Fazer a UFRGS enquanto a vida acontece: o que sabemos sobre evasão na Universidade?

Publicado originalmente em Jornal da UFRGS. Para acessar, clique aqui.

Artigo | Docente da Antropologia, Denise Fagundes Jardim avalia o ordenamento como mecanismo de exclusão baseado na meritocracia, algo que afeta as políticas de inclusão. Encaminha o tema e aponta novo modelo que permita conciliar estudo e trabalho

*Por Denise Fagundes Jardim
*Ilustração: Katherine Avila/ Programa de Extensão Histórias e Práticas Artísticas, DAV-IA/UFRGS

Ontem, na fila de um supermercado, ouvi ao meu lado o comentário da cliente sobre “estar no listão da UFRGS”. Eu, que esperava um sonoro “parabéns” como réplica, ouvi: “Agora mesmo que não vai poder trabalhar”. É uma maldição ser uma antropóloga, eu nunca desligo os ouvidos em filas, corredores e reuniões. E, depois, ainda lembro.

O título desse artigo é uma frase proferida pela acadêmica Eduarda Vidal durante nosso encontro de orientação, e a ela agradeço a permissão de seu uso. Reflete sobre as dificuldades de cursar a UFRGS e organizar a vida de modo mais abrangente. Lembra que, por vezes, pressupomos que a vida desaparece de cena quando uma pessoa entra na lista de aprovados na Universidade. 

O mundo não vai acontecer “depois da UFRGS”, depois de formados. Como antropóloga entendo que esse “giro de percepção” é fundamental para começarmos a falar sobre evasão sem ilusões que recaiam na ideia de “limitações” individuais para cursar a UFRGS. 

Como pensar a evasão na Universidade, considerando história institucional tão singular?

Nosso alcance sobre o que entendemos por evasão vem sendo condicionado pela medição do “sucesso escolar”, desempenho, aprovações e a desejada diplomação. Pouco refletimos sobre a capacidade de o campo científico e educacional concorrer com a desistência dos jovens e adultos do caminho da universidade e do campo da educação (e da ciência) no Brasil. A leitura do que seja a evasão é algo importante. Virou inclusive um índice que mede o sucesso das universidades. Segundo dados do IPEA, fiquem tranquilos, a maior evasão ainda é na rede de maior amplitude de alunos, as universidades privadas. Embora as públicas, por serem públicas, estejam sempre sob holofotes.

Visto sobre o prisma individual, a evasão se converte em um tema sobre o fracasso. Cabe então saber quais fatores e sobre quem recai o ônus de sanar esse fato indesejado. A área de educação, Bourdieu, no livro Os herdeiros de 1964, chamara a evasão de “mortalidade escolar”. No Brasil, ela é abismal do ensino fundamental ao ensino médio. E os poucos que chegam a concluir o ensino médio, no Brasil, ainda têm de sobreviver ao percurso acadêmico.

Desde sua criação pelo Conselho Universitário (Consun) em 2012, a Coordenadoria de Acompanhamento do Programa de Ações Afirmativas (CAF) atuou no intuito de avaliar o aproveitamento da política de ações afirmativas. Nessa frente, participei diretamente entre os anos 2016 e 2019. As equipes que se revezaram na CAF priorizaram uma leitura crítica sobre a instituição, considerando comportamentos registrados como ingresso, evasão e diplomação. Para tanto, estabeleceram tipologias entre os cursos de graduação não mais restritas ao contraste entre “áreas de conhecimento”. Aspectos como os índices expressos na concorrência por vagas no vestibular e os tipos de relação diferenciadas com o mercado de trabalho, a taxa de integralidade da matrícula fazem parte dessa metodologia baseada em análises multifatoriais. 

Há uma percepção precipitada de que os relatórios da CAF seriam sobre “os cotistas”. O foco das primeiras equipes da CAF consolidava parâmetros institucionais para tal avaliação. Para as equipes da CAF, era necessário oferecer uma metodologia abrangente sobre o antes e o depois das cotas. Os estudos representaram uma desconstrução da ideia bastante vigorosa, nos primeiros anos das ações afirmativas (2007/2012), que propunha analisar o aproveitamento das vagas unicamente pelo desempenho do boletim escolar dos cotistas, e a partir daí examinar e demonstrar o rendimento acadêmico dos cotistas como vetor prioritário da avaliação das ações afirmativas. 

Os relatórios CAF sempre incluíram a avaliação de aspectos administrativos, tecnológicos e institucionais e, nesse exame, agregaram recomendações e proposições ao Consun sobre as debilidades institucionais a serem sanadas.  No ano de 2017, por exemplo, a equipe da CAF dedicou um projeto-piloto para conhecer qualitativamente o que diziam seus alunos sobre retenção.

