Anseio por modelos de vida mais acessíveis, solidários e próximos da natureza estimula formação de novas comunidades habitacionais

Publicado originalmente em Jornal da UFRGS. Para acessar, clique aqui.

Sociedade | Em rota contrária ao individualismo e à especulação imobiliária, experiências de moradia autogestionárias se multiplicam, aliando necessidade, utopia e cooperação

*Criada em 1992 por um grupo de trabalhadores da educação, a Cootepa hoje é a residência de 30 famílias, que buscam tranquilidade e contato com a natureza (Foto: Marcelo Pires/JU)

Uma vida mais saudável, uma utopia compartilhada ou a redução de custos, via mão de obra coletiva. Esses são alguns – entre muitos outros – fatores que parecem explicar o crescimento da formação de grupos com algum vínculo social, de diferentes idades, para um objetivo comum: as novas e variadas formas de morar coletivamente, para além e longe dos condomínios fechados e limitados aos padrões do mercado.

É o caso da Cooperativa Habitacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino da Rede Privada de Porto Alegre Ltda. (Cootepa), criada em 1992 por um grupo de trabalhadores da educação no esteio dos movimentos por moradia popular que emergiam na década de 1980 na Região Metropolitana de Porto Alegre. Com pouco mais de dois hectares, a propriedade é situada na Zona Leste da Capital, a cerca de 17km do Centro, no limite com o Parque Saint’Hilaire. Cercado de verde, o terreno é privilegiado em termos de tranquilidade e diversidade natural.

“A gente começou a procurar aqui por Porto Alegre modelos de moradia que tivessem essa ideia mais de cooperativismo. Viemos conhecer. Isso aqui não existia, era tudo de chão de barro. Participamos das assembleias; e aí, até que enfim, estamos aí há 12 anos”, lembra a professora Maria Alessandra Tinos enquanto retornava do passeio com os cães, carregando uma porção de vegetais colhidos em uma das hortas da cooperativa.

Maria Alessandra integra uma das 30 famílias que vivem no local e também faz parte do Conselho Fiscal da cooperativa. A área para o projeto foi adquirida em 1994, ocasião em que era aberta e vazia. A partir do planejamento e da captação dos recursos entre os membros participantes, foram realizadas as obras de saneamento, iluminação e estradas para a posterior construção das moradias. Hoje, o local conta com quadras para esportes, áreas de convivência externa e fechada, hortas e estacionamento.

Homem e mulher brancos, de aproximadamente cinquenta anos, aparecem em meio a vegetação. Junto a eles estão dois cachorros.
Maria Alessandra Tinos e Roque Grazziola, residentes da Cootepa. “Isso aqui não existia, era tudo de chão de barro”, lembra Maria Alessandra (Foto: Marcelo Pires/JU)
Dignidade e vida

Mas a motivação para conceber e compartilhar um projeto de moradia pode envolver sentidos mais profundos. Sabe bem disso Maria Helena da Silva Bandeira, 55 anos, uma trabalhadora com reciclagem das ruas de Gravataí, ou uma “Médica da Natureza” (como costuma se apresentar). Há 10 anos ela participa do projeto “Orquídea Libertária: aprendendo e fazendo com as nossas mãos”, desenvolvido no município de Gravataí, região metropolitana de Porto Alegre.

Criada em um quilombo e ganhando a vida fazendo serviços domésticos entre as periferias de Canoas, Porto Alegre e Gravataí, a reação de Maria quando apresentada à iniciativa oscilou entre a dúvida e a insegurança. “Eu tinha quatro filhos e não tinha muita confiança em mim mesmo. Vão fazer casa para nós catadores? Não dá para acreditar”, conta ela a uma turma lotada de acadêmicos em uma das salas da Faculdade de Educação da UFRGS. “Com o tempo, a gente foi se conhecendo, foi convivendo mais com essa coisa de projetar junto com os técnicos, de a gente conseguir fazer tudo junto – o que, para nós, também soava muito estranho. O que é que nós vamos fazer aqui junto com os arquitetos?”, lembra.

O Orquídea Libertária foi viabilizado a partir da aquisição de uma área de 1,2 hectares, por meio da União e de recursos captados no Projeto Minha Casa, Minha Vida. Entre planejamento e execução, a obra vem sendo desenvolvida há nove anos e prevê a entrega de unidades habitacionais a todas as 50 famílias cadastradas. O projeto conta com reservatório de água de chuva de 30 mil litros, luzes externas com painéis solares, horta e área de preservação ambiental. Estão ainda em construção um centro comunitário, uma padaria e uma confeitaria.

“Nós somos a única cooperativa que não cobra parcela de filiação nunca; trocamos esse dinheiro por horas de trabalho. Todas as tarefas de manutenção são feitas pelas famílias. Juridicamente, sou presidente e trabalho como todo mundo”, observa Eduardo Solari, mentor da iniciativa e também veterano de outras experiências autogestionárias, como o Assentamento Urbano Utopia e Luta, no centro da Capital.

Maria, por sua vez, diz ter encontrado no projeto uma porta de reconhecimento, força e esperança.

