Publicado originalmente em Jornal da UFRGS por Ronaldo Botelho. Para acessar, clique aqui.
Sustentabilidade | Componentes desse tipo de material contêm substâncias nocivas à natureza e à saúde humana; produção anual global desse tipo de resíduo já ultrapassa 50 milhões de toneladas
*Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
“Estamos estragando este lugar tão rapidamente, que estamos deteriorando a própria capacidade do planeta de ter gente morando aqui”.
O trecho acima, do documentário The Story of Stuff (2007) ou “A História das Coisas”, oferece preocupações pertinentes com os danos que o modo de vida das sociedades modernas causam ao meio ambiente e aos próprios seres humanos – seja pelo mau uso dos recursos naturais, seja pelo nível, os meios e os modos de consumir e descartar.
Essa produção, dirigida pela ambientalista norte-americana Annie Leonard, nos faz despertar para uma notável problemática global resultante da vida moderna: o descarte de resíduos eletrônicos, por meio de equipamentos, suas peças e acessórios. Trata-se de uma questão que atravessa a esfera econômica, ambiental e santiária.
Uma grande preocupação em relação aos resíduos elétricos e eletrônicos é a contaminação ambiental e a infiltração na cadeia alimentar. Muitos metais ocorrem normalmente na natureza e são essenciais à vida, mas podem se tornar tóxicos através do acúmulo em organismos: arsênico, cádmio, cromo, cobre, níquel, chumbo e mercúrio são os metais pesados mais comuns que podem poluir o meio ambiente.
O relatório Global E-Waste Monitor 2020 da Organização das Nações Unidas (ONU) dá conta de que a produção anual de lixo eletrônico e elétrico produzidos globalmente chega a 53,6 milhões de toneladas de, uma média de 7,3 kg por pessoa. Desse total, apenas 17,4% é reciclado. A mesma pesquisa estima que em 2030 o lixo eletrônico gerado no mundo chegará a 74 milhões de toneladas por ano.
“Quando eu não dou a destinação correta para eletrônico, onde que ele vai parar? Num aterro, no lixão ou num terreno. E aí, esse material vai estar disponível no solo; talvez, daqui a pouco, no ar, na água… . Então, ele vai para alguma fonte. E estando disponível, pode causar algum tipo de dano”, observa Tainá Flores da Rosa, engenheira ambiental do Hospital de Clínicas de Porto Alegre.
O site da Organização Panamericana de Saúde (OPAS) registra que, só em, 2021 cerca de 12,9 milhões de mulheres trabalhavam no setor informal de resíduos e mais de 18 milhões de crianças e adolescentes, alguns com apenas cinco anos de idade, estavam ativamente engajados no setor industrial informal, do qual o processamento de resíduos é um subsetor – o que potencialmente expõe esses indivíduos ao lixo eletrônico tóxico e os coloca em risco.
Consumo e mudanças
Inseridos profundamente em todos os níveis das relações sociais, os produtos eletrônicos se introjetaram na vida moderna como ícones de facilidade, rapidez e conforto. No entanto, os avançõs tecnológicos e sua glamourização para o consumo de massa tornaram o consumo e a descartabilidade um problema silencioso e imensurável.
A Organização não-governamental belga The WEEE Forum (Fórum Internacional de Resíduos de Equipamentos Elétricos e Eletrônicos) revela que, apenas em 2022, 5,3 bilhões de telefones celulares teriam sido jogados fora, segundo estimativas realizadas naquele ano pela entidade. É claro que toda essa produção vai se traduzir em impactos diversos. Além disso, com os avanços tecnológicos na inústria desse setor e a consequente popularização dos produtos eletroeletrônicos, a substituição de materiais cria também algumas contradições.
“Por um lado, pode haver redução e mudança na utilização de materiais dos deslocamentos, de hábitos, mas, por outro lado, aumenta o descarte, já que as novas tecnologias se reinventam com velocidade”, avalia Monica Concha Amin, professora de Economia Aplicada da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA).
A docente nos faz notar que a ampliação imensurável da produção desses produtos vai implicar novas atenções coletivas. “As comunicações e a inovação avançam no sentido de chegar em todos os cantos. Lugares que até o momento eram desconhecido, começam a ser invadidos. Assim, os desafios para as políticas públicas são enormes, seja no âmbito público, seja no privado”.
A relação entre os benefícios que um bem eletrônico pode proporcionar e aquilo que a sua produção e descarte implica também se revela a partir de desastres ambientais. “A questão não é só o quanto eu vou consumir e gerar de resíduo, é o quanto eu tô consumindo de recursos. A gente vê a questão da Braskem com o sal-gema [em Maceió, Alagoas] ou da Vale, em Brumadinho [MG]. Elas geram potenciais riscos. Antes de chegar no resíduo, é preciso mineirar”, lembra Tainá.