Todos nós que estamos faz muito na UFRGS e a vivemos intensamente podemos naturalizar o que vivemos como algo imutável. Quando ingressei como aluna na UFRGS fui “procuradora” da matrícula de meu irmão veterano e presenciei uma espécie de “pregão da bolsa de valores” para realizar a matrícula na Engenharia enquanto ele estava em viagem. Foi um momento intenso de aprendizado. Lembro que cada vez que uma turma era preenchida, a turma “estourava”, eu tinha uma outra grade para efetivar sua matrícula. Me foi confiado um bloquinho com quatro opções de horários. À medida que as turmas eram completas, eram riscadas em giz no quadro e quase dava para se ouvir a decepção da plateia. Quem viveu isso não precisa de desenho para saber o que representa o ordenamento de matrícula baseado no ranking do desempenho. E sabe que, para se manter “escolhendo horários”, tem que ser excelente em suas notas.

O ranqueamento visa garantir um horário, uma vaga em uma turma específica, sem ou com um determinado/a professora/a, com menos viagens de ônibus na cidade, com menos intervalos entre as aulas e, portanto, com a possibilidade de até manter um trabalho formal. 

Anos se passaram, agora é tudo informatizado, mas me estranha que exista o mesmo tipo de regra de ordenamento, que agora é executado pelo CPD. Você não vê mais a fila, não está numa grande sala como a plateia do pregão da bolsa de valores. Passado o tempo, o sistema de distribuição de vagas e horários segue regido por uma mão invisível, que pode te fazer entrar na aula na meia hora seguinte ou tomar um ônibus para ter essa mesma aula em outro câmpus. 

Como coordenadora da CAF, entre os anos 2016 e 2020, pude participar de algumas atividades em escolas públicas para divulgar as ações afirmativas. Foi uma luta. As perguntas dos jovens de escolas da zona sul de Porto Alegre e de Viamão, por exemplo, indagavam sobre quantos professores na Universidade cursaram a escola pública? Ainda escutei atentamente os professores da rede pública, que, diante de seus alunos/as, relataram que começaram um curso na UFRGS e desistiram por não poder conciliar seu emprego com os horários.

Nos anos 1990, criamos alguns cursos noturnos que aportaram mais vagas na graduação. A percepção de democratização parecia perfeita: mais vagas e horários próprios a trabalhadores. Eram, todavia, decisões das ilhas do arquipélago chamado UFRGS. Desde 1995, temos o dispositivo do jubilamento ativado, o que paradoxalmente chegava no mesmo período em que nos movimentamos para implementar cursos noturnos e debatíamos a democratização da Universidade. A inclusão é algo curioso nas universidades públicas, uma vez que a mesma política pública pode dar com uma mão e tirar com a outra. 

Desde as iniciativas institucionais do REUNI, no início do século XXI, experimentamos ampliações nos sentidos de democratização do acesso à universidade pública. O ordenamento de matrícula, entretanto, é uma tecnologia abrangente e consistente que nos coloca sob a “mesma lógica” e nunca foi mexido um só milímetro. Discutimos e alteramos o seu uso “natural” na distribuição dos ingressantes no primeiro e segundo semestre anual. Agora, usamos de meios informatizados, modernizamos os meios, mas seguimos o mesmo pressuposto na antiga fórmula de distribuição das oportunidades contidas nos “melhores e piores” horários de aulas a compatibilizar com suas vidas. 

Temos algumas novidades de licenças para considerar: licença saúde, maternidade. Alguns avanços que expandem seu tempo de permanência no curso mediante planificação com a Comgrad, mas que podem significar sustar uma bolsa permanência. Isso aponta um trancamento de matrícula. Como consequência da redução do ritmo de disciplinas por semestre, o trem da grade recomendada para cumprir o curso “descarrila”. As Comgrads se tornam as sanadoras, e quase milagreiras, na “adaptação” do acadêmico à grade por meio de contratos de planejamentos especiais. Isso diz muito sobre os esforços para colocar um indivíduo na seriação e a seriação nos trilhos de novo, estando o trem em movimento. A vida em movimento.

Em 2015, em um pós-doutoramento em Coimbra e algumas palestras na Universidade Nova de Lisboa, eu soube, lendo os cartazes nas paredes da universidade, da existência do “Estatuto de aluno trabalhador”. Em Portugal é uma lei federal que ampara documentos da universidade na implementação de medidas para visualizar e viabilizar que estudantes possam trabalhar e estudar ao mesmo tempo, sem os riscos de jubilação ou desistência. Considera-se que o trabalho, seja ele formal ou informal, se impõe como parte da vida, inclusive para uma universidade pública que, no caso, não é gratuita.

Voltei de Portugal com o estatuto de aluno trabalhador da Universidade Nova de Lisboa embaixo do braço e muitas perguntas. Mostrei para muitas pessoas, técnicos de Comgrad, colegas da CAF, membros da administração. Entendi que isso é matéria a ser examinada pelo Consun e deve ser amplamente debatida, pois aponta para transformações estruturais.