“Disseram para nós que ‘não temos direito’, mas a cooperativa veio dizer que nós, sim, temos direitos. A gente tem tanto direito quanto qualquer um de vocês aqui dentro dessa sala… de ter o nosso território livre. Livre de violência, de preconceito, de racismo. Livre de tudo”

Maria Helena da Silva Bandeira
Paradigmas e desafios

Um conceito genérico e que também tem sido usado para se referir às comunidades alternativas é o de Comunidades Intencionais: “assentamentos humanos, compostos por pessoas com propósitos e ideologias em comum, que por isso escolheram viver juntas”. Essa definição é, aliás, ponto de enquadramento em estudo recente sobre o crescimento das pesquisas acadêmicas no tocante a esse fenômeno no Brasil.

O artigo As pesquisas brasileiras sobre comunidades intencionais e ruralidades: notas exploratórias, publicado na revista Contribuiciones a las Ciencias Sociales, dá conta de que, entre 2004 e 2018, o número de publicações a respeito desse tema foi oito vezes maior. O mesmo estudo destaca as ecovilas como a modalidade que mais desponta entre as diferentes formas de organização de vida desse tipo.

As ecovilas são “comunidades rurais ou urbanas de pessoas que buscam integrar um ambiente social assegurador de um estilo de vida de baixo impacto ecológico […] com projeto ecológico, permacultura, construções de baixo impacto, produção verde, energia alternativa, práticas de fortalecimento de comunidade e muito mais”. Essa é a definição proposta pelo Global Village Network e pelo Movimento Brasileiro de Ecovilas.

A opção pela moradia em ecovilas é uma mudança de paradigma de vida, aponta Lívia de Mello Trindade, mestre em Desenvolvimento Rural pela UFRGS que defendeu, em dezembro de 2023, dissertação sobre a Ecovila Arca Verde, em São Francisco de Paula.

Na pesquisa, Lívia destaca que “na cidade encontramos muito barulho, muita poluição, muitas pessoas em um nível frenético de estilo de vida guiado por consumo […] além da identificação [por afinidade], por querer estar perto de pessoas que possuem algo em comum e queiram criar um modo de vida que acreditam ser sustentável”. Seja qual for o modelo de moradia coletiva fora dos padrões vigentes, no entanto, a organização da vida coletiva requer negociações e construção de consensos.

“Ter a vida administrativa e financeira autogestionada é não ter recurso externo; tudo que está aqui é coletivo. Para a instalação da rede de esgoto e o calçamento, a gente teve que definir o projeto e programar um período. Nós levamos cinco anos para fazer um caixa para poder bancar”, conta Roque Grazziola, coordenador administrativo da Cootepa.

Quadra de esportes aparece em destaque, com goleira e cesta de basquete. O registro foi feito em um dia parcialmente nublado.
Obras de saneamento, iluminação e estradas na Cootepa foram arcadas pelos membros participantes. Hoje, a infraestrutura conta com quadras para esportes, áreas de convivência, hortas e galinheiro (Fotos: Marcelo Pires/JU)

Para Eduardo Solari, presidente jurídico da cooperativa Orquídea Libertária, unir um grupo de pessoas em torno de uma causa coletiva é hoje um desafio. “Estamos em uma sociedade que está ficando líquida, a caminho de não reconhecer o coletivo. Uma comunidade não é somente um grupo, tem um sentido cultural muito mais profundo. Reconstruir esse sentido é nossa meta”, revela.

Da mesma forma, Lívia chama a atenção para a importância da compreensão de singularidades e da paciência na composição de objetivos maiores. “É crucial cultivar um ambiente de troca de ideias, que visa identificar o que é benéfico para todos. Esse enfoque não apenas fortaleceria a comunidade, mas também proporcionaria uma base sólida para as decisões futuras e demais aspectos relacionados”, arremata.


Iniciativas e dados sobre ecovilas

No Rio Grande do Sul

Conforme o Mapeamento de Ecovilas e Comunidades Regenerativas no Brasil 2022, realizado pelo Círculo de Pesquisa da Rede CASA Brasil, até aquele ano havia 207 ecovilas ou comunidades regenerativas no país. O mesmo estudo revelava que o maior número dessas comunidades (103) se concentraria na região sudeste e o menor (6) na região norte. A região sul possuiria 39 organizações desse tipo, sendo nove no Paraná, 14 em Santa Catarina e 16 no Rio Grande do Sul.

No Brasil

Em dezembro de 2022, o Casa Brasileiro – o elo brasileiro do CASA Latina, que por sua vez é o elo latino-americano da Rede Global de Ecovilas (Global Ecovillage Network – GEN) – entregou ao GT de Transição para a Gestão do Governo Lula 2023-2026 a Proposta de criação Política Nacional de fomento e apoio a Ecovilas e Comunidades Regenerativas.

No mundo

A Rede Global de Ecovilas (Global Ecovillage Network – GEN) é uma rede de comunidades e iniciativas regenerativas que unem diferentes culturas, países e continentes. Com sede na Escócia, a GEN é composta por cinco redes regionais, com aproximadamente 10.000 comunidades e projetos relacionados em todo o mundo.

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