Habitos e políticas
Diante do crescimento da percepção pública dos consumidores, parece crescer a consciência sobre a necessidade de reduzir os impactos do descarte inadequado dos eletrônicos. Ao lado disso, os movimentos sociais tiveram conquistas importantes para a legislação brasileira.
A Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), lançada em 2010, possibilitou a assinatura do acordo setorial para Logística Reversa em 2019. A partir desse compromisso, o objetivo era de que o Brasil alcançasse até 2025 pelo menos, 17% de reciclagem de eletroeletrônicos com aquilo que coletaria em mais de cinco mil pontos espalhados em 400 municípios. Os últimos números divulgados pelo Ministério do Meio Ambiente, de 2022, davam conta que o país tinha atingido 3.400 pontos de coleta.
“A destinação adequada me garante que esse material não vai parar no meio ambiente e que não vai estar disponível no futuro”, observa Tainá. Enquanto iniciativa corporativa, ela exemplifica a política de sustentabilidade do HCPA, junto a uma equipe de cerca de 10 mil pessoas – entre estagiários, funcionários e residentes. “A gente acompanha a empresa parceira na questão dos licenciamentos, da documentação. Também atuamos na educação interna e somos fonte de conhecimento, já que as pessoas nos procuram pra saber onde descartar”.
A engenheira reclama, contudo, que nem sempre o poder público facilita a criação do hábito do adequado pela população.
“Os pontos de coleta são em lugares muito específicos, se tu não buscar onde fica, não vais saberes onde deixar, é mais fácil deixar na frente de casa. É isso que a gente vê às vezes na rua, andando. Então tem isso também, a gente tem poucos pontos.”
Tainá Flores
O gestor de Educação Ambiental do Departamento Municipal de Limpeza Urbana de Porto Alegre (DMLU), Marco Antônio Prola Salinas, explica que os resíduos eletrônicos da Capital são recolhidos pela empresa parceira RS Recicla, credenciada à Associação Brasileira de Eletroeletrônicos e Eletrodomésticos (ABREE), que é responsável pelo recolhimento, separação e destinação. “Paralelamente, desenvolvemos ações visando dar visibilidade ao correto descarte deste resíduo, como realização de drive-thru de recolhimentos específicos deste material e informação à população sobre sua destinação correta”, pontua.
O trabalho do recolhimento dos resíduos eletrônicos na Capital é realizado em dois níveis: por meio de iniciativa dos moradores, em sete pontos distribuídos pela cidade – cujos endereços pode ser conferidos no site da empresa RS Recicla. No caso de pessoas jurídicas, é preciso solicitar e agendar a coleta.
Conforme a assessoria de imprensa da RS Recicla, ao chegar na empresa o material passa por três processos: pesagem, triagem e desmonte. Em seguida, é realizada a separação e envio para a indústria. Após essa etapa, o cliente recebe um comprovante de destino do volume descartado (CDF). Nesse caso, a coleta está disponível de segunda a sexta-feira, das 08h às 18h, e o agendamento pode ser realizado através do site, WhatsApp ou telefone.
Na UFRGS, o recolhimento e destino dos materiais eletrônicos se orienta por um protocolo de várias etapas. Esse trabalho começa com a solicitação pelo servidor responsável. “Na Unidade/Órgão é feita a triagem dos bens considerados inservíveis (que não interessam mais ao órgão), atendendo à Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), à Política de Gestão dos Ativos de Tecnologia da Informação e à Cartilha sobre Precauções com Dados Pessoais”, explica o diretor do Departamento de Patrimônio e Almoxarifado Central, Jacir da Silva Mendonça. Após incluir os bens na Solicitação de Recolhimento, a unidade faz o agendamento para a coleta dos materiais.
Quanto ao destino desses materiais, o servidor esclarece que o “desfazimento” dos eletrônicos é efetuado com base na Lei 14.479 de 21.12.2022, que instituiu a Política Nacional de desfazimento e Recondicionamento de Eletrônicos. “A universidade encaminha ao Ministério das Comunicações ofício comunicando a existências dos materiais disponíveis e a listagem dos mesmos para reaproveitamento. Após receber o comunicado, o Ministério indica à instituição cadastrada como CRC (Centro de Recondicionamento de Computadores) para receber os materiais em doação”, acrescenta.
