Nas redes sociais, o choque inicial foi dando lugar ao humor e memes começaram a circular. Muito rapidamente, o que o jornalismo havia nomeado como “caso do morto levado ao banco” foi renomeado pela audiência como “caso tio Paulo”. Na internet, Paulo Roberto Braga virou até boneco.

É legítimo que os veículos jornalísticos tenham observado a crescente repercussão e investido no assunto. Até porque se trata de um caso de polícia, com perguntas ainda sem respostas e com uma investigação em andamento. Nosso ponto central de questionamento é a escolha ética que levou alguns veículos a também renomear o acontecimento, pegando carona na repercussão das redes sociais, numa disputa também por relevância nos mecanismos de busca.

Vejamos a transformação dos títulos nos mesmos veículos que citamos acima:

G1: Sobrinha de ‘Tio Paulo’ foi agredida na cadeia, diz advogada; corpo de idoso é enterrado
CNN: Enterro de “Tio Paulo” será neste sábado, 4 dias após idoso aparecer morto em banco
Metrópoles: Quatro dias após morrer, “Tio Paulo” é enterrado no Rio de Janeiro
R7: Descobertas chocantes sobre o Caso Tio Paulo: entenda o mistério do cadáver no banco

Com ou sem aspas, ou seja, responsabilizando-se mais ou menos pela nomeação, essas organizações jornalísticas embarcaram sem questionar o comportamento ético da audiência nas redes sociais. Este texto do Aos Fatos destaca que “o idoso foi transformado em uma espécie de personagem simpático” e ressalta: “nas redes sociais ou fora delas, é importante entender o limite da piada e da brincadeira. Trata-se de um crime que infringe de forma grave a dignidade do idoso, exposta em condição extremamente vulnerável”.

Embora seja muito difícil cobrar ética nos memes, é possível questionar a escolha desses veículos. E vejam que nossa pequena amostra é diversa, contendo sites jornalísticos tradicionais e novos, com linhas editoriais diferentes. Tivessem respeitado a dignidade humana, o caminho mais ético seria: o leitor busca no Google “caso tio Paulo” e tem como resultados os memes nas redes sociais ou, no máximo, matérias que relatam a existência dos memes, incluindo uma crítica a eles.

No entanto, cinco dias após o fato, este é o resultado de nossa busca no Google:

Todos os primeiros resultados levam a sites de notícias que utilizaram o “tio Paulo” na cobertura factual. Conseguiram um bom ranqueamento no buscador, mas abriram mão do poder de nomeação de que falamos no início deste artigo. Cederam a autoridade do jornalismo, que deve se guiar por uma ética, à miríade de conteúdos e memes que circulam nas redes sociais sem escrutínio.

Alguém pode ponderar que “tio Paulo” é um termo inofensivo. Talvez valha a pena praticar o velho exercício altruísta de se colocar no lugar do outro, algo que os veículos deveriam fazer com mais frequência. Se fosse o seu tio, você gostaria que o histórico de busca de Paulo Roberto Braga estivesse para sempre ligado a memes e matérias que o trataram com uma informalidade que simplesmente não cabe num caso como esse? Será que nenhum editor questionou a pertinência do título “enterro de tio Paulo será neste sábado”?.

Por fim, percebam que o problema original não está nos critérios dos mecanismos de busca, mas nas escolhas dos títulos pelo jornalismo, que é um dos principais agentes de nomeação dos acontecimentos. É a velha interrogação ética dando sinais de vitalidade e se tornando imprescindível nas decisões editoriais.

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