Aquele dispositivo me chamou a atenção. Como professora da UFRGS, eu e meus colegas do IFCH já detectamos pessoas que trabalhavam na madrugada e vinham para as aulas do diurno (heroicamente), e faziam horários de trabalho bem diversos da ideia de que o trabalhador exerce funções “antes ou depois da aula”. Estudar e trabalhar não é o mesmo que “só estudar”. Corporalmente, isso exige mais, sabendo que a vida não se resolve em dois turnos, e uma flexibilidade de remanejar turnos de trabalho não é viável em qualquer emprego ou ocupação laboral.

Pude reencontrar o colega José Mapril em 2018 e conversar longamente com ele sobre o estatuto, pois ele trabalha na Universidade Nova de Lisboa. Ele ficou muito surpreso que isso não tivesse sido feito no Brasil.

Ele discorreu longamente sobre como ele visualiza seus alunos trabalhadores na lista de chamada e o modo como se inscrevem no setor próprio para isso, a fim de acessarem um regime especial de compensações de avaliações e faltas, ampliando os tempos de entrega de trabalho sem ter que ampliar o calendário da universidade. Ao mesmo tempo, enfatiza que alunos inscritos neste registro são priorizados no ordenamento de matrícula, este que na UFRGS funciona unicamente pela qualidade das notas obtidas a cada semestre.

Por fim, quando me refiro a uma “questão estrutural”, peço que observem a regra aplicada no ordenamento de matrículas baseado em um universalismo meritocrático. Ele é, cirurgicamente, um dos mecanismos da distribuição de horários e de oportunidades que, atualmente, não considera a complexidade da vida dos/das alunos/as. Ela é só uma entre outras arapucas da exclusão.  

A meu ver, não há fórmulas mágicas de coaches para os professores animarem suas aulas no verão e engajar seus alunos a concluir cursos após o Carnaval, em longos calendários exclusivos da UFRGS! É óbvio que essa reflexão não fará nenhum sentido para os adeptos de uma pedagogia que acredita na distribuição de horários como um prêmio mediante acerto, como em um treinamento de cobaias, ou que defenderá uma organização de décadas como a única viável evocando o temor em experimentar inovações.

Em 2016, vivíamos um encolhimento da projeção do devir das universidades públicas, com perspectiva de solapamento das verbas e de sua autonomia didático-pedagógica e administrativa. Mas é necessário retomar o bom debate. É importante desnaturalizar as lógicas que nos acostumamos a manejar – e olhar com mais curiosidade para alternativas de permanência e organização institucional existentes mundo afora, como o estatuto do aluno trabalhador. 

Por certo, não há um único mecanismo a ser “desativado” quando se trata de exclusões em políticas de inclusão, e estes deveriam ser vistos de lupa. Quando adotamos as ações afirmativas, entretanto, deixamos esse motor meritocrático ligado. O motor da exclusão. É hora de pensar nas repercussões institucionais dessa lógica do ordenamento e da distribuição de oportunidades de vagas e horários na vida acadêmica e seus entrelaçamentos com o comportamento da evasão da universidade a fim de construir boas alternativas.

Para ler mais sobre o tema:

BOURDIEU, Pierre. Os herdeiros: os estudantes e a cultura. Florianópolis, Editora UFSC, 2015 (1964)

RISTOFF, Dilvo. Vinte e um anos de educação superior, expansão e democratização. Cadernos do GEA, N. 3, jan.-jun., Rio de Janeiro: FLACSO/GEA/UERJ/LPP, 2013. Disponível em: http://flacso.redelivre.org.br/files/2015/03/Caderno_GEA_N3.pdf. Acesso em 26 de maio de 2020. 

UFRGS. Decisão nº 268 de 2012 do CONSUN. Disponível em: http://www.ufrgs.br/consun/legislacao/documentos/decisao-268-2012/view. Acesso em 26 de maio de 2020. 

_____. Decisão nº 212 de 2017 do CONSUN. Disponível em: http://www.ufrgs.br/consun/legislacao/documentos/decisao-no-212-2017/view. Acesso em 26 de maio de 2020. 

_____. Relatório da Comissão de Acompanhamento dos Alunos do Programa de Ações Afirmativas 2008-2012. Disponível em: http://www.ufrgs.br/acoesafirmativas/relatorio/relatorio-2012/relatorio-ingresso/view. Acesso em 26 de maio de 2020.

_____. Relatório Anual do Programa de Ações Afirmativas. Disponível em: https://www.ufrgs.br/acoesafirmativas/wp-content/uploads/2019/01/Relat%C3%B3rioAnual-do-Programa-de-A%C3%A7%C3%B5es-Afirmativas-2016.pdf. Acesso em 26 de maio de 2020

Universidade Nova de Lisboa – Estatuto do Aluno Trabalhador.  https://www.fct.unl.pt/sites/default/files/despacho_no._11.pdf Acesso em 30 de janeiro de 2024.

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