No âmbito da instituição, uma das iniciativas que se destacam no aproveitamento adequado desses produtos é o projeto Reconecta. Esse projeto, vinculado ao Centro de Recondicionamento de Computadores, combina uma abordagem ambiental, social e econômica, a partir de parcerias internas e externas à universidade.
Um passo além
Entre o crescimento da visibilidade dos impactos e as soluções locais encontradas, especialistas têm certo consenso de que adapções produtivas e projetos inovadores são necessários para o despertar de uma consciência ambiental à altura dessa questão, mas também destacam outras dimensões dessa empreitada.
“Hoje tu vês grandes empresas trabalhando na redução desse resíduo. A sigla do momento é ESG: Sustentabilidade ambiental, Social e de Governança. Os movimentos de consumo consciente – reciclagem, redução e reutilização – geram postos de trabalho e melhoram a vida de muitas pessoas. Essas ações nas comunidades locais devem ser valorizadas”, destaca Tainá.
Para Mônica, é preciso reconhecer e valorizar os esforços práticos na reciclagem e no reaproveitamento. “De parte da produção, deve haver incentivos como crédito mais brando para essas iniciativas e a ampliação da capacitação em vários grupos populacionais”, acrescenta. Por outro lado, a docente lembra que não deve se desconsiderar o aspecto social no encaminhamento de soluções para essa questão.
“O consumo de produtos sustentáveis não deve estar inviabilizado para determinados grupos da sociedade. Disseminar a reutilização é válido, mas também é necessário incentivar produtos que não fiquem obsoletos em tão curto tempo”
Monica Concha Amin
Uma outra perspectiva sobre essa questão enfatiza a responsabilidade de toda a cadeia de fornecimento: o fabricante do equipamento, o distribuidor, o lojista, o consumidor final e os órgãos encarregados do recolhimento e limpeza pública. “Cada um deveria fazer a sua parte, arcar com parte dos custos do recolhimento e reciclagem dos equipamentos. Existem leis que regulam isto, mas ainda não são aplicadas corretamente”, analisa Luis Felipe Nascimento, coordenador do Grupo de Pesquisa em Sustentabilidade e Inovação da Escola de Administração da UFRGS.
Ciente do potencial que universidade possui para avançar como referência nesse campo, Luis Felipe avalia que é importante que a instituição disponha de políticas e estruturas de sua implementação em todas as unidades. “Lembrando que para a implantação de uma política ter sucesso, é preciso um trabalho de sensibilização e de educação ambiental de todos os envolvidos”, considera. O docente avalia ainda que a universidade tem condições de assumir um papel de referência mais influente no processo de recohimento e destino dos eletrônicos.
“A UFRGS poderia, sem custos, fazer convênios com empresas que recolhem o lixo eletrônico não patrimoniado, como, por exemplo, ter pontos de recolhimento de celulares, computadores de uso pessoal, e outros eletroeletrônicos”, propõe. “Seria uma forma de estimular e facilitar o destino adequado dos equipamentos eletrônicos de uso da comunidade acadêmica”, aposta.
As três obsolescências
O termo obsolescência se refere a tornar-se obsoleto, estado daquilo que está em curso de se tornar ultrapassado. Esse conceito teria surgido entre 1929 e 1930, tendo como plano de fundo a Grande Depressão, e visava incentivar um modelo de mercado baseado na produção e no consumo em série, a fim de recuperar a economia dos países naquele período.
Em sua obra Made to break: technology and obsolescence in America [Feito para quebrar: tecnologia e obsolescência nos Estados Unidos], o canadense Giles Slade classifica a obsolecência em três tipos:
Obsolescência técnica ou funcional: introduzida em 1913, quando os veículos passaram a incorporar a partida elétrica em substituição às manivelas para acionar o motor. Este tipo de obsolescência ocorre quando o fabricante insere uma nova tecnologia ou funcionalidade no produto fazendo com que o consumidor passe a desejá-lo por tal característica que apresenta.
Obsolescência perceptiva: ocorre quando o fabricante modifica o design ou o estilo do produto para manipular a compra repetitiva pelo consumidor. Conforme Slade, este tipo de obsolescência teve seu marco inicial em 1923, quando os executivos da General Motors passaram a fazer mudanças nos veículos a cada ano para induzir os consumidores a substituir seus veículos por modelos mais novos, com pequenas mudanças, mesmo possuindo um automóvel funcional.
Obsolescência planejada ou programada: ocorre quando o fornecedor deliberadamente manipula o produto para que venha a falhar após determinado período de tempo, ou seja, o fabricante usa de sua engenharia para adulterar o produto fazendo com que tenha uma vida menor, levando o consumidor a adquirir novo